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O voto no SIM na Escócia soltaria a mais perigosa das coisas: a esperança

O mito da apatia foi já destruído pelo movimento tumultuoso a norte da fronteira. Assim que há uma coisa pela qual vale a pena votar, as pessoas fazem filas pela noite fora para ter o nome no caderno eleitoral. A pouca participação nas eleições para Westminster reflete não a falta de interesse, mas a falta de esperança. Artigo de George Monbiot.
George Monbiot. Foto Jasn/Flickr

De todos os maus argumentos usados para incitar os escoceses a votar não — e há muitos — talvez o pior seja a exigência de que a Escócia fique na União para salvar a Inglaterra de si própria. As reações ao meu artigo da semana passada sugerem que este infeliz argumento umbilical ainda tem algum sucesso entre gente que se diz de esquerda.

Não é de admirar que, quanto mais os escoceses vêem os seus antigos ministros Labour, mais inclinados ficam a votar pela independência.

Vamos lá ver o que isto implica: pede a uma nação de 5,3 milhões que desista da sua independência para dispensar uma nação de 54 milhões da luta pelas suas próprias batalhas. Em troca da sua auto-negação, os cinco milhões têm de continuar sob o jugo das mesmas políticas sinistras de cobardia e da triangulação política que causaram os problemas dos quais lhes pedimos agora que nos salvem.

“Seria muito menos provável que um Reino Unido sem a Escócia alguma vez elegesse um governo de cores progressistas”, declarou o ministro Brian Wilson no Guardian, na semana passada. Temos de nos juntar contra “as forças do privilégio e da reação” (diz ele, que alinha com os Conservadores, o Ukip, os Liberais Democratas, os bancos, as corporações, quase todos os colunistas de direita britânicos, e todos os jornais do Reino Unido com excepção do Sunday Herald), na causa pela “solidariedade”.

Há mais um chavão do New Labour a juntar a este vocabulário (outros exemplos incluem “reforma”, que agora quer dizer “privatização”, e “parceria”, que significa vender aos grandes negócios). Em tempos, “solidariedade” quis dizer assumir a causa dos explorados, dos mal pagos, dos excluídos. Hoje, para estes ciborgues de fato e gravata, significa lealdade aos bancos, à imprensa corporativa, aos cortes orçamentais, uma economia de cobranças e fundamentalismo de mercado.

Isto foi o que “solidariedade” quis dizer para Wilson e os seus comparsas cobardes quando estiveram no governo. Quis dizer votar a favor da guerra do Iraque, do Trident, dos bilhetes de identidade, de 3.500 novas infrações penais, incluindo a criminalização da maior parte das formas de protesto pacíficas. Significou serem alistados como mercenários políticos para impor as políticas inglesas a que os escoceses não estavam sujeitos, tais como as propinas ao critério das universidades ou as fundações hospitalares. Significou apoiar toda e qualquer proposta destrutiva e injusta dos seus líderes: a cambada de parasitas criada no ninho do Labour e que empurrou os seus princípios mais caros pela borda fora. Não é de admirar que, quanto mais os escoceses vêem os seus antigos ministros Labour, mais inclinados ficam a votar pela independência.

Então agora a campanha do Better Together foi buscar Gordon Brown, espalhando subornos num esforço de contenção desesperado e de última hora. Devem esperar que os escoceses se tenham esquecido de quando Gordon Brown se gabou de ter estabelecido “o imposto sobre as sociedades mais baixo da história do Reino Unido, mais baixo do que em qualquer dos principais países da Europa, e mais baixo do que em qualquer grande país industrializado do mundo”. Ou de que jurou à City de Londres que “orçamento após orçamento, quero que façamos ainda mais para encorajar o empreendedorismo”.  Ou de que, passados 13 anos de governo Trabalhista, o Reino Unido tinha níveis de desigualdade maiores do que depois de 18 anos de governo Conservador. Ou de que o  governo dele conspirou raptos e tortura.  Ou de que ajudou a provocar a morte de centenas de milhares de pessoas através do apoio à guerra ilegal no Iraque.

