Uma das perceções que o establishment político-mediático (a estrutura de poder refletida nas instituições políticas e nos maiores meios de comunicação) do país promoveu com maior intensidade foi a de que a transição da ditadura para a democracia foi exemplar pois, segundo nos dizem, passámos, sem maiores problemas, de uma ditadura a uma democracia, semelhante a qualquer outra democracia da região.
Olhe-se como se olhar, é óbvio, no entanto, que a realidade contrasta com esta visão idealizada da Transição. A democracia espanhola é uma democracia de muito baixa qualidade, constantemente gerida e vigiada pelos poderes financeiros e económicos, que marcam as agendas de comportamento das instituições chamadas representativas, definindo o que é aceitável ou não no discurso oficial do país e que determinam as políticas públicas dos partidos do governo. Há muitíssimos indicadores desta baixa qualidade. O servilismo dos meios de comunicação em relação à Monarquia e à Coroa; a falta de diversidade ideológica destes meios, com uma clara discriminação dos autores críticos do sistema de poder (de classe e de género) existente no país, com a quase ausência de meios de comunicação de esquerda; o sistema eleitoral, que produz instituições pouco representativas; a escassa capacidade redistributiva do Estado; a sua grande regressividade e a elevada fraude fiscal; a sua limitadíssima dimensão social, com uma grande pobreza das transferências (como as pensões) e serviços (como a Segurança Social e a educação) públicos do Estado do Bem-estar; a sua elevada e massiva corrupção; a quase inexistência de formas de participação democrática direta, como os referendos; e a escassa democratização dos partidos, capturados por aparelhos que se eternizam, transformando a política numa politiquice entre elites partidárias. Todos estes factos, e outros, mostram o enorme défice democrático que há em Espanha, e que se deve a que, ao contrário do que indica a sabedoria convencional do país, não tenha havido nada de exemplar naquela transição. Na realidade, foi o oposto disso.
A democracia espanhola é uma democracia de muito baixa qualidade, constantemente gerida e vigiada pelos poderes financeiros e económicos, que marcam as agendas de comportamento das instituições chamadas representativas
E é lógico e previsível que não tenha sido exemplar, pois a Transição foi feita em termos muito desiguais. Num lado da mesa de negociação estava a direita espanhola (que em termos europeus era, e continua a ser, equivalente à ultradireita no leque parlamentar europeu), herdeira dos grupos e classes dominantes existentes durante a ditadura, que controlavam o Estado ditatorial e a maioria dos meios de informação e persuasão. Do outro lado da mesa estavam as esquerdas, que tinham liderado as forças democráticas e que acabavam de sair da clandestinidade, da prisão ou do exílio. Não era uma negociação entre iguais. Fez-se sob o domínio dos primeiros. Como consequência disso, não houve uma rutura com o Estado anterior, mas sim uma abertura daquele Estado para integrar predominantemente o PSOE dentro dele, graças a um sistema eleitoral que favorecia o bipartidarismo. A ausência de rutura ficou plasmada no enorme domínio que a direita pós-franquista continuou a ter no aparelho do Estado. A maioria das elites dos diferentes ramos do Estado eram personagens profundamente conservadoras, quando não nostálgicos do regime anterior. Desde o sistema judicial até às instituições paraestatais, como as Reais Academias, havia um domínio das direitas ultranacionalistas espanholas de todos estes aparelhos, os quais foram se abrindo para receber e cooptar indivíduos pertencentes às esquerdas maioritárias dirigentes, estabelecendo um Estado bipartidário sob o domínio político e a hegemonia ideológica conservadoras. Uma característica deste domínio era a ideologia que o aparelho de Estado transmitia, definindo como utopia irrealizável, fantasiosa, demagógica ou qualquer epíteto pejorativo (dos muitos que a direita utiliza na sua narrativa vulgar e profundamente agressiva) qualquer política pública alternativa (fosse económica ou social) que questionasse a sabedoria convencional promovida ao serviço dos interesses económicos e financeiros que tutelavam esse Estado. A continuidade da estrutura de poder dentro do Estado e dos seus comportamentos foi avassaladora. Um sintoma disso é a permanência da corrupção e a sua grande extensão.
