Que avaliação faz da primeira volta das eleições, considerando a queda de Marina e a diferença de 8% entre Dilma e Aécio? Como o senhor interpreta esse resultado?
Fiquei surpreso não com o facto de Aécio estar na segunda volta, mas com a diferença entre Dilma e Aécio, que foi pequena, de 8%. Acredito que essa situação se explique pela combinação de alguns fatores que são mais determinantes. O primeiro deles tem a ver, evidentemente, com um grande nível de insatisfação popular com o atual momento económico, que acaba se transferindo para uma insatisfação com o governo federal. É uma insatisfação que, diga-se de passagem, já conseguimos identificar desde junho de 2013, quando o índice de aprovação do governo Dilma caiu de 59% para 30% e a partir de então se recuperou muito pouco. Então existe, de facto, no país, uma situação em que a massa da população encontra-se insatisfeita com a atual situação económica e política. Evidentemente essa insatisfação se traduz eleitoralmente, ou seja, houve uma tradução dessa insatisfação eleitoral no primeiro turno.
Qual é a surpresa? A surpresa é a relação com a Marina Silva, que após a morte do Eduardo Campos assumiu a candidatura pelo PSB, e em grande medida atraiu o eleitorado insatisfeito com o governo federal. Essa distribuição foi muito nítida quando Marina, logo após ser lançada, atraiu uma quantidade enorme dos votos daquelas pessoas que recebem entre dois e cinco salários mínimos – ela ganha de Dilma nesse aspecto -, e dos eleitores mais jovens. Então, essa massa de milhões de eleitores foi atraída por Marina. Logo em seguida, ela recebeu o reforço de uma massa grande de jovens de classe média alta e da elite, os quais viam em Marina uma possibilidade real de vencer a eleição e de derrotar a Dilma e o PT. Houve até um momento, em setembro, que se imaginava que Marina poderia vencer Dilma no primeiro turno.
Durante esses dois meses de campanha, Marina apresentou-se como alternativa ao PT. No entanto, como o PT adotou, como tática central, centrar fogo na Marina, e a própria candidata não teria condições de manter essa aliança entre setores de classe média alta e setores populares que ganham entre dois e cinco salários mínimos, o que aconteceu foi uma desidratação progressiva da Marina, que se acelerou no final. Os votos que ela havia ganho dos eleitores de Aécio retornaram para ele e, nesse movimento de desidratação, os indecisos decidiram, na última hora – e essa é uma característica do eleitorado brasileiro -, apoiar Aécio. O que explica a nossa surpresa passa por esses fatores, ou seja, uma insatisfação com o governo, a candidatura de Marina ter atraído e depois repelido votos, os indecisos que se inclinaram num volume maior pela oposição, e a própria campanha eleitoral do PT de criticar única e exclusivamente Marina Silva e não Aécio Neves, explicam de facto o primeiro turno.
Por que diz que Marina não teria condições de manter uma aliança entre a elite e os setores populares? O PT não fez isso ao longo dos últimos 12 anos? O que diferenciaria o governo dela do que foi o do PT nesse aspecto de manter alianças com a elite e os setores populares?
A posição da Marina ficou insustentável, porque o discurso dela era um discurso em que as propostas concretas eram propostas para o mercado financeiro, para os investidores. Para a massa popular, que é a massa que definiria a segunda volta, ela tinha um discurso muito frouxo, abstrato. E por isso não tinha condições de garantir essa relação por muito tempo.
É porque ela não tinha o que dizer para a massa que ganha entre dois e cinco salários mínimos, a não ser algo muito abstrato. Em bom rigor, até para que ela conseguisse se firmar como uma candidata viável do ponto de vista eleitoral, ela tinha de prioritariamente atrair o apoio de eleitores com muito dinheiro. Normalmente ela fez isso a partir da mediação do mercado financeiro e acabou apresentando-se e apresentando um programa que refletia essa dependência e carência do apoio da elite, dos setores endinheirados, dos bancos, das elites. E numa situação como essa em que o país passa por um momento de desaceleração económica, num momento em que há uma polarização mais acentuada no país em termos de luta redistributiva, ou seja, de quem controla o orçamento do Estado e para onde vai o orçamento, num momento em que é preciso apresentar propostas que seduzam setores da sociedade, que são setores com interesses distintos, essa posição da Marina ficou insustentável, porque o discurso dela era um discurso em que as propostas concretas eram propostas para o mercado financeiro, para os investidores. Para a massa popular, que é a massa que definiria a segunda volta, ela tinha um discurso muito frouxo, abstrato. E por isso não tinha condições de garantir essa relação por muito tempo.
