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Ayotzinapa ou a dissolução do Estado mexicano

O que restava do Estado de todos foi substituído e só ficou o Estado como espaço de rentabilidade do capital. As “leis da economia” converteram-se em eficaz mecanismo de dominação, leis supostamente objetivas frente às quais a esquerda institucional nada fez. Por Alejandro Nadal, La Jornada
Os crimes contra os estudantes de Ayotzinapa mostram um processo que está em marcha desde há três décadas: a dissolução do Estado mexicano. Foto de Steve Rhodes
Os crimes contra os estudantes de Ayotzinapa mostram um processo que está em marcha desde há três décadas: a dissolução do Estado mexicano. Foto de Steve Rhodes

Os crimes contra os estudantes de Ayotzinapa mostram um processo que está em marcha desde há três décadas: a dissolução do Estado mexicano. Hoje já ninguém, acho que nem no governo, trabalha com a tese de que esse crime é mais uma façanha da delinquência organizada. Com o tempo esclareceu-se a profundidade do drama: o Estado mexicano é o autor deste massacre, como foi em Tlatlaya e em tantos outros locais nos últimos anos. A advertência de Peña Nieto sobre o uso da força devia conjugar-se em tempo pretérito. A força do Estado foi usada em inúmeras ocasiões, porque um Estado em desintegração sente não ter nenhuma outra base para sustentar o status quo.

A força do Estado foi usada em inúmeras ocasiões, porque um Estado em desintegração sente não ter nenhuma outra base para sustentar o status quo.

No México, o Estado de todos e para todos foi uma aspiração que se cristalizou nalguns artigos da Constituição de 1917. Foram os artigos dos direitos sociais, os que garantiam a propriedade da terra comunal e dos baldios, bem como os direitos dos trabalhadores. Esse anseio também estava plasmado nos preceitos relacionados com a propriedade originária da Nação sobre terras e águas dentro dos limites do território, bem como dos recursos naturais no subsolo da plataforma continental.

A ofensiva contra esses preceitos fundamentais do Estado mexicano arrancou logo que terminou o Congresso Constituinte de 1917. As raízes da dissolução do Estado mexicano emanado da Revolução de 1910 estão nos pactos que travaram a mobilização de massas, unida à luta armada. E ainda que já desde os anos 40 tenha sido posta em marcha uma verdadeira contra-revolução, foi apenas em 1982 que as classes dominantes encontraram o aliado que esperavam. A crise da dívida permitiu destruir os alicerces do Estado mexicano, forçando a subordinação a um novo modelo económico que aprofundaria a exploração das massas.

O que restava do Estado de todos foi substituído e só ficou o Estado como espaço de rentabilidade do capital. As “leis da economia” converteram-se em eficaz mecanismo de dominação, leis supostamente objetivas frente às quais a esquerda institucional nada fez. Incapaz de fazer uma crítica do discurso do capital (a teoria económica), viu-se obrigada a renunciar à possibilidade de identificar e abrir trajetórias alternativas. Não pôde ou não quis dar-se conta de que essas leis económicas do neoliberalismo representavam a última degradação da política.

O modelo económico que se impôs no México a tiros e empurrões nas últimas três décadas tem duas características centrais. Primeiro, não pode oferecer desenvolvimento económico e social porque o imobilismo do Estado é a antítese das lições da teoria do desenvolvimento económico. Segundo, é um modelo desenhado para recompensar a rapacidade de uma classe que concentra cada vez mais a riqueza e o poder económico.

Hoje os exemplos de desintegração encontram-se antes de mais nada na renúncia do Estado mexicano a ser o espaço privilegiado para dirimir controvérsias. Não só em termos de proporcionar justiça aos mais fracos, como também para resolver os conflitos entre as diferentes esferas do capital. Para dizê-lo com Gramsci, no seu ensaio “A conquista do Estado”, (publicado em L'Ordine Nuovo, 1919) o Estado mexicano até deixou de ser o espaço que unifica e disciplina a classe dominante.

Os sinais da dissolução estão por todos os lados. O poder executivo está marcado pela sua ineficácia e a sua profunda letargia, exceto quando se trata de provocar e ameaçar com o uso da força “legítima”.

Os sinais da dissolução estão por todos os lados. O poder executivo está marcado pela sua ineficácia e a sua profunda letargia, exceto quando se trata de provocar e ameaçar com o uso da força “legítima”. Nas secretarias de Estado movem-se papéis de um escritório para outro, mas não há comunicação com o mundo real. O poder judicial afundou-se há anos na corrupção e na venalidade dos seus funcionários públicos: a justiça custa dinheiro e quem não o tem deve esquecer as suas aspirações de tratamento justo face à lei. O Poder Legislativo é um lugar onde senadores e deputados se reúnem não para deliberar, mas sim para passar lista e acatar instruções de cúpulas submetidas a interesses espúrios. Os partidos políticos são tristes correias de transmissão da ordem do capital e não oferecem alternativas nem oposição democrática. Incluo aqui todos os partidos das esquerdas institucionais que, como se fosse pouco, se viram hoje salpicadas pelos crimes de Ayotzinapa.

É importante analisar a dinâmica da crise orgânica do Estado mexicano. As transições históricas são quase sempre violentas. Nesses processos ocorrem com frequência os chamados e convocatórias das juntas de notáveis para retirar as castanhas do fogo aos poderes estabelecidos. Serão as expressões de uma ordem moribunda que ainda não é substituída por um novo estado de coisas. O devir histórico está marcado pela incerteza e será necessário analisar cuidadosamente a situação para inovar responsavelmente a cada passo do caminho. Mas, sem lugar a dúvidas, será necessário avançar para um mundo em que a sociedade política se submeta plenamente à sociedade civil.

19 de novembro de 2014

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

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