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O grande escândalo da banca privada

Suponha você que recebe milhões de euros a juros abaixo de 1%, e compra títulos que lhe geram juros de 4 ou 6%, bastando apenas apertar um botão. Pois bem, acredite ou não, é isto que a banca privada tem estado a fazer.
A banca privada domina hoje o poder político dos Estados. Foto de Sr. Pacman
A banca privada domina hoje o poder político dos Estados. Foto de Sr. Pacman

Uma das principais causas da crise da banca privada é a atividade especulativa das instituições financeiras, consequência da desregulação do sistema financeiro, resultado da aplicação das políticas neoliberais levadas a cabo por governos dos dois lados do Atlântico Norte, isto é, os EUA e a União Europeia (e muito em especial nos países da Eurozona). A paralisação da atividade creditícia (isto é, o facto de os bancos deixarem de emprestar dinheiro) contribuiu enormemente para a crise económica. As pequenas e médias empresas, que são as que produzem mais emprego na maioria de países, deixaram de poder aceder ao crédito, não conseguindo dinheiro emprestado. E o mesmo ocorreu com as famílias. Estas não puderam obter crédito, e por isso tiveram de diminuir a procura de produtos e serviços, paralisando a economia.

O Banco Central Europeu (BCE) emprestou aos bancos privados europeus, a juros irrisórios, centenas de milhares de milhões. Mas apesar disso, o crédito nem aparece nem é esperado

Daí que houvesse uma mobilização dos Estados, assessorados por economistas próximos à banca, para salvar o sistema financeiro, isto é, a banca, a fim de reavivar a economia, utilizando a imagem do sistema financeiro como o sistema circulatório do corpo económico, permitindo que o sangue circule através do organismo. E deram-se milhões e milhões de euros públicos aos bancos privados (somente a Espanha, entre 2009 e 2012, comprometeu 108.000 milhões de euros públicos em ajudas, segundo o Tribunal de Contas, o que representava quase 10% do PIB de 2012). Pode ser que a expressão “deram-se” seja ligeiramente exagerada. Mas o Banco Central Europeu (BCE) emprestou aos bancos privados europeus, a juros irrisórios, centenas de milhares de milhões. Só neste ano já previu injetar 400.000 milhões de euros na banca para tentar que flua o crédito.

Mas apesar disso, o crédito nem aparece nem é esperado. Os bancos receberam o dinheiro e utilizaram-no para outros propósitos, como por exemplo, comprar dívida pública a juros elevadíssimos de 4 ou o 6% (no caso de Grécia, 13%, cifra atingida em 2011), o que significou um dos negócios mais chorudos que se possa imaginar. Suponha você que recebe milhões de euros a juros abaixo de 1%, e compra títulos que lhe geram juros de 4 ou 6%, bastando apenas apertar um botão. Pois bem, acredite ou não, é isto que a banca privada tem estado a fazer.

A pergunta que o leitor deveria fazer é: por que o BCE empresta dinheiro à banca privada e não à banca pública e aos Estados, para que estes não tenham de pedir emprestado dinheiro aos bancos privados, que lhes exigem juros elevadíssimos, criando uma enorme dívida? O facto de o Estado ter de pagar juros tão elevados ocorre porque não tem outra maneira de conseguir dinheiro na UE a não ser através da banca privada. O BCE diz que os regulamentos que o regem não lhe permitem emprestar dinheiro aos Estados. E, para maior escárnio, a banca privada tem agências de avaliação da dívida pública (isto é, da suposta viabilidade dos Estados) que mentem e manipulam a qualificação dessa dívida, de maneira que quanto pior “rating” dão as agências, maiores são os juros que tem de pagar o Estado. É um escândalo que se permita que isto continue, devido ao facto de a banca ter uma enorme influência no BCE (que na realidade é um lobby da banca privada, e cujo Presidente foi diretor de Goldman Sachs) e na Comissão Europeia, que é, na verdade, a Comissão mais neoliberal que existiu na sua história. A banca também exerce uma grande influência no governo presidido pela chanceler Angela Merkel e outros governos da mesma sensibilidade neoliberal, como o é o espanhol.