Ele percorre a Escócia, ainda com as mãos sujas de sangue, a prometer o que nunca cumpriu quando teve a oportunidade de o fazer, este homem que ajudou a rasgar a rede de segurança social tecida pelos seus antecessores; que vendeu e desmembrou serviços públicos; que enriqueceu os ricos e tramou os pobres; que prometeu dinheiro para o Trident mas não conseguiu inverter a quebra na habitação social; cujas iniciativas a favor do financiamento privado plantaram uma série de bombas-relógio que estão agora a explodir no sistema nacional de saúde e nos serviços públicos; que engraxou, adulou e serviu como escravo até ser aceite na companhia de banqueiros e oligarcas enquanto espezinhava os trabalhadores que tinha sido eleito para representar. É este o Preste João progressista que cavalgará em auxílio da campanha do NÃO?

Onde estão, no Labour escocês, os Keir Hardies e os Jimmy Reids dos dias de hoje? Onde está a inventividade, a inspiração, a esperança? Os homenzinhos cambaleantes e sem espinha que substituíram estes titãs não têm o que oferecer senão o medo. Através do medo, tentam empurrar a Escócia novamente para dentro da sua gaveta, ao verem a população revoltar-se contra o futuro fechado e deprimente que lhes foi traçado — e a todos nós — pelos três principais partidos de Westminster.

Se o Labour tiver alguma inteligência política, algum vestígio de coragem, perceberá o que este momento significa. Em vez que tentar sufocar as forças da esperança e da inspiração, tratará de mobilizá-las. Poderá, por exemplo, comprometer-se no seu manifesto a levar a cabo um referendo sobre a escrita de uma constituição para o resto do Reino Unido.

É certo que, se a Escócia se tornar independente e tudo o resto se mantiver, o Labour perderá 41 lugares em Westminster e as maiorias Tory tornar-se-ão mais prováveis. Mas não é preciso que tudo o resto se mantenha. A independência tem um potencial galvanizante para os movimentos progressistas do resto do Reino Unido. Vamos poder assistir ao envolvimento dos escoceses no processo transformador de escrever uma constituição. Vamos poder assistir a como uma nação destas ilhas pode viver e (espero eu) prosperar com um parlamento totalmente eleito (sem uma Câmara dos Lordes), com um sistema eleitoral justo (representação proporcional), e com um parlamento em que apenas representantes dessa nação possam votar (sem mercenários a saltar fronteiras).

O mito da apatia foi já destruído pelo movimento tumultuoso a norte da fronteira. Assim que há uma coisa pela qual vale a pena votar, as pessoas fazem filas pela noite fora para ter o nome no caderno eleitoral. A pouca participação nas eleições para Westminster reflete não a falta de interesse, mas a falta de esperança.

Se a Escócia se tornar independente, sê-lo-á apesar dos esforços de quase todo o establishment do Reino Unido. Sê-lo-á porque os meios de comunicação sociais venceram os meios de comunicação corporativos. Será uma vitória dos cidadãos contra a máquina de Westminster, de sapatos contra helicópteros. Mostrará que uma ideia suficientemente inspiradora pode vencer subornos e chantagens, ameaças e pregões do medo. Essa esperança, a princípio marginalizada, pode espalhar-se pela nação, desafiando todas as tentativas de sufocá-la. Significa que é possível ser-se odiado pelo Daily Mail e ainda ter hipótese de ganhar.

Se o Labour tiver alguma inteligência política, algum vestígio de coragem, perceberá o que este momento significa. Em vez que tentar sufocar as forças da esperança e da inspiração, tratará de mobilizá-las. Poderá, por exemplo, comprometer-se no seu manifesto a levar a cabo um referendo sobre a escrita de uma constituição para o resto do Reino Unido. Perceberá que que a esperança é o mais perigoso dos reagentes políticos. Consegue transformar aquilo que parecia um regime fixo, um resultado fixo, numa coisa completamente diferente. Consegue invocar paixão e propósito que nunca pensámos ter em nós. Se a Escócia se tornar independente, a Inglaterra — apenas se esse potencial for reconhecido — poderá também transformar-se.


George Monbiot é jornalista, escritor e ambientalista, escreve regularmente uma coluna de opinião no Guardian. Publicado inicialmente pelo Guardian, a 09/09/2014. Traduzido por Mariana Vieira.

