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Modiano, profissão: vaporizador

Prémio Nobel da Literatura sabe aureolar o menor acontecimento com uma nuvem de mistério. Dono de uma escrita cada vez mais despojada, minimalista, a bruma insinua-se entre linhas, apagando as fronteiras tradicionais entre o real e a ficção. Por Denis Cosnard
Jean Patrick Modiano: “É o milagre da ficção, sirvo-me dele para vaporizar certos momentos, certos lugares da minha juventude, sim, é a palavra, vaporizar”.

Não digam a ninguém, sobretudo ao júri do Prémio Nobel, mas distinguiram na quinta-feira, 9 de outubro, um escritor de um género muito particular: um fabricante de nevoeiro. O homem que sabe aureolar o menor acontecimento com uma nuvem de mistério. O mais dotado dos vaporizadores.

Patrick Modiano gastou tempo a polir a sua técnica. Os seus primeiros textos não têm nada de algodão. “La Place de l’étoile”, que o deu a conhecer em 1968, é um romance copioso, barroco, divertido e violento, sibilante, afiado. Mas pouco a pouco o jovem foi limando asperezas. A sua escrita tornou-se cada vez mais despojada, isto é, minimalista. E a bruma insinuou-se entre linhas, apagando as fronteiras tradicionais entre o real e a ficção.

Uma bruma de composição cuidadosamente doseada. As matérias-primas de Modiano? Sempre as mesmas. A sua história, as dos seus pais, os negócios duvidosos do pai, as suas recordações de menino desabrigado. E uma panóplia de assuntos mais ou menos sórdidos, unidos com frequência à Ocupação, a “noite original” que o atormenta.

O escritor mistura estes elementos. Amassa-os, tritura-os, filtra-os, fá-los estoirar em finas chispas.

O escritor mistura estes elementos. Amassa-os, tritura-os, filtra-os, fá-los estoirar em finas chispas. “É o milagre da ficção, sirvo-me dele para vaporizar certos momentos, certos lugares da minha juventude, sim, é a palavra, vaporizar”, explicava ao Nouvel Observateur em 2007.

Um romance quase policial

O seu último romance, “Pour que tu ne te perdes pas dans le quartier” [Para que não te percas no bairro] (Gallimard, 148 páginas) não escapa a essa regra. A personagem principal é um escritor que tem o primeiro nome próprio de Modiano, Jean, e se parece com ele como um irmão. Pouco a pouco, é apanhado pelo seu passado, nesses anos 1951-1952 em que os seus pais o abandonaram em mãos pouco recomendáveis.

Esta história tinham-na visto já os fiéis de Modiano em duas versões. Em “Remise de pente” (1988), o escritor transformara-a num relato comovedor, metade conto de fadas, metade lápide em memória do seu irmão. Depois consagrou-lhe duas páginas secas e pungentes de “Un Pedigree” (2005), a sua autobiografia.

Nesta ocasião, fez dela a base de uma espécie de romance policial bastante obscuro. Modiano acrescenta-lhe muitas outras partículas oriundas de um passado ainda mais longínquo. O endereço do nº 73 do Boulevard Haussmann era de um escritório do pai de Modiano após a guerra.

O nº 42 da rua de l´Arcade albergava, durante a Ocupação, um restaurante considerado como guarida da Gestapo. Torstel, misteriosa personagem no coração do romance, era na mesma época o pseudónimo de Andreas Folmer, agente duplo que regia um “escritório de compra” por conta dos alemães na Avenida Foch; talvez o pai de Modiano a tenha conhecido.

Quanto a Chantal Grippay, conhecida como “a Chinesa”, principal figura feminina do conto, o autor foi buscá-la ao caso Petiot, com os seus olhos ligeiramente rasgados, o seu alojamento parisiense na rua de Charonne e a sua “roupa de andorinha”. Esta prostituta marselhesa foi em 1944 uma das vítimas do sinistro doutor Petiot, que fingia conhecer uma forma segura de fazer clientes seus atravessar a fronteira, exigindo o pagamento antecipado, e que depois os incinerava numa caldeira. A sua roupa foi encontrada, o que permitiu a identificação. Detalhe importante: Chantal Grippay vivia com “Adrien o basco”, um dos homens da famosa Gestapo francesa da rua Lauriston, que tanto fascinou o escritor.

Todo o Modiano está aí, nesta forma tão surpreendente de misturar a sua história íntima e acontecimentos aterradores que fazem regressar as horas mais negras da Ocupação.

À primeira vista, é difícil assinalar tudo isto. Mas não é por acaso que o escritor semeia estes nomes, esses endereços, esses velhos números de telefone. São chamadas de um farol ou sinais de morse dirigidas a certas pessoas”, escreve ele mesmo no seu romance.

São também, para os seus leitores, pontos que surgem do nevoeiro e dão aos seus relatos um matiz que não se parece a nenhum outro.

12/10/14

Denis Cosnard é, desde 2012, jornalista da secção económica de Le Monde e trabalhou antes para o diário financeiro Les Echos. Apaixonado pelo trabalhodo recente Prémio Nobel, publicou em 2010 o ensaio “Dans la peau de Patrick Modiano” (Fayard, Paris).

Publicado originalmente no Le Monde

Tradução de Lucas Antón para a Sin Permiso.

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

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