Outra alternativa é possível: a banca pública

A situação atual é insustentável. O BCE continua a “presentear” (400.000 milhões de euros só neste ano), isto é, a emprestar dinheiro à banca privada a juros baixíssimos (0,05%) e, no entanto, continua a não haver crédito. Mas há uma alternativa fácil de ver: que todo este dinheiro que o BCE gastou vá para um banco público de cada Estado, garantido pelo Banco Central Europeu, que devia ter como missão facilitar o crédito. É isto que ocorre em muitos países como, por exemplo, os EUA, que tem um Banco Central (o Federal Reserve Board) que exerce essa função: garantir o crédito ao Estado federal e aos Estados. Este Banco Público Central poderia inclusive ir além, e criar bancos públicos com base dos depósitos do setor público. Por exemplo, o Estado de North Dakota, nos EUA, tem um banco público no qual o Estado investe, por lei, todos os seus rendimentos públicos. Não é um banco de acionistas. Foi fundado em 1919 por imigrantes escandinavos (noruegueses em particular), que eram muito críticos em relação à banca privada e a Wall Street, o centro financeiro daquele país. A sua função principal é oferecer e garantir o crédito às instituições do Estado. E assim se conseguiu que fosse o único Estado que não teve um problema grave de crédito nos EUA durante a crise. Pôde assim permanecer num equilíbrio fiscal (com superávit nas suas contas), sendo North Dakota um dos Estados com menos desemprego. Mas o North Dakota não é uma exceção no mundo. Na realidade, 40% de todos os bancos no mundo são públicos, incluídos os bancos dos bem sucedidos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). E na Europa e na UE, o sector bancário público é extenso e tem um papel chave no setor financeiro dos países.

Em geral, os países que têm um sistema bancário público cresceram mais rapidamente que os países com sistemas bancários privados.

Na realidade, vários estudos recentes escritos pelos professores Von Mettenheim e Andrianova mostraram que, em geral, os países que têm um sistema bancário público cresceram mais rapidamente que os países com sistemas bancários privados. E o que é inclusive mais importante é que esses bancos públicos foram, em geral, menos corruptos e especuladores que os bancos privados, e tiveram maiores benefícios. Com base nesta experiência, seria de desejar que o BCE se convertesse num banco público que emprestasse aos Estados através dos bancos centrais de cada país, e que estes também oferecessem crédito às pequenas e médias empresas. Os bancos públicos poderiam complementar-se com cooperativas de crédito, banca ética e outras formas de instituições financeiras que não têm a usura como objetivo central. Que isso é possível fica demonstrado com esta experiência internacional. Então por que não se faz? Porque a banca privada domina hoje o poder político dos Estados. Se não acredita, veja a reação dos políticos e dos média à morte do maior banqueiro de Espanha, o Sr. Botín. A cobertura e a homenagem à sua figura foi própria quase de um Chefe de Estado. Deu-se conta disso?

Como sempre, o maior escândalo ocorre nos países periféricos e, em especial, em Espanha

Espanha é hoje um dos países do mundo com a banca pública de menor tamanho. Os governos Zapatero e Rajoy encarregaram-se da banca pública, sendo o país da Eurozona que tem menos bancos públicos. O grande domínio do espaço financeiro corresponde à banca privada, que além disso está extremamente concentrada, com quinze bancos dominando esse espaço, sendo três – Banco Santander, BBVA e CaixaBank – os que dominam o setor. O setor cooperativo (cooperativas de crédito) representa um espaço muito reduzido (6%), em contraste com outros países europeus que atingem 30%, como Áustria, Holanda, França, Itália e Suíça. A Alemanha, na verdade, é um dos países com maior espaço público no sistema bancário.

E, não surpreendentemente, a banca privada espanhola é das que tem maior número de sucursais em paraísos fiscais. A privatização das Caixas deveu-se, única e exclusivamente, a razões ideológicas, pois muitas delas, como La Caixa, eram altamente eficientes e rentáveis. E não eram as únicas. Foi o enorme domínio da banca privada sobre as instituições do Estado o responsável pela eliminação do sistema de Caixas, entidades de poupança coletiva.

E quando se investiu muito dinheiro para salvar algumas caixas, controladas politicamente pelo Partido Popular (por um total de 120.000 milhões de euros, como assinala Andreu Missé no seu editorial de Alternativas Económicas, uma das revistas económicas mais interessantes de Espanha), criando-se o Bankia (um dos poucos bancos públicos que ainda existem e que foi saneado, resultado do intervencionismo público), quis-se privatizar a um preço que significa um grande ganho para a banca privada e uma enorme perda para o contribuinte, tudo isso seria desnecessário se se tivesse mantido como entidade pública, com o mandato de garantir o crédito. E assim estamos. Spain is, claramente, different!

2 outubro de 2014

Publicado no Público.es

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

Sobre o/a autor(a)

Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha).
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