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Neste dossier:

Referendo na Escócia: o fim do Império?

A poucos dias do referendo de 18 de setembro, o poder político de Londres treme ante a subida das intenções de voto do Sim à independência da Escócia. No meio da austeridade que nos últimos anos tem cortado nos salários, pensões e serviços públicos, a população escocesa atreveu-se a imaginar um país novo e mais justo e a discutir as opções do seu futuro. Dossier organizado por Mariana Vieira.

A Escócia já ganhou

O referendo de 18 de Setembro trouxe para o quotidiano discussões sobre história, política e economia, sobre o que foi o passado e o que se quer do futuro. Quase ninguém responde agora “ah, eu não falo dessas coisas”. E já não era sem tempo! Artigo de Mariana Vieira, em Edimburgo.

Por que passei a dizer SIM à Independência da Escócia

Podemos dizer que da União não sobra muito, a não ser sentimento, história e família. Algumas das razões pragmáticas para a subsistência da União, que emergiram nos séculos XVIII e XIX, desapareceram. Artigo do historiador Tom Devine, a principal referência do estudo da Escócia moderna .

Quem irá escrever a Constituição da Escócia?

Se a Escócia votar pela independência teremos de enfrentar importantes perguntas na área constitucional: Qual será a relação entre os cidadãos e os Estado? Quem escreverá a Constituição? Poderá o escocês comum a contribuir para esse processo? E como poderemos todos nós ser incluídos nele? O modelo islandês é um exemplo a seguir? Artigo de Jamie Mann.

A Economia e a Independência

O principal argumento do Better Together, de que as maiores economias são mais resistentes e flexíveis, ainda está por escrutinar. As pequenas economias do Norte, geograficamente semelhantes à Escócia, mantiveram as suas moedas independentes, mais estáveis do que a libra esterlina. Artigo de James Foley e Pete Ramand.

O voto no SIM na Escócia soltaria a mais perigosa das coisas: a esperança

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Petróleo do Mar do Norte: o que importa não é se vai haver um “boom” mas a quem pertence o petróleo

A única forma de diminuir o deficit e retomar os serviços públicos depois dos cortes da coligação, bem como de conseguir ter dinheiro para investir e reconstruir a economia escocesa será nacionalizar o petróleo do Mar do Norte. Artigo de Ralph Blake.

Cronologia da Independência

Momentos importantes da história da Escócia e das suas várias conquistas e sucessivas perdas de independência através dos séculos. Mais informação sobre cada época pode ser consultada, por exemplo, aqui.

Glossário do referendo

Quem é quem nesta campanha do referendo à independência? Quais os sites e blogs que defendem a campanha do Sim e têm tentado furar o bloqueio dos grandes meios de comunicação a favor do Não? Reunimos aqui alguma informação básica para acompanhar melhor esta campanha.

O SNP não pode fugir para sempre ao debate sobre a monarquia

Será interessante a resposta dos membros do SNP às possibilidades constitucionais abertas pela independência. Vão acomodar-se à monarquia pragmática dos seus dirigentes ou exigir uma alternativa mais radical e genuinamente democrática? Artigo de James Maxwell.

O Left Unity e o debate da Independência

Por explicarem o quadro geral das duas posições opostas, publicamos aqui dois textos do debate em curso no Left Unity, novo partido que pretende ser um agregador da esquerda por todo o Reino Unido. Até à data, o partido escolheu não tomar posição oficial, apesar de os seus membros participarem activamente nas campanhas respectivas. Alan Mackinnon defende o NÃO; Allan Armstrong responde-lhe pelo SIM.

Os socialistas e o SIM

Apoiar o direito democrático de nações como a Escócia à autodeterminação não faz de ti um nacionalista escocês, faz ti um democrata. Artigo de Colin Fox, porta-voz do Scottish Socialist Party.

Como se aproximam os sindicatos da independência?

O princípio da devolução e da transferência de controlo para Edimburgo de, entre outras, políticas de transportes, saúde e educação, criou uma nova camada de poder do estado com as quais as secções escocesas dos sindicatos britânicos passaram a ter de negociar, reduzindo a sua dependência nas estruturas mais alargadas, de todo o Reino Unido. Artigo de James Maxwell.