Quando surge o descontentamento com este estado de coisas?
As novas gerações que foram aparecendo questionam a escassa democracia existente em Espanha. O seu desejo não era só deixar a ditadura para trás, como tinham tentado as gerações anteriores, como também criar uma democracia bem mais desenvolvida, o que requeria uma rutura ou uma transformação profunda das estruturas do Estado herdado da ditadura, ainda controlado pelas forças conservadoras, que dificultam a realização deste desejo. Já para não falar que houve no período pós-transição mudanças significativas e notáveis que afetaram positivamente o bem-estar da população, estabelecendo-se o Estado do Bem-estar, incluindo, por exemplo, o Sistema Nacional de Saúde. Mas o domínio conservador explica que este tenha continuado muito pouco financiado, sendo a Espanha um dos países com um dos gastos públicos mais baixos na área da saúde e um dos gastos privados mais altos nesta área, na UE-15. Em Espanha gastava-se e continua a gastar-se em segurança social, por exemplo, muito menos do que se deveria, tendo em conta o seu nível de riqueza económica.
O crescimento da consciencialização das insuficiências do Estado (e muito em particular do Estado do Bem-estar) foi a par e passo com a tomada de consciência de que o Estado não representa os interesses da população, mas sim os interesses financeiros e empresariais entrelaçados com o Estado. Este casamento apareceu com toda a intensidade quando começou a crise, respondendo o Estado a ela com medidas não enunciadas nas promessas eleitorais dos partidos dirigentes. Esta foi a origem do 15-M, que com os seus slogans definiu bem a natureza do problema. “Não nos representam”, “Não há pão para tanto chouriço”, “Chamam-lhe democracia e não é” e um longo etcétera. A maioria da população cedo se identificou com este movimento, chamado de os indignados, concordando com a sua denúncia do estado de coisas no país.
Esta reivindicação de uma autêntica democracia é hoje um ataque frontal ao establishment político e mediático que domina o país.
A maturidade desse movimento foi a causa do surgimento do Podemos, cujo slogan é um apelo à mobilização e à ação, com plena consciência do poder da população quando se mobiliza. Esta mobilização exige uma Segunda Transição, que consiste na plena realização da democracia em Espanha e que passa não só por uma mudança profunda da via representativa (incluindo os partidos políticos), mas também por uma introdução e expansão da democracia, com o estabelecimento em todos os níveis do Estado (seja a nível central, autonómico ou local) de formas de democracia direta, incluindo referendos, que sejam a expressão do que se veio a chamar direito a decidir. Este direito tem de se basear no direito a eleger, com plena exposição de todas as sensibilidades políticas dentro de um leque mediático plural e autenticamente democrático. Esta reivindicação de uma autêntica democracia é hoje um ataque frontal ao establishment político e mediático que domina o país.
Esta exigência de democracia real é incompatível com as elevadas desigualdades em termos de riqueza existentes no país, umas das maiores na UE-15. O abusivo poder da banca, por exemplo, sobre os partidos e sobre os média, limita, vicia e corrompe a democracia atual. Como também a corrompe a cumplicidade das elites financeiras e empresariais com os partidos políticos, principal causa da corrupção no país. E é nesse campo que as reformas políticas deveriam realizar-se. Esta corrupção é intrínseca à natureza do Estado herdado da ditadura, pois é o próprio Estado que protege estes interesses financeiros e económicos à custa dos interesses gerais. As políticas neoliberais de austeridade e de reformas laborais regressivas impostas pelo Estado à população são um indicador disso. Tudo isto explica que, em Espanha, a pessoa que não esteja indignada é a que não sabe bem o que acontece neste país. Daí que o 15-M tenha sido seguido pelo Podemos, que tenta canalizar esta indignação. E como era e é previsível, a resposta do establishment foi a de defini-lo como um movimento utópico, com propostas “irrealizáveis”, “fantasiosas” e outros insultos, quando, na realidade, a maioria são propostas muito razoáveis e de senso comum. É um sinal da deterioração do sistema chamado democrático em Espanha que o senso comum se tenha convertido numa força ameaçadora para a continuidade do sistema político mediático atual.
5 de novembro de 2014
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net