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As histórias de hoje

Hoje algum enfermeiro deixa as seringas, as habilidades e os conhecimentos para segurar em meia dúzia de peças de roupa e uma mão cheia de esperança e partir rumo ao desconhecido; desenganem-se os que pensam que partimos para a riqueza, antes fugimos do mau trato, da desvalorização.

É na relação diária com o mundo e com cada um dos que o habitam que se constroem as nossas mais inesperadas experiências. Esperamos o amor da família, o sorriso dos amigos, a maldade dos inimigos de ocasião; não esperamos o que traz cada esquina do nosso caminho, o que traz oculto cada rosto que desconhecemos, o que contém o desafio que inesperadamente é depositado nas nossas mãos.

Ser enfermeiro é esperar o inesperado a cada instante; as histórias, as vivências e os desafios têm diariamente um rosto e um nome diferente. Podemos antever, adivinhar ou esperar, mas cuidar é um labirinto cuja solução muda a cada tentativa.

A ciência da compreensão destes momentos dista infinitamente da exatidão, antes é uma entrega ao contacto com o outro, esperando que as mãos que cuidam e a ciência e arte que as educa sobejem de soluções.

Os episódios caricatos, as peripécias mirabolantes, os heroísmos de ocasião, diários e essenciais, as emoções inesgotáveis, as experiências únicas que se extraem do contacto diário único com tantas pessoas, sempre rechearam o quotidiano dos enfermeiros. As cicatrizes e as memórias que no peito se nos crivaram para sempre são as gargalhadas, as aflições, os sucessos estrondosos, os falhanços dolorosos.

Hoje, no entanto, o quotidiano dos enfermeiros é, como de tantos outros portugueses, de dramas pessoais; não escapando a uma vaga de destruição de um país, a um homicídio da mais ínfima esperança, a um terramoto que pretende engolir toda uma geração que ousou enfrentar os larápios de sonhos.

Hoje a Lúcia esquece os milhares que cuidou, a quem devolveu a vida ou a esperança.

“Antes de partir, amo-vos mãe, pai, irmão, irmã e avó…Imagino-me a fazer uma mala que no interior só leva saudade… Emigrar hoje porquê? Já vi este dramático filme…Dor dilacerante, quando vos vi partir pai, mãe, e eu fiquei nos braços ternos da minha querida avó…Partiram; com forte empenho em sobreviver, na esperança de nos proporcionar um futuro melhor, com mais alegria, paz e prosperidade, para nunca termos de abandonar este país… Foi em vão…

Vocês sabem que me consome trabalhar tanto e só ver migalhas sem esperança de prosperidade depois de tanto empenho e sacrifício. Mesmo tão perto de vocês, sinto me distante, enclausurada numa vida simples, reduzida ao essencial para viver sem excessos, ambições pessoais, sociais, materiais, ou sequer um dia livre para dizer o quanto vos amo.

Governada externamente por outros e internamente pela minha consciência, sinto-me a assegurar o governo dos outros e a perder o meu próprio governo, no meio de uma ponte, que tento equilibrar e não sei para onde vai pender…”

Hoje algum enfermeiro, enquanto dedicadamente e graciosamente executa a arte de cuidar, deixa vaguear nos seus pensamentos o 1º dia de creche do seu filho que perdeu por dele se ter separado, os pais doentes a quem não pode valer, os amigos que brindam na ausência chamando de longe.

Hoje algum enfermeiro deixa as seringas, as habilidades e os conhecimentos para segurar em meia dúzia de peças de roupa e uma mão cheia de esperança e partir rumo ao desconhecido; desenganem-se os que pensam que partimos para a riqueza, antes fugimos do mau trato, da desvalorização. Caminhamos despidos de ambições supérfluas, procurando o mais precioso tesouro: reconhecimento e dignidade; o que nos foi negado num país teimoso em reconhecer que necessita de nós, que insistimos em amar.

Aprendemos a lidar com o sofrimento alheio, afinal crescemos rodeados dele, e entregamos a nossa alma para que alguém sorria por breves instantes, repouse tranquilo ou simplesmente volte a ter esperança. A ignorância, no entanto, é demasiada para lidar com as feridas profundas que trespassam o coração da nossa profissão, choramos em silêncio, gritamos mudos, sofremos na penumbra, tudo porque um dia esquecemos que somos pessoas e não só enfermeiros. Zelosos, amamos um sistema que pesa em demasia em braços enfraquecidos.

As histórias caricatas, os momentos preciosos, hoje vivem-se em línguas diferentes, em terras distantes, mas sob o gesto universal que é o cuidar. Caminhamos firmes para um futuro melhor, mas sempre de olho no ombro, esperando o mais ténue acenar de um Portugal que nos lembrará como os enfermeiros que escolheu não ter.

Para o meu país trago apenas a riqueza estatística, afinal libertei mais um posto de trabalho para alguém executar por metade do preço e um décimo da experiência. Enriqueço outros braços que me acolheram, para os quais sou um brinde a preço de liquidação.

As nossas histórias não são de pena ou compaixão, essa guardamos para os que diariamente se entregam nas nossas mãos. A nossa história é de mágoa, afinal lutámos para ser os enfermeiros que Portugal e os Portugueses merecem, com distinção excedemos todas as expectativas, descobrindo no fim a armadilha da precariedade, dos cortes cegos, da desvalorização e repúdio completo pelo esforço heroico que cada enfermeiro imprime no seu quotidiano.

Seremos memórias vagas para o nosso país, de conquistas de ontem, arduamente conseguidas para os sorrisos de hoje e sempre. Seremos memória para o nosso país que um dia se lembrará de homenagear os que nascidos e educados à beira mar plantados, souberam mudar o mundo em todo o recanto menos no seu.

Nota do Autor: Agradecimento especial ao contributo de Lúcia Cardoso, e uma menção muito especial a Alexandre Tomás, presidente da Secção Regional Sul da Ordem dos Enfermeiros que honrou os Enfermeiros Portugueses em Londres com a sua visita, recordando-nos que ainda há quem nos recorde.

Sobre o/a autor(a)

Enfermeiro. Cabeça de lista do Bloco de Esquerda pelo círculo Europa nas eleições legislativas de 2019
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