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“Portugal está refém de um sistema imoral”

Jazzafari encontrou no jazz o seu espaço de liberdade e através dele a forma de traduzir o desencanto em relação à estagnação que, a todos os níveis, se abateu sobre o país. Em entrevista ao esquerda.net, diz sentir-se “distante” da política mas não da realidade marcada, segundo as suas palavras, por “muito sofrimento e tristeza”. Por Pedro Ferreira.
Jazzafari, músico e produtor que aos 28 anos editou o seu primeiro CD que será lançado este mês

“As pessoas têm o direito de sonhar e abrir caminho à concretização das suas expectativas”, afirma Jazzafari, músico e produtor que aos 28 anos editou o seu primeiro CD que será lançado este mês.

“A edição deste trabalho é também uma vitória sobre a lógica dos interesses que tolhem o meio musical mais interessado na superficialidade do que na qualidade”, sublinha.

Porque é que escolheste o nome Jazzafari?

Em 2006 fui para Barcelona para estudar piano, voz e composição. Aí comecei a pensar num nome que pudesse ser pronunciado em todas as línguas, algo que tivesse um carácter mais universal. No fundo, que não me ligasse a nenhum país mas, se quiseres, ao mundo.

Não querias que soubessem que eras português?

De maneira nenhuma. Nunca escondi a minha nacionalidade. Gosto do país mas para um músico de jazz o facto de se ter nascido aqui ou ali não tem hoje grande importância.

Não queres seguir a linha dos artistas-embaixadores?

Não. A política usa muito o sucesso de determinadas pessoas para vender o país. Mas eu não sou um produto e não estamos por isso a falar de marcas.

Mas no meio empresarial e político fala-se cada vez mais da “marca Portugal”.

É um conceito demolidor quando falamos de cultura. Reduzir tudo à lógica de mercado, à amálgama da massificação conduz-nos inevitavelmente para o precipício do consumismo desenfreado onde o sucesso é apenas um invólucro para vender sem critério. Não quero seguir esse caminho.

Mas não queres ter sucesso e ser reconhecido pelo trabalho que fazes?

Claro que sim. Vivo da música. E preciso também de ter o feedback daquilo que faço. Isso implica que as pessoas conheçam o meu trabalho. É também desta forma que se evolui. Mas nada disto deve ser feito a qualquer preço. Há limites que eu não quero ultrapassar para não por em causa a minha identidade musical.

Não será isso um lugar-comum?

Para mim não é. Aliás, se procurasse o sucesso fácil tinha escolhido outra área musical.

"Foram os escravos, os negros, os pobres e excluídos que estiveram na base do jazz. Que naturalmente evoluiu ganhando uma universalidade que hoje não o torna exclusivo de nenhum país ou cultura em particular"

O jazz é procurado por um tipo de público mais exigente, mais erudito, digamos mais intelectualizado?

São curiosas essas observações se nos lembramos das origens deste tipo de música. Foram os escravos, os negros, os pobres e excluídos que estiveram na base do jazz. Que naturalmente evoluiu ganhando uma universalidade que hoje não o torna exclusivo de nenhum país ou cultura em particular. Há grandes músicos de jazz originários de todas as latitudes.

Mas há um tipo de público específico para o jazz?

O público do jazz é cada vez mais diversificado em termos etários, sociais e culturais. Eu apercebo-me disso nos meus espetáculos até porque como já disse venho do reggae e isso é notório em muitas das minhas interpretações. Tenho uma conceção aberta no estilo e composição que é aceite pela maioria daqueles que me vão ouvir. Importa realçar que o jazz já quebrou as suas grilhetas podendo assim cruzar-se com outros estilos. Por isso, e apesar de haver quem o queira fazer, julgo que é importante que não o encerrem numa redoma matando assim a génese que esteve na sua origem, ou seja, a revolta e a busca da liberdade.

O teu disco quebra essa linha mais ortodoxa. Além de cantares em português o que não é vulgar, não abandonas totalmente o reggae e por vezes entras no campo da soul. Além disso recrias de forma muito peculiar temas de grandes nomes como Wayne Shorter, Charles Mingus ou Charlie Parker, entre outros.

Não pretendi desvirtuar as raízes mais profundas do jazz, mas também não quis, como já disse, ficar preso a uma certa pureza estilística que alguns defendem e que para mim não faz sentido. Eu faço música e esta não é, se me permites, uma ciência exata. A minha criatividade enquanto músico passa por aí.

Foi por isso que tiveste dificuldades em editar o CD?

Não. As dificuldades estão relacionadas com os interesses que também existem na música e assim os critérios para gravar um disco vão muito além da qualidade do trabalho que fazemos.