Por que os partidos com uma proposta mais de esquerda não tiveram projeção, considerando que eram terceira via a essa polaridade entre PT e PSDB?
O PSOL foi bastante bem-sucedido este ano, porque dobrou sua votação em comparação com a eleição de 2010 e isso é um reflexo do que aconteceu em junho do ano passado. Nesse sentido, diria que o PSOL, com a candidatura da Luciana Genro, foi bem-sucedido na sua empreitada.
Agora, a razão para que partidos de esquerda, como PSOL, PSTU, PCdoB, não consigam uma expressão eleitoral mais aguda tem a ver com causas que são ao mesmo tempo estruturais, ligadas ao financiamento de campanhas, e causas mais específicas, que têm a ver com o programa de cada um desses partidos, que são mais radicais e mais à esquerda. Do ponto de vista da psicologia das massas, sempre que aparecer, com exceção de situações de crises agudas, uma alternativa mais moderada, as massas tendem a se aproximar de posturas mais moderadas e a repelir posturas mais radicais. Então, vejo uma combinação de dois fatores: um tipo de sistema eleitoral que tem um financiamento de campanha que é absolutamente antidemocrático e antirrepublicano, porque são basicamente as empresas que financiam as campanhas e elas colocam milhares de milhões em candidatos que são aqueles que lhes parecem mais razoáveis, descontando imposto sobre rendimento, ou seja, fazem isso com dinheiro público – estima-se que a candidatura da Dilma tenha custado 500 milhões de reais e isso é absolutamente injusto em relação a candidaturas de outros como Luciana Genro; e, por outro lado, se tem um perfil de partidos de esquerda que são mais radicais.
Enfim, é mais fácil para a população achar que os problemas serão resolvidos simplesmente apertando o sinal verde numa máquina e votando em Dilma, Aécio ou Marina, que prometem resolver todos os problemas a partir do ano que vem, do que votar numa candidata que diz que tem de taxar os ricos, ou em outro candidato que diz que não há mudança sem mobilização nas ruas. Apesar disso tudo, a votação do PSOL me deixou bastante impressionado em termos dessa eleição, porque houve uma votação razoável e a bancada da Câmara aumentou. Além disso, há situações regionais particulares, como a eleição de Marcelo Freixo, e tudo isso contribui para fortalecer posições de esquerda.
Como vê o apoio declarado do PSB e do PV à candidatura de Aécio? Os eleitores desses partidos tendem a votar no candidato do PSDB? Qual é o peso desse apoio à candidatura de Aécio?
A minha aposta é que, ao longo dessas três semanas de campanha para a segunda volta, não haverá um candidato que fuja da margem de erro do empate técnico entre os dois candidatos.
Faço a seguinte avaliação e posso estar errado, mas entendo que os votos de Marina Silva, os quais vieram durante a campanha do primeiro turno daqueles que intencionavam votar em Aécio Neves, já migraram de volta para ele. O perfil do voto da Marina é bastante parecido com o que ela obteve em 2010: à época, 55% dos votos de Marina foram para José Serra e 45% para Dilma. Este ano, o que se tem é uma situação económica deteriorada e muito pior do que a de 2010, um quadro político mais polarizado e, nessa situação, seria razoável supor que 70% do voto de Marina vá para Aécio e 30% para Dilma, apesar de o perfil do eleitor de Marina não ser o mesmo perfil do eleitor de Aécio; eles têm diferenças por conta dessa fatia mais popular do eleitorado. Nesse sentido, se acompanharmos um pouco a lógica dessa eleição e do eleitorado da Marina nessa eleição, me parece supor que a maior parte dos votos irá para Aécio, mas uma parte importante ainda deve ir para Dilma, o que faria com que essa eleição fosse muito imprevisível e disputada voto a voto. Minha aposta é que, ao longo dessas três semanas de campanha para a segunda volta, não haverá um candidato que fuja da margem de erro do empate técnico entre os dois candidatos.
Entre as comparações entre PT e PSDB, diz-se de modo geral que o PSDB atende aos interesses do capital, do setor empresarial, ao passo que o PT atende aos interesses dos trabalhadores e tem uma agenda social, apesar de ter recebido várias críticas por desenvolver uma política económica semelhante à do PSDB, a qual gera um impacto nas políticas sociais. Considerando essas questões, o que diferencia os partidos? Essas diferenças são reais ou fazem parte do imaginário coletivo? É possível separá-los como direita ou esquerda, ou são dois tipos de social democracia?
