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Como responder à violência contra a cidadania?
O horrendo assassínio de 17 cidadãos franceses nos três atentados em Paris contra as instalações do semanário satírico Charlie Hebdo, contra a polícia e contra o supermercado judeu, entre os dias 7 e 9 de janeiro, revela o ponto a que se chegou na conflitualidade global contemporânea. Contra a Europa, os alvos escolhidos estavam em Paris. Poderiam estar em Londres ou em Berlim. Mas também fora da Europa. No dia 16 de dezembro, numa escola da cidade paquistanesa de Peshawar, foram mortas 140 pessoas, na sua maioria, crianças e jovens. No dia 11 de janeiro, duas adolescentes fizeram-se explodir num mercado da cidade nigeriana de Potiskum, matando outras 4 pessoas e ferindo muitas mais. Já nesta semana, na mesma Nigéria, foram massacrados mais de 3 000 cidadãos em Baga, cidade que foi literalmente arrasada. No ano passado, cerca de 200 alunas duma escola nigeriana foram sequestradas. Ontem, 15 de janeiro, em Verviers, na Bélgica, dois jiadistas, segundo a versão oficial, foram abatidos pela polícia, quando se preparavam para executar atentados naquele país.
Não adianta especular sobre os países ou os lugares mais seguros ou sobre aqueles que são mais ou menos propícios a estes atos criminosos. Parece existir uma característica comum a todos eles: são violentos e não poupam vidas humanas, visam incutir o medo e limitar o exercício das liberdades cívicas, designadamente o exercício da livre crítica e do direito à educação para todos e todas, enfim, intimidam os cidadãos e cidadãs, as sociedades e os estados. São protagonizados por agentes treinados militarmente, proclamam-se justiceiros em nome dum islamismo fanático e, no limite, revelam-se preparados para morrer, crentes de que, a seguir, irão ter uma recompensa valiosa. Alguns deles declaram que não se devem matar mulheres e crianças, outros fazem-no sem remorsos, pelo que, partindo duma posição comum, divergem, nas suas orientações operacionais, conforme os contextos em que atuam. Aparentemente, têm, pois, perspetivas diferenciadas dos seus alvos e dos seus modos de agir, embora recorram a proclamações idênticas, conjugando ideias religiosas, ressentimentos políticos e práticas cruéis, num caldo violento, temperado com proclamações de vingança contra os que visam punir.
Contrariamente ao que muitos, com evidentes propósitos eleitorais, proclamam, normalmente estes homens não vêm de fora, não atacam enquanto estrangeiros. Nasceram e cresceram nas sociedades que querem castigar, sem dúvida, com ligações ideológicas, programáticas e operacionais a grupos que atuam no exterior. Recentemente, até foram identificados como cidadãos britânicos, franceses, belgas ou portugueses. Quase sempre erguem as bandeiras do Islão, obedecem a líderes fogosos, bem paramentados e com discursos inflamados contra o ‘Ocidente’, em poses ensaiadas e divulgadas em vídeos na internet. Esses sim, são originários de países terceiros e/ou vivem em meios muçulmanos – árabes ou outros. Terão os seus projetos políticos pessoais e de grupo, como este de refazer o antigo califado, desde Bagdade e Damasco ao Cairo e a Córdoba, sempre em nome do Islão.
Muitos destes ‘soldados’, nados e criados em ambiente ‘ocidental’, são recém-convertidos ao fanatismo sectário, onde terão sido seduzidos por este tipo de práticas violentas contra as sociedades em que, eventualmente, não se chegaram a inserir; outros, se calhar a maioria, foram gerados nas convulsões políticas e bélicas que, nas últimas décadas, se propagaram e acentuaram no Médio Oriente, na África do norte e na Ásia – da Palestina ao Iraque, da Líbia à Síria, do Líbano ao Afeganistão, etc. – e dizem querer vingar-se dos que julgam responsáveis pela dominação e pela instabilidade vigentes nessas zonas do mundo. Entre esses alvos, estão os estados mais militarizados do ocidente, coincidentes com os países mais fortes da NATO, que, ultimamente, do Atlântico Norte tem aspirado a impor a sua tutela em zonas cada vez mais distantes do globo.
Enfim, no seu discurso público, eivado de irracionalidade e referenciado a mensagens próprias de contextos históricos passados da religião muçulmana – normalmente, não aprofundam o essencial da doutrina e omitem a corrente interna a que estão vinculados – afirmam-se os defensores desse meio mundo em turbulência constante e crescente – com populações infindáveis de refugiados, de pobres e de famintos, que também ajudaram a criar e cujos sentimentos de revolta manipulam. Não hesitam em dizimar populações inteiras, se as julgarem indisponíveis para aderirem às suas teses e crenças. Apresentam-se como os ‘verdadeiros’ combatentes contra o outro meio mundo que os ‘condena’ a tal estado de coisas. Trata-se, pois, duma guerra permanente entre forças de potencial bélico bastante desigual e que, como tal, leva a que os menos providos de meios militares inventem outros processos de luta violenta e escolham outros alvos, normalmente civis, para continuarem essa guerra (infinita?).