“A edição deste trabalho é também uma vitória sobre a lógica dos interesses que tolhem o meio musical mais interessado na superficialidade do que na qualidade”

Mais uma vez, os lóbis?

Claro. Um emaranhado gigantesco que tem silenciado muita gente prestando assim um péssimo serviço à cultura em Portugal.

Mas o Rui Veloso abriu-te as portas do seu estúdio.

Sim. O Rui ouviu, gostou e acreditou.

E foi por isso que escreveste a música a que deste o nome de Vale de Lobos? (zona de Sintra onde se situa o estúdio de gravação de Rui Veloso)

Estou muito grato ao Rui. É sempre bom saber que há gente que nos incentiva. São um estímulo para que não desistamos.

Como é que o jazz surgiu na tua vida?

Antes do jazz propriamente dito, foi a música. Ser músico foi a única coisa que me lembro de ter querido ser na vida. Aqui há naturalmente influências familiares [Jazzafari é filho do cantor Carlos Mendes] e também a necessidade que senti de me expressar através dela.

Por vezes, a escola aborrecia-me um pouco porque não tinha espaço para a aprendizagem artística. Tudo muito formal e esquemático acompanhado pela necessidade de ter uma formação que me permitisse ter acesso a um emprego de rotina. E eu queria outras coisas.

Mas na tua casa respirava-se cultura.

O meu pai é músico e a minha mãe pintora o que fazia da casa um ponto de encontro de gente ligada ao meio artístico e cultural.

Ainda te lembras de alguns?

Recordo-me sobretudo do Luíz Villas-Boas que chegou a trabalhar com o meu pai.

E que não esqueceste de homenagear no disco com uma canção a que deste o seu nome.

Era inevitável. O Villas-Boas abriu horizontes e desta forma ampliou a visão musical existente no país. Nenhum músico lhe pode ficar indiferente. Como digo na canção, o país precisa de mudar o paradigma cultural e o Luíz faz-nos muita falta.

Aos 19 anos deixaste a casa dos pais e foste conhecer alguns países europeus. Foi um ato de rebeldia?

Talvez. Mas acima de tudo foi porque senti uma vontade irreprimível de viver outras experiências. Quase sem aviso (deixei apenas uma carta no quarto dos meus pais) fui-me embora e durante 4 meses andei por França, Alemanha e Itália. Foi curta a aventura mas foi importante e fez-me crescer.

Durantes alguns anos viveste na zona de Santarém.

Nasci em Lisboa mas vivi na região de Santarém durante 11 anos. Muitas vezes fazia o caminho para a escola a pé. E ainda eram uns bons quilómetros. Mas sentia-me bem, mais próximo de mim porque estava entre a natureza. Apesar de isto parecer um pouco naif, sinto que não seria a mesma pessoa se não tivesse vivido fora da cidade.

Tens preocupações ambientais?

Tenho e esta é uma das razões que me levam a afirmar que vivemos num sistema político e económico errado. A industrialização intensiva tem causado danos irreparáveis que degradam a nossa qualidade de vida. Olha-se para tudo com o objetivo de ver se é negociável, se dá dinheiro. É uma alienação aflitiva que eu não aceito.

Estamos a entrar no terreno da política.

Admito que sim, mas não vejo que esta se preocupe muito com este problema. No plano das intenções talvez, mas depois nada acontece. E eu não gosto de falsidades.

Na canção Mundo Cão dizes: “já estou cansado desta vida e deste sistema/todos procuram a solução sem sair deste mundo cão.” Não podes dizer que não há aqui uma reflexão de cariz político.

Não vivo alheado dos problemas que me rodeiam, nem desisto de contribuir para a resolução dos mesmos Não me revejo, no entanto, na forma tradicional de fazer política porque acho que não nos leva a lado nenhum. Ou melhor, conduziu-nos à multiplicação de números e estatísticas que falseiam a realidade. Muitos políticos querem transformar a vida em algo previsível fechando assim o espaço à nossa realização pessoal e também coletiva.

Caminhamos em que sentido?

Posso socorrer-me de um cliché?

Sinto o frio que sai da pedra do balcão de um banco.

As pessoas vivem fechadas sobre si próprias, numa competição desenfreada porque dela dependa a sua sobrevivência. A evolução de que nos falam não é senão uma enorme regressão. Onde há fome e sofrimento não pode haver progresso nem felicidade.

Como é que vês Portugal?

Um país que está refém de um sistema imoral.

Entrevista a Jazzafari, realizada por Pedro Ferreira para esquerda.net

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