Quem são os donos da Escócia?

John Glen, o diretor executivo de Buccleuch Estates diz que os membros da Scottish and Land Estates “gerem um razoável volume de recursos naturais”. E tem razão: entre eles, os 2.500 membros devem ser proprietários de três quartos do território escocês. Artigo de Peter Geoghegan.

Tariq Ali: "A separação da Escócia desmantela o estado britânico"

Nesta entrevista conduzida por James Foley, o escritor, realizador e editor da New Left Review explica o seu apoio à independência da Escócia e fala das consequências do voto Sim neste referendo.

Ken Loach: Escócia independente poderá ser a "ameaça do bom exemplo"

O cineasta e fundador do partido Left Unity defende que a independência não resolve todos os problemas da Escócia, mas abre a possibilidade de criar uma sociedade mais justa.

O direito a sonhar

Votar Não significa votar sim a um estado para quem a defesa e a política internacional passam por fingir que não fazem parte da Europa. Fingir que vivemos numa espécie de isolamento glorioso com os nossos “amigos” Estados Unidos. Artigo de Jo Clifford.

O Modelo Nórdico

Na sequência da carta aberta de 17 escritores e jornalistas escandinavos que apoiam a campanha do SIM, Pete Ramand e James Foley, cofundadores da Campanha Radical pela Independência e autores de Yes: The Radical Case for Independence, defendem a tese de que uma Escócia Independente deveria abandonar o capitalismo Anglo-Americano em favor de uma social democracia Nórdica.

Um salva-vidas para as pessoas com deficiência que se afundam neste mar de cortes orçamentais

O Livro Branco sobre a independência lançado pelo Governo promete mudanças no regime de apoios sociais. Ao invés, o Labour só garante que a austeridade e os cortes vão continuar. Artigo de John McArdle.

Votar SIM é a única maneira de salvar da privatização o Serviço Nacional de Saúde

Enquanto o Serviço Nacional de Saúde Inglês está a ser privatizado, o Escocês regressou à filosofia tradicional do serviço unificado e de fundos públicos. Artigo de Philippa Whitford.

A negatividade do SIM

É também enquanto socialista que recuso acreditar que os nossos irmãos e irmãs sejam uma causa perdida. Para mim, um voto SIM soa a desistência e eu acredito que a única forma de ser socialista é manter viva a ideia de que venceremos, num dia distante, talvez, mas venceremos. Artigo de Juan Pablo Lewis Jr.

A Guerra e as Mulheres

A independência é a maior ameaça ao Reino Unido enquanto potência mundial desde a descolonização, fornecendo a uma Escócia independente a oportunidade de adoptar uma política estrangeira independente e justa. Artigo de Cat Boyd e Jenny Morrison.

Imigração na Escócia pós-referendo

A diferença das necessidades demográficas e de migração da Escócia significam que a atual política de imigração do Reino Unido não contemplou as prioridades escocesas no campo da migração. Excerto do Livro Branco do governo escocês, “Scotland’s Future”.

Separando os factos da ficção - o que significa a Grã-Bretanha?

David Cameron e o seu lacaio Michael Gove querem introduzir “Valores Britânicos” na escolas britânicas. Querem ensinar à nossas crianças o que é ‘liberdade’, ‘tolerância’, ‘respeito pelas leis e pelo direito’, ‘crença na responsabilidade pessoal e social’ e ‘respeito pelas instituições britânicas’. Peguemos esta hipocrisia pelos cornos. Artigo de Suki Sangha.

Os planos A, B, C, D, E, F… da moeda Irlandesa desde a independência

Se a libra esterlina passar em 2020 por uma crise como a dos anos 70, o governo da Escócia independente, SNP ou outro qualquer, fará o que fez a Irlanda: vai abandonar a libra esterlina sem hesitar e usar a libra escocesa, mantendo-a dentro dos limites estabelecidos com as moedas dos seus parceiros de mercado, por exemplo, a Zona Euro, os EUA, a Noruega, etc. Artigo de Sean O’Dowd.