You are here

A chance grega e a salvação da Europa

A Grécia terá eleições a 25 de janeiro e a possibilidade de eleger o o primeiro governo de esquerda da história europeia das últimas décadas.

Talvez se possa dizer que o primeiro governo Mitterrand, que era uma coligação entre o PSF e o PCF, no seguimento de dez anos de “união da esquerda”, aplicou uma orientação para a mudança entre 1981 e 1983, quando nacionalizou todo o sistema financeiro e os principais grupo industriais nacionais (imagina hoje um PS a propor tal radicalismo?). No entanto, esse governo submeteu-se a partir de 1983 a uma política de austeridade e privatização. Ora, isso foi há mais de trinta anos. Desde então, os governos dos partidos de centro seguiram sempre uma orientação financeira alinhada com os interesses dos mercados, sem qualquer excepção em qualquer país europeu. A Grécia é portanto a primeira oportunidade em décadas para um país da União Europeia escolher uma alternativa de esquerda.

Isso não significa que o resultado esteja já definido. As próximas três semanas farão reviver os medos ancestrais, as campanhas de terror, as chantagens de todo o tipo, a polarização social. E a pressão internacional: durante as últimas semanas, a Comissão Europeia pronunciou-se em favor do candidato presidencial da direita e o comissário Pierre Moscovici, socialista, foi a Atenas reafirmar o mesmo. No sábado passado, em entrevista ao Bild, Wolfgang Schäuble veio garantir que o governo alemão obrigará a Grécia a pagar a conta. “As novas eleições não mudarão nada a respeito da dívida grega”, disse o ministro, para bom entendedor meia palavra basta. O FMI suspendeu os tratos com a Grécia assim que foram anunciadas eleições.

Os dados estão lançados mas ainda não se pode adivinhar quem ganha. O triunfalismo é portanto tão desaconselhável como o catastrofismo. Se a esquerda vencer, começará um ano vertiginoso: ou a dívida soberana (197% do PIB) é reestruturada em profundidade e com grandes perdas para o capital financeiro, ou a Grécia terá de ameaçar ou de forçar a sua saída do euro. O Syriza quer impor a primeira alternativa e evitar a segunda. Se, em contrapartida, a direita ainda for a tempo de recuperar e vencer, a Grécia prosseguirá a sua vertigem de endividamento e desagregação. Essa é a origem da contradição onde está a força da esquerda: é a única que representa a nação contra o protectorado, mas a sociedade está dividida.

No mapa político grego, este momento parece irrepetível. O partido socialista, o PASOK, que há quatro anos tinha maioria absoluta no parlamento e 40% dos votos, está hoje reduzido a uma franja e foi agora abandonado pelo seu anterior secretário geral, Papandreu, que forma um novo partido. Comprometido no governo de Samaras, é um resíduo do anterior sistema partidário. A Nova Democracia, o principal partido da direita, aparece atrás do Syriza em todas as sondagens. E os restantes partidos ficam muito à distância: o partido comunista (KKE), o Dimar (uma cisão social-democrata do Syriza e que participou no governo até há pouco), os Gregos Independentes (um partido de direita anti-troika) ou a Aurora Dourada (neo-nazis).

Caso a Grécia opte pela esquerda, será sem dúvida uma oportunidade difícil, mas ainda mais uma inauguração arriscada. Nenhum governo negociou jamais com as autoridades europeias a partir de uma posição de soberania ou de restrição às rendas financeiras da dívida pública. Nenhum governo enfrentou jamais a autoridade do governo Merkel. Nenhum governo questionou até hoje o Tratado Orçamental e a eternização da austeridade. Para o fazer, o governo de esquerda tem de estar muito bem preparado, ancorado em estudos precisos e planos de contingência detalhados, apoiado pela população e disposto a lutar com todas as consequências. O Syriza ainda não apresentou essas propostas concretas e espera-se que o faça nos próximos dias.

Creio que isto nos ensina duas lições e nos confronta com uma terceira questão em aberto. A primeira é que só haverá um governo de esquerda quando a esquerda unida tiver mais votos do que o centro: enquanto os partidos que aceitam a troika, a austeridade ou as regras do Tratado Orçamental forem dominantes, não há solução para uma alternativa. A segunda lição, na minha opinião, é que é preciso manter sempre um rumo claro: a esquerda só será mais forte do que o centro se milhões de pessoas fizerem seu o esforço de enfrentar a finança pondo em causa o chicote da dívida, pois essa é a explicação para o ascenso do Syriza. A terceira questão não tem ainda resposta: se tiver o apoio da maioria, o governo de esquerda é capaz de cumprir o seu programa, vencendo então essa maldição de Mitterrand? Não sabemos. Não falhar onde tantos recuaram é uma tarefa ciclópica. Saber para onde ir quando tantos se alimentam de medo e incerteza é um risco acima das possibilidades. E, no entanto, tudo é realizável: não resta mais nada, não há caminhos intermédios, não há meias tintas, não há conciliações possíveis, os de cima não cedem nada e levaram quase tudo.

Oxalá possamos ter a Grécia a desbravar esse caminho, porque à Europa não restam muito mais chances. Tudo, o poder de Merkel, a unidade da União, as suas leis futuras ou o Portugal de 2015, tudo tem uma primeira volta em janeiro nas eleições gregas.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 30 de dezembro de 2014

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
Comentários (1)