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Passos in Wonderland

Importa perguntar se, com o Orçamento do Estado para 2015, Passos Coelho se dirige às crianças ou aos adultos.

Como no fantástico livro de fantasia "Alice no País das Maravilhas" ("Alice in Wonderland"), escrito por Lewis Carrol em 1865, o registo nonsense deste Orçamento cresce na confusão entre um magnífico conto infantil e uma aventura trágica para os mais crescidos, nomeadamente aqueles que já pagam impostos de mais e vão pagar mais impostos do que nunca. A partir do momento em que Alice cai na toca do coelho (sim, um coelho) e é conduzida para um lugar de fantasia onde a realidade se confunde com a ficção, transporta-nos para um nó cego sem paralelo, repleto de enigmas. Terá sido por boas razões que Charles Dogson escreveu a sua obra mais popular sob pseudónimo: da sua toca, no seu último ano antes das eleições legislativas, Passos Coelho ainda escreve este Orçamento em nome da troika.

Seria irrealista esperar que um governo que sempre apresentou orçamentos inconstitucionais ao país tivesse agora um golpe de asa quando os sinos tocam a finados. Ninguém esperaria milagres de quem trabalhou anos na submissão, quase na clandestinidade, à mercê de um conjunto de especuladores que impuseram o empobrecimento dos mais pobres e o definhar da classe média em Portugal. O que talvez não fosse expectável seria que a última proposta de Orçamento deste Governo fosse tão translucidamente mentirosa, fazendo tábua rasa da realidade e atacando a inteligência das pessoas da mesma forma vil como lhe vai aos bolsos. Não é uma paródia mas podia. Não são fantásticas páginas de aventura mas são novos capítulos de um aventureirismo político capaz de fazer corar de vergonha os mais demagógicos populistas. Dupla missão. Mente, invertendo a realidade, para chegar às eleições e enredar o próximo Governo em compromissos de embuste. Diz a verdade sobre si, não disfarçando o braço dado com a troika e o compromisso com o fim do Estado social. Embrulha-se entre o irrealizável e o inatingível, acenando com doces que todos sabemos que estarão fora de prazo no momento de retirar o plástico. É um orçamento tão poluente que nem percebeu que o "bom exemplo" alemão, à luz dos últimos dados sobre a economia alemã é, também ele, uma mentira bem contada.

O relógio digital que Paulo Portas inaugurou em Dezembro de 2013 para contar os dias e minutos para a saída da troika de Portugal ainda estará num qualquer armazém. Tragam-no de volta e vamos lá fazer as coisas outra vez, agora como deve ser. A troika só sairá do país, com sorte, quando o défice for inferior a 3%. Esqueçam lá o 17 de Maio de 2014 e as pré-comemorações com champanhe de Nuno Melo. Até lá, este Governo, enquanto promete a devolução da sobretaxa de IRS em 2016 (pelo próximo Governo!) caso cobre mais mil milhões de IRS e IVA em 2015 (!), não aumenta uma vírgula ao investimento público, impõe um tecto incompreensível nas prestações sociais que permitirá poupar cerca de 100 milhões à custa da pobreza no país da Zona Euro com mais pobreza infantil, aumenta a carga fiscal para níveis nunca antes atingidos (quando, desde que chegou ao poder, aumentou os impostos sobre o trabalho em 30% e diminuiu em 20% a tributação dos lucros dos maiores grupos económicos), corta mais de 700 milhões de euros na educação (quando Portugal é o país que menos investe na educação em toda a Zona Euro).

Mas o que mais assusta é a capacidade deste Governo para ler o país ao contrário. Sem respeito. Apontando para um crescimento da economia de 1,5%, para o aumento em contra-ciclo do IRC, para o incremento das exportações em 4,7% e para a diminuição do desemprego em 2%, o que nos fazem é um ataque à inteligência. Este Orçamento do Estado não nasce de um desejo nem de um sonho, é mentiroso por opção. Nasce de uma fantasia em que se profetiza uma receita fiscal que é o triplo do crescimento económico que se prevê! A cereja no topo do bolo é o intolerável aumento das pensões mínimas em 2 euros por mês (por deferência, a meu pedido, releiam esta frase). A diferença entre este Orçamento e o insulto é uma ténue linha de crédito. Como todos sabemos, já nem essa ténue linha existe.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 21 de outubro de 2014

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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