Existe de facto uma convergência em termos de política macroeconómica, porque tanto PT quanto PSDB são variações de um mesmo modelo de desenvolvimento económico muito focado no sistema financeiro, na independência do Banco Central, na defesa da taxa de câmbio flutuante. Ambos também adotam um tipo de relação promíscua entre a dívida pública e os financiadores privados. No entanto, existe uma diferença se analisar a base social de cada um dos partidos. O PT, por mais que se aproxime do PSDB em termos macroeconómicos, tem uma base social formada pela CUT e os movimentos sociais e isso faz toda a diferença quando se pensa no ajuste do mercado de trabalho, na proteção trabalhista, na própria postura do governo em relação ao salário mínimo e nas políticas sociais de inclusão. O PT no governo produziu um tipo de relação de dominação que, do ponto de vista dos setores dos trabalhadores organizados e dos movimentos sociais, reflete de uma forma distorcida uma agenda que é a agenda dos movimentos sociais e do movimento sindical, ainda que muito aquém das necessidades, ou seja, daquilo que seria o desejo dos setores mais progressistas. Em contrapartida, o PSDB é uma tragédia em termos de base social, ele é a ave de rapina do mercado financeiro, e uma vitória de Aécio seria uma tragédia do ponto de vista do movimento sindical e social.
O que vislumbra na agenda do trabalho num possível governo Dilma ou Aécio?
Tanto num governo Dilma quanto num governo Aécio haverá um ajuste no mercado de trabalho: muito provavelmente a taxa de desemprego deve subir com um ou com outro, porque tanto um quanto o outro farão ajustes em preços regulados pelo governo, o que supõe um aumento da taxa de juros para controlar a inflação, ou que supõe um choque em termos de recessão, ou que supõe despedimentos. No entanto, o ajuste com Dilma tende a ser menor do que com Aécio. As primeiras medidas do governo dele serão antipopulares e cujo resultado será o aumento do desemprego e da taxa de juros, ajuste das contas públicas, ou seja, uma agenda neoliberal stricto sensu, e com Dilma isso tende a ser menos agudo e mais negociado.
O Projeto de Lei 4330 sobre a terceirização [subcontratação] de trabalhadores com recurso, que se arrasta desde os anos 90, corre o risco de ser aprovado caso algum dos candidatos seja eleito?
Na vitória de Aécio, sim. Com Dilma aconteceria o que tem acontecido nesses últimos anos. Sandro Mabel, autor desse projeto de lei, é do PMDB de Goiás e faz parte da base governista, mas seu projeto não foi aprovado por conta das articulações com a bancada governista e a pressão do governo. Caso Aécio ganhe, essas pressões serão eliminadas e há chances de que o projeto seja aprovado.
O senhor mencionou num artigo recente que “um espectro ronda o mundo do trabalho no Brasil, o espectro do fim da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)”. Quais as evidências que demonstram a possibilidade de risco aos direitos garantidos na CLT?
Basicamente se tem, de um lado, ameaças políticas em relação ao PL 4330 e, por outro lado, o recurso que está sendo julgado no Supremo Tribunal Federal. Essas são as duas ameaças mais imediatas. O recurso da empresa de celulose, que está sendo julgado no Supremo, é uma ameaça mais premente porque autorizaria a terceirização na atividade fim, modificando de forma radical o sistema regulatório de proteção laboral no país. Caso isso aconteça, terá se estabelecido no país a possibilidade do modelo de flexibilização total, o que significa que, por exemplo, haveria empresas que não teriam um único funcionário e todo o quadro funcional seria terceirizado. Basta ver os números para saber que os trabalhadores terceirizados recebem 30% menos do que os contratados diretamente, estão mais sujeitos ao desrespeito à legislação trabalhista, têm muito mais incidência em acidentes de trabalhos, ou seja, ainda que a CLT não fosse rasgada e queimada, esse recurso da empresa de celulose, caso seja aprovado, significaria praticamente o fim da CLT enquanto proteção do trabalho, porque o modelo de terceirização total impede que haja uma proteção efetiva do trabalho no país.
Por que não foi possível avançar em relação aos direitos trabalhistas da CLT, nem rediscutir a jornada de trabalho no governo do Partido dos Trabalhadores nos últimos 12 anos?
O PT abstém-se em todos os grandes debates, as grandes questões do movimento social e sindical no que toque ao interesse de classe, ou seja, ao confronto entre trabalhadores e capitalistas. Esse estilo de política, de fazer uma política redistributiva de renda sem tocar nos interesses do mercado financeiro, bloqueou qualquer avanço na CLT, o que significaria um aumento dos níveis de proteção no trabalho e, por outro lado, uma diminuição dos lucros dos capitalistas.
