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O governo vive num permanente descaso entre o que diz e o que faz

A ética social na austeridade e a proteção das famílias, de que tanto se vangloria a maioria de direita, é um vazio e indigno instrumento de propaganda.

Vou começar, de uma forma algo inusitada, com uma longa citação.

É sabido que, em qualquer sociedade, os mais velhos, as crianças e os deficientes são sempre os que pagam um preço mais elevado pela crise, e por isso defendo que é importante que o Estado reforce os mecanismos de proteção relativamente a estes grupos.”

Quem o disse, em fevereiro deste ano, foi o mesmo primeiro-ministro que, perante a maior crise social vivida pelo país em décadas, cortou o abono de família, cortou rendimento social de inserção e o complemento solidário para idosos, tirou o subsídio de desemprego e subsídio social de desemprego a largos milhares de pessoas, cortou no fundo de garantia de alimentos devidos a menores, no complemento por dependência de 1º grau e subsídio de funeral, restringiu o apoio aos alunos com necessidades educativas especiais e que acabou com os descontos universais nos passes sociais para crianças, jovens e idosos.

Repito a frase de Passos Coelho: “é importante que o Estado reforce os mecanismos de proteção aos grupos mais frágeis”. É isto a ética social na austeridade e a proteção das famílias, de que tanto se vangloria a maioria de direita: um vazio e indigno instrumento de propaganda. O governo vive num permanente descaso entre o que diz e o que faz.

Os números, embora não contem a história individual da degradação da qualidade de vida destas famílias, falam por si. 3 em cada 10 crianças em Portugal vivem em situação de carência; 3 em cada 10 das famílias monoparentais e quase metade das famílias com 3 ou mais filhos vivem na pobreza. A tenaz do governo pressiona as famílias pela combinação do corte nos apoios económicos e sociais e com o aumento da carga fiscal.

Uma família com salário médio viu a sua carga fiscal aumentar 30%. Ao mesmo tempo perdeu direito ao abono de família, o passe do autocarro das crianças mais que duplicou, a conta da luz disparou. E assim uma vida de contas difíceis, sempre tiveram contas difíceis as famílias com rendimentos médios em Portugal, transforma-se numa vida de contas impossíveis.

E quem está já preso no rolo compressor das contas impossíveis? Uma família sem rendimentos, vítima como tantas do desemprego de longa duração, viu a demagogia populista do CDS à qual se atrelou o PSD, virar a sua fúria contra ela. Os beneficiários do rendimento social de inserção, instrumento que já se revelou central entre outras matérias para combater o abandono escolar, são os suspeitos do costume para o ministro Mota Soares.

Em apenas 3 anos, e com os índices de pobreza a aumentar, principalmente entre as crianças, há menos 166 mil pessoas a receber o RSI e o seu valor médio desceu 78 euros. No caso das crianças a queda nestes apoios é ainda mais chocante. De um valor médio de 94 euros por cada menor, a direita “amiga das famílias” cortou o apoio às crianças que já perderam quase tudo para 53 euros. 53 euros. Menos do que custa o jardim infantil.

Não vale a pena repetirem a lengalenga do costume que há maior rigor e fiscalização. O RSI, até pela despudorada demagogia que o CDS sempre lhe reservou, foi sempre o dinheiro público mais fiscalizado e monitorizado. Reservasse a direita um terço do critério que dedica ao RSI na concessão de perdões fiscais ou benefícios a grandes empresas e os cofres públicos estariam bem melhor.

Não. O que temos é uma política de perseguição social aos mais desfavorecidos, encarados como uns madraços que não querem trabalhar à borla nos mirabolantes programas inventados por esta mesma maioria, e uma tentativa de fazer da pobreza um negócio.

É uma visão assistencialista, que defende que os pobres não devem ser apoiados monetariamente para viver em autonomia, e contrapõe com a humilhação do pagamento em géneros. Para esta direita, os pobres, já se sabe, não têm competências para decidir onde gastar o seu dinheiro. E, à medida que o governo vai desmontando as políticas públicas e transferências sociais que permitiram reduzir o risco de pobreza para metade, vai crescendo um negócio de centenas de milhões. Milhões que mal são fiscalizados, dos quais não se conhecem os seus resultados e impacto real. Tostões para quem mais necessita, milhões para quem vive do zelo destruidor do Estado, eis a política da direita no seu esplendor.

Mas eis que, quando todos os números e relatórios nos dizem que se assistiu ao agravamento das condições de vida e a uma menor proteção das famílias e crianças, aparece o governo a acenar com uma fiscalidade amiga das famílias. Percebemos. A certidão de óbito, assinada e selada, do partido do contribuinte, precisa de mentiras novas.

Vejamos.

Diz o governo que com as novas alterações no IRS vai devolver 150 milhões de euros às famílias. 150 milhões, reparem, ou menos de metade dos 330 milhões que tirou no abono de família. Com amigos destes…

Dúvidas existissem sobre o gigantesco número de propaganda que foi esta reforma do IRS, a telenovela que se lhe seguiu foi esclarecedora. O Governo apresentou uma proposta, que para dar um pouco às famílias com dois ou mais filhos, fazia todos os outros (86% dos contribuintes) pagarem mais. Que não, dizia o secretário de estado, é tudo invenção dos jornais e da oposição, que sim, reconheceu o primeiro-ministro, mas vamos garantir uma solução informática que vai fazer com que ninguém seja prejudicado. Estamos mais descansados, o historial deste governo com computadores, da Justiça à colocação de professores, tem tudo para resultar em cidadãos a pagarem os seus impostos 95 vezes.

Declaração política na Assembleia da República a 23 de outubro de 2014

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Atriz.
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