You are here

A anormalidade do normal

Tornou-se normal que o cidadão comum não possa ousar exigir saúde ou sequer dignidade na doença; tornou-se usual o desastre, e inesperado seria que algo funcionasse bem quando os protagonistas deste filme de terror se mantêm.

O caos instalado nos serviços de Urgência preenche os noticiários e indigna o cidadão comum; inflamam-se redes sociais, multiplicam-se relatos trágicos em salas de espera, exorta-se a revolta contra uma política que envergonha que neste sistema nacional conste sequer a palavra saúde.

Após anos de repetições trágicas desta calamidade, a anormalidade é considerar toda esta triste recorrência uma anormalidade. Tornou-se normal que o cidadão comum não possa ousar exigir saúde ou sequer dignidade na doença; tornou-se usual o desastre, e inesperado seria que algo funcionasse bem quando os protagonistas deste filme de terror se mantêm: um ministro empenhado na destruição do SNS, administrações hospitalares desinteressadas de tudo o que não rime com lucro e direções clínicas e de enfermagem preocupadas somente com as aparências para as já típicas visitas ministeriais, reveladoras que afinal tudo estava bem (nem que para tal se escondam doentes, até ao dia anterior empilhados sem dignidade).

Explicar o inexplicável torna-se um entretenimento; consola os apoiantes deste governo (afinal Paulo não é um dos seus, mas não mais faz que dar a cara à política destruidora desta coligação assassina do nosso País) enquanto anuncia pomposamente a culpa do fortuito e do acaso.

Sabemos hoje, que anos seguidos de sobrelotação do Hospital Fernando da Fonseca são somente resultado de um défice de pequenas reparações que serão levadas a cabo. Quiçá, com (mais) uma pintura aqui e acolá, e algumas camas mais de internamento encerradas, se possa finalmente resolver problemas menores e ocasionais (afinal só acontecem 364 dos 365 dias do ano) como utentes internados em salas de espera, cidadãos a arrastaram-se por corredores onde encontram no chão o único espaço disponível para se deitarem, enfermeiros a cuidarem de 10, 15 ou 20 doentes, médicos a desdobrarem-se entre internamentos, admissões, consultas e tudo o mais imaginável. Onde estão os fundos de acreditação que pomposamente avaliam as instituições?

Sabemos também que para esta altura de crise foram admitidos mais 300 profissionais. O esforço é admirável, ainda que não pareça suficiente para suprir os 10.000 enfermeiros que deixaram o país nos últimos 6 anos, muitos deles abandonando os hospitais hoje em crise, substituídos ocasionalmente por colegas sem experiência e com vínculos precários ou temporários.

Houve igualmente um reforço da linha Saúde 24, sobretudo no tempo de espera, agravado há mais de 1 ano, depois do despedimento de quase metade dos seus comunicadores. Será porventura uma altura interessante para refletir na diferença de qualidade de um serviço que poderia ser uma solução e não mais um nicho de negócio. Anormal seria dar valor em vez de perseguir os enfermeiros que outrora fizeram deste um serviço útil.

Tomamos pulso à estonteante taxa de vacinação sazonal da Gripe; o pulso perde-se no entanto quando falamos de todos os que deixam de tomar a sua medicação habitual, todos os que falham refeições, todos os que não tem uma habitação que lhes garanta salubridade. Perde-se o pulso a Portugal, sob a surdina de gargalhada da austeridade.

Continua a naufragar este barco, com capitães à distância e marinheiros do costume; a surpresa é a própria surpresa que todos fingem, ano após ano. A surpresa no utente que falece por esperar 6h, quando não deveria esperar mais de 1h; o espanto nas 22h ou 24h de espera para quem não tem alternativa; o inconformismo pelas condições indignas em que pessoas são supostamente cuidadas.

Explica-se o anormal, esquecendo-se a explicação da normalidade. Chamar normal ao que hoje se vive assusta, afinal ainda se idealiza um hospital como um porto seguro. Mas este porto afunda, lentamente pelos bravos profissionais que fazem da sua rotina tirar baldes de agua de uma inundação causada pelos que se fingem surpreendidos.

Enfermeiros humilhados na sua profissão, desvalorizados no seu trabalho árduo, entregues a si próprios, fazendo da luta pela sua sobrevivência a luta da sobrevivência de um sistema, abandonados pelas suas chefias, empenhadas somente em permanecer nas graças das administrações,

Como eles, médicos, técnicos de diagnósticos, auxiliares, administrativos, todos votados a esta normalidade, que lhes dá vontade de rir quando classificada de anormal, vontade de chorar quando mergulhados nela a troco de quase nada, pouco mais que o seu orgulho e brio.

Anormais seriam palavras acertadas de um Ministro que em nada acerta, de uma política que tudo destrói. Anormal seria que um País onde a justiça não se ganha, mas se compra, trouxesse ao banco dos réus as culpas da destruição do SNS, outrora garante da segurança e dignidade de cada um. Anormal seria que se tomassem as medidas certas, investindo numa duplicação ou triplicação dos recursos humanos, na qualificação dos espaços e no investimento de alternativas.

Anormal seria que por um ano que fosse a discussão sobrevivesse ao Inverno, afinal as vítimas que tombam nos corredores dos hospitais são vítimas da inércia de todos nós.

Sobre o/a autor(a)

Enfermeiro. Cabeça de lista do Bloco de Esquerda pelo círculo Europa nas eleições legislativas de 2019
(...)