A explicação para isso basicamente é a explicação do modelo de regulação que o PT implantou, basicamente um modelo de evitar um confronto com os setores capitalistas, com os proprietários dos meios de produção no país. O PT abstém-se em todos os grandes debates, as grandes questões do movimento social e sindical no que toque ao interesse de classe, ou seja, ao confronto entre trabalhadores e capitalistas. Esse estilo de política, de fazer uma política redistributiva de renda sem tocar nos interesses do mercado financeiro, bloqueou qualquer avanço na CLT, o que significaria um aumento dos níveis de proteção no trabalho e, por outro lado, uma diminuição dos lucros dos capitalistas. O PT se absteve por conta do modelo de regulação que ele próprio construiu; é o tipo de política que procura satisfazer algumas demandas populares, mas sem tocar nos interesses do grande capital brasileiro.
Esse modelo tem na CLT um dos seus limites mais explícitos, ou seja, a jornada de trabalho brasileira continua uma das mais longas do mundo, uma jornada semanal de 44 horas, o salário mínimo continua baixo apesar de ter se recuperado no último período e ainda existe um nível muito grande de informalidade no mercado de trabalho brasileiro. Se você olhar para o que foi criado em termos de direitos trabalhistas nos últimos 12 anos, é praticamente zero. A única vitória foi a equiparação dos direitos das trabalhadoras domésticas aos demais trabalhadores e, ainda assim, isso não foi regularizado no Congresso. Então, se tem um estilo de governo que impediu avanços na área trabalhista.
Entre as críticas feitas ao PT, fala-se da relação de cooptação com os movimentos sociais. Caso Aécio seja eleito, vislumbra uma nova relação entre as centrais sindicais e o Estado no sentido de se retomar uma agenda e uma postura mais combativa e menos aparelhada?
As duas únicas centrais que acompanhariam isso seriam a Central Única dos Trabalhadores - CUT e a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil - CTB, porque a Força Sindical já apoia Aécio e as demais centrais criadas são pelegas e simplesmente acompanham a maré. Então, aconteceria, sim, uma radicalização, ou um realinhamento no caso da CUT e da CTB. A CUT voltaria para uma situação de oposição, principalmente no tocante ao serviço público ou sindicalismo bancário, ou aquele tipo de ação sindical mais próximo ao Estado. Nesse caso, sim, prevejo que a CUT e a CTB se posicionem na oposição. As demais centrais, com exceção da Central Sindical e Popular CSP-Conlutas – que já é de oposição e sempre foi de oposição -, já estão praticamente alinhadas com a candidatura de Aécio.
Que políticas seriam necessárias para superar os baixos salários pagos no Brasil e que avanços poderiam ser feitos em relação à CLT?
Em relação à CLT é nítido que precisamos diminuir a jornada de trabalho sem diminuir os salários, o que garantiria um impulso no sentido da redistribuição da renda nacional e aumentaria a oferta de empregos, o que do ponto de vista do mundo do trabalho é positivo, porque se cria uma oferta de trabalho adicional ao absorver mais pessoas e com melhores salários, gerando uma concorrência entre os empregadores, aumentando o valor dos salários apresentados.
O segundo aspecto necessário é a aprovação de uma lei contra a demissão desmotivada. Precisamos urgentemente estancar essa sangria que é taxa de rotatividade média do mercado de trabalho brasileiro, que está na ordem de 70%. Isso é inadmissível numa sociedade democrática e que protege o trabalhador, o que também implicaria uma revisão da CLT em favor dos trabalhadores.
Pontualmente existem questões que são prementes, que não passam pela CLT, mas por políticas de Estado: o salário mínimo é uma delas, que apesar de ter se recuperado nos últimos anos, ainda está muito abaixo do seu patamar histórico, considerando as décadas de 1950, 60 e meados dos anos 80. Tem que valorizar ainda mais o salário mínimo, porque o aumento do salário mínimo tende a pressionar as empresas a investirem em tecnologia, em inovação, pesquisa e desenvolvimento, o que garantiria um desenvolvimento sustentável a médio prazo. E, evidentemente, são necessárias políticas de Estado que caminhem nessa direção de valorizar a economia brasileira do ponto de vista de ciência e tecnologia.
Entrevista de Patricia Fachin publicada no portal do Instituto Humanitas Unisinos.
Ruy Gomes Braga Neto é especialista em sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic. É autor do livro A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012).