Perante este quadro nada simples, como reagem os dirigentes políticos do ocidente? Exibiram-se, nas ruas de Paris, no passado dia 11, numa manifestação pública que mobilizou alguns milhões de cidadãos e cidadãs contra a violência mortífera ocorrida dias antes. Proclamaram os valores da vida e da liberdade. Lado a lado, estiveram dirigentes de países da UE e de Israel, com responsabilidades na desestabilização política e social de países do Médio Oriente e do Norte de África, na eternização do drama palestiniano, e até, segundo testemunhos cada vez mais frequentes, na constituição e no municiamento de grupos terroristas que, desde a guerra do Iraque, começaram por atuar contra os governos que lhes interessava derrubar e, agora, lhes fugiram do controlo. Esquecem-se de alinhar os seus protestos contra atentados semelhantes, como os acima referidos. Não se pronunciam, por exemplo, contra os poderes sauditas que condenaram Raif Badawi, co-fundador do site Rede Liberal Saudita e laureado em 2014 com o prémio Repórteres sem Fronteiras, a dez anos de prisão e 1000 chicotadas, algumas delas na praça pública, por ‘ter insultado o Islão’, ao criticar o poder autocrático dos dirigentes religiosos. Sabem, mas não dizem, que muitos jornalistas que trabalham em órgãos de comunicação social dos seus países são constantemente forçados a ocultar ou a distorcer informação relevante para que a sociedade possa avaliar devidamente a ação dos governantes. Perseguem os que se arriscam a afrontar esse estado de coisas, em que a liberdade de informar pode ser criminalizada, como com Edward Snowden e Julien Assange. Enfim, fazem de conta que são pela liberdade… mas, na realidade, refreiam-na e condicionam-na.
E que mais? Preparam-se para mais intervenções militares, atirando gasolina para a fogueira que foram alimentando, umas vezes em lume brando, noutras com chamas alterosas. Em nome da segurança das nossas sociedades, procuram agredir outras, esquecendo que os verdadeiros responsáveis por estas violências estão a salvo e quem sofrerá, como tem acontecido, são as populações civis, de cá e de lá.
Em conclusão: problemas complexos terão que ser abordados como tal. Se o que se pretende é proteger os cidadãos e as cidadãs e pugnar pelos seus direitos, qualquer que seja a sua condição e o lugar onde vivam, não reduzamos a coisa a uma questão militar ou de polícia. Continuar a fazê-lo será entrar no jogo dos que se criticam, sem garantia de que a solução ficará mais próxima e será duradoura. Refletir seriamente sobre o que se está a passar e encontrar saídas para os problemas vividos é uma tarefa de toda a sociedade, não é uma questão de caserna, de serviços de informação ou de estados-maiores. Lutar contra esta e outras violências é uma questão de cidadania, de forte densidade.
Comments
Bom artigo, bom apelo à
Bom artigo, bom apelo à reflexão indo à raiz das coisas. Obrigado, José João Lucas! Tento responder ao seu apelo, juntando duas ou três coisas à lista em que me parece que seria bom reflectir colectiva e politicamente.
Desde o dia do atentado ao Charlie Hebdo que me sinto muito mal ao ser bombardeado com contra-informação. Acho que nunca esteve em causa a liberdade de expressão, mas tão-somente uma "vingança" bárbara. A liberdade de expressão não era o alvo. Mas foi muito competentemente usada por quase toda a comunicação social para esconder a realidade dos factos: o tremendo falhanço do Estado francês na garantia da segurança dos seus cidadãos. Essa é que é a verdade que tem sido muito pouco analisada e comentada, mas pelo contrário, muito disfarçada e escondida (desde os jornalistas até a doutos professores universitários tidos como especialistas destas coisas). Esse é um dos mitos de que, em meu entender, a sociedade se deve livrar quanto antes, para sua defesa.
O outro é a síndroma "anti-Ana Gomes". Foi talvez a única voz que publicamente pos o dedo em cima de uma ferida que pretendemos também esconder: o "cretinismo legalista" com que muita gente, que se diz de esquerda, nos quer convencer que tudo é permito, que os limites de toda e cada uma das nossas acções são os limites que a lei estabelece. É um facto, inegável; mas é a situação limite, a meu ver. O José João, logo no início do seu artigo, escreveu "os cidadãos e as cidadãs". A gramática da língua portuguesa dispensa as três últimas palavras, sem com isso implicar qualquer desdouro ou subalternidade das mulheres; a lei também não obriga à utilização deste tique de estilo. A sua adopção é uma regra de cortesia, de boa educação: devemos considerá-la uma "limitação à liberdade de expressão"? ou uma auto-censura?
Não me sinto nada motivado para defender a provocação e a falta de cortesia do Charlie Hebdo clamando que se trata de uma liberdade fundamental; se o é, o Chalhie Hebdo que se queixe a quem deve fazer cumprir a lei; mas não conte com o meu apoio.
Já no calor dos comentários com que se mediatisou este facto, aprendi com o Prof. Adriano Moreira mais uma lição de vida e de clareza de pensamento: disse ele que não se trata aqui de "tolerância", pois tolerância é o que sentimos por aquilo de que não gostamos. Ora, como habitante deste mundo, os milhões de muçulmanos que não são terroristas não me podem ser indiferentes. Tenho que ter por eles compreensão, respeito, fraternidade; mas não "tolerância"! Ser "tolerante" seria, no fundo considerá-los inferiores; ou ofendê-los.
Finalmente, fazem-me sentir mal os papagaios que a propósito destes ataques terroristas peroram sobre os ataques aos valores da "nossa" sociedade e advogam, como disse, que os limites da liberdade de expressão são os que a lei estabelece. Julgava que a sociedade em que vivo já tivese ultrapassado este primarismo: reduzir a moral ao Direito. Julgava que a superioridade moral não consistia apenas em cumprir a lei e não ultrapassar os seus limites. Julgava que nos comportamentos de gente civilizada, antes de recorrer à Lei, se devem observam alguns princípios muito básicos de ética, de cortesia, de boa educação.
Creio que não preciso de declarar, José João Lucas, que nada do que escrevi se refere ao seu artigo. Como disse, fui motivado pelo que escreveu e o meu objectivo é apenas juntar a minha voz à sua suscitando o debate: "Lutar contra esta e outras violências é uma questão de cidadania".
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