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Os nossos amigos em Riade

Os Estados Unidos são aliados da Arábia Saudita não apesar da ordem política autoritária do país, mas por causa disso. Artigo de Toby C. Jones, publicado em Jacobin.
Obama e o Rei Abdullah num encontro em Riade, capital da Arábia Saudita.

Na passada quarta-feira, um tribunal penal na Arábia Saudita condenou à morte o clérigo xiita xeque Nimr al-Nimr, um dos mais visíveis dissidentes políticos do reino. As autoridades sauditas justificaram o veredicto em termos de segurança nacional. Declarado culpado por vagas acusações de sedição, Al-Nimr foi julgado num tribunal criado para julgar casos de terrorismo.

Como é frequentemente o caso na Arábia Saudita, o que é considerado a regra da lei e segurança nacional é geralmente o teatro do absurdo. O veredicto da execução, que podia ser comutado para uma sentença de prisão prolongada, é o produto de um sistema baseado na exclusão política, um sistema que sacrifica os seres humanos de modo a manter a autoridade centralizada e o privilégio da elite.

Al-Nimr foi preso e posteriormente condenado não por ser um perigo para a sociedade saudita, mas porque há muito tem sido um crítico da opressão, ativista contra a discriminação sectária e tem conduzido protestos exigindo reformas da ordem política injusta. Al-Nimr tem sido uma figura proeminente no apoio ao que tem sido um movimento de protesto em grande parte não visto, mas, no entanto, persistente nas comunidades predominantemente xiitas da Arábia Saudita oriental.

Desde 2011, pouco depois de cidadãos se terem mobilizado contra o Al-Khalifa no vizinho Barém, os xiitas sauditas também vieram para as ruas. Como resposta, as autoridades tomaram medidas enérgicas criminalizando um vasto campo de ativistas, policiando de forma agressiva as comunidades xiitas e perseguindo, prendendo ou matando montes de activistas.

Al-Nimr só coloca uma ameaça para o próprio regime. A repressão de Estado, sob a capa de um discurso de segurança e sedição, é um fraco esforço para mistificar este facto fundamental. Feitas as apostas de exprimir raiva contra o regime, especialmente pela comunidade xiita, é digno de nota que os protestos de rua continuaram diariamente desde que foi conhecida a sentença contra Al-Nimr.

Claro que mesmo observadores ocasionais da política da Arábia Saudita não ficam surpreendidos com a decisão de executar um proeminente clérigo xiita. Com efeito, o reino é largamente conhecido por ser um centro de extremismo religoso e sectarismo. E é bem verdade que o anti-xiismo tem história na Arábia Saudita.

Os xiitas, que perfazem 15 por cento da população saudita, têm sido, historicamente, apontados, quer pelos zelotas religiosos quer pelo governo central, como um regime imperial. A comunidade tem enfrentado discriminação e exclusão sistemáticas desde a expansão imperial de Al-Saud da Arábia Central desde o início do século XX.

Mas as patologias sectárias, mesmo na Arábia Saudita, têm histórias particulares. E estão longe de estar tão disseminadas como poderíamos pensar. É certo que o sentimento discriminatório se tornou mais entranhado na última geração, mas as piores variedades de anti-xiismo, sobretudo as que defendem a violência e apoiam a regionalização de uma guerra sunita-xiita são uma minoria pequena, mas poderosa.

O anti-xiismo hoje não é tanto o produto de uma interpretação retrógrada ou ortodoxa do Islão – largamente rotulada de Wahabismo – como é a convergência de várias forças políticas, sendo a mais importante de todas, um estado vulnerável.

Confrontados com uma quantidade de ameaças internas e externas – o desejo de influência no Golfo por parte do Irão; a ascensão do poder xiita no Iraque pós-invasão; a revolta no Barém, o estado satélite da Arábia Saudita; e, sobretudo, o surgimento de uma série de desafios domésticos à autoridade saudita desde 2003, inclusive a crítica à enorme corrupção do Estado e à ausência de direitos políticos – os líderes de Riade responderam fomentando o anti-xiismo discriminatório. Em vez de alargar a participação ou de acabar com as desigualdades, o impulso do regime foi o de continuar a política da escalada sectária.

Visto desta forma, o veredicto contra Al-Nimr não é tanto sobre segurança nacional ou um reflexo do sentimento profundamente conservador anti-xiita, mas um sinal da vulnerabilidade do regime.

É tentador dizer que, ao ameaçar executar Al-Nimr, o Estado pretende dissuadir outros dissidentes xiitas de desafiarem a sua autoridade. Certamente que isto é verdade. Mas o regime está também a atirar isco para os piores reaccionários no seu seio, numa prática de diversão e legitimando politicamente as formas agressivas e virulentas de sectarismo que se têm estabelecido na região. O efeito óbvio é que o anti-xiismo, dentro e fora do país, ganhou e continuará a ganhar maior aceitação como ganhou com a subida do Estado Islâmico no Iraque e na Síria (ISIS). De forma mais subtil, o gambito saudita baseia-se também numa clara compreensão que outras potenciais formas de desacordo – contra acusações de corrupção ou frustração por o que é um estado securitário forte - podem ser desviadas ou afastadas ateando o anti-xiismo e sacrificando corpos xiitas.

A sectarização da política saudita é também política e económica e ligada à “relação especial” do reino com os Estados Unidos. Desde a rebelião no Barém, em 2011, os Estados Unidos continuaram a apoiar os regimes árabes autocráticos no Golfo em vez da democracia e dos direitos humanos. As justificações incluem prioridades em torno da “segurança”, a necessidade de conter o Irão e assegurar que o petróleo circula do Golfo para os mercados globais.

Com estas prioridades em mente, é muito improvável que os funcionários americanos façam grande coisa para desafiar Riade quanto ao veredicto sobre Al-Nimr ou alterar o seu comportamento sectário no geral. Os críticos instaram os Estados Unidos para repensarem os seus laços estratégicos com Riade. Mas fazendo tal, isso obrigaria a confrontar não só as contradições na política americana, especialmente dado que está próximo de um estado saudita que apoiou a escalada do ISIS mesmo que indirectamente, mesmo quando agora reclama estar comprometido com a destruição do estado islâmico.

De qualquer modo, a falta de vontade dos Estados Unidos de confrontar o papel da Arábia Saudita no ascenso do ISIS, à parte os comentários do secretário de estado John Kerry que pareciam reconhecer isto, dá campo ao comportamento contraditório do reino. Quaisquer que sejam os limites do poder americano, a realidade é que Washington nunca pressionou significativamente os sauditas acerca da sua cumplicidade na propagação do sectarismo ou do terrorismo anti-xiita pós 2003.

Para além destas contradições, é importante manter à vista o papel que o governo dos Estados Unidos e que o capital americano desempenharam no aumento da autocracia e das políticas discriminatórias na Arábia Saudita, em primeiro lugar.

Al-Nimr é oriundo de uma pequena aldeia chamada Awamiyya na província oriental da Arábia Saudita, um sítio com forte influência americana. É na parte oriental que vive quase toda a comunidade xiita do reino e onde quase todo o petróleo está situado. Para um regime preocupado com ameaças internas, os desafios xiitas ao poder têm significado, não só pelo seu conteúdo, mas também por causa da sua localização. O governo dos Estados Unidos e o capital americano sabem tudo isto muito bem.

Embora os interesses políticos e empresariais americanos se tenham rendido ao controlo directo dos recursos de petróleo da Arábia Saudita no começo dos anos 80, eles estiveram presentes na província oriental, no interior e em torno das comunidades xiitas, desde finais dos anos 30 e ao longo de grande parte do século XX.

Receosa da mão-de-obra saudita politicamente mobilizada em meados do século XX, a Arabian American Oil Company (que era conhecida por empregar funcionários da CIA) coordenou-se intimamente com os líderes sauditas entre 1940 e 1970 na construção de uma ordem política centralizada e discriminatória, antidemocrática e anti-operária destinada a criar corpos disciplinados e dóceis num local onde havia grande falta de legitimidade política. A verdadeira ordem política que as autoridades sauditas aspiram sustentar por meio de julgamentos espectáculo e penas capitais é o legado desta cooperação do século XX.

Os políticos americanos já não pensam em termos dos interesses de uma companhia petrolífera americana que controla o petróleo saudita. Mas os seus interesses económicos e políticos práticos mudaram muito pouco. Desde finais dos anos 70, estas ligações proliferaram, sobretudo através da venda de armas e do entrelaçar do complexo industrial bélico americano com a riqueza do petróleo saudita. Não há maior máquina para reciclar os petrodólares sauditas e do golfo árabe do que massivos e caros sistemas de armamento. Estas vendas estão largamente justificadas com a linguagem da segurança e invocando ameaças regionais como Saddam Hussein e qualquer que seja o regime que vigore em Teerão. A realidade, no entanto, é que elas são extremamente lucrativas.

Embora na última década tenham, por vezes, surgido ressentimentos com a política americana, Riade permanece comprometido na sua relação com Washington. O contrário também é verdade. Os políticos americanos continuam a ver a Arábia Saudita como indispensável não porque tenha mostrado vontade de mudar ou desenvolver uma ordem política mais inclusiva e tolerante, mas antes pelo contrário.

Reclamar democracia na Arábia Saudita ou simplesmente uma abordagem mais crítica ao modo como a política doméstica de Riade desafia a catástrofe regional seria abrir-se à possibilidade de um governo que não subordinasse os interesses dos seus cidadãos às necessidades energéticas americanas. Mas esse é um risco que o governo e o capital dos Estados Unidos não têm intenção de correr.

Tradução de Almerinda Bento para esquerda.net


Toby C. Jones é professor associado de história e diretor do Centro de Estudos do Médio Oriente na Universidade de Rutgers em New Brunswick (E.U.A)

Artigo publicado em 22/10/2014 em Jacobin Mag.

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