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Recuperação? Estamos a entrar na terceira recessão

É importante sublinhar que esta terceira recessão, ao contrário das outras duas anteriores, se inicia e está focalizada nos países centrais da zona euro, Alemanha, França e Itália. As outras duas anteriores tinham-se centrado nos países periféricos, Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda. Por Vicenç Navarro.
A causa principal da terceira recessão são as políticas neoliberais baseadas na austeridade (os infames cortes e o desmantelamento do estado de bem-estar, a baixa de salários e o crescimento do desemprego)

Não há dúvida de que quando se escrever a história da União Europeia, e da zona euro dentro dela, mostrar-se-á até que ponto uma religião laica –o neoliberalismo- se pode reproduzir, apesar de toda a evidência empírica acumulada mostrar, não só que estava equivocada, mas também o enorme prejuízo que essa religião está a causar às classes populares dos países da União. A religião laica promove-se com um espírito apostólico na base de uma fé impermeável à evidência científica que assinala claramente a sua enorme falsidade. Hoje, esta fé, reproduzida pela maioria dos media, está a anunciar que a Espanha e a zona euro estão a recuperar, quando, na realidade, estamos a entrar noutra recessão. Vejamos os dados.

Desde que, no ano 2007, começou a Grande Recessão, que para muitos países foi pior que a Grande Depressão, houve na zona euro nada menos que duas recessões, consequência da aplicação das políticas neoliberais. A primeira ocorreu no período 2008-2009. Foi seguida de uma ligeiríssima recuperação (com um crescimento económico da zona euro de apenas 0,5% do PIB) no período 2009-2010, para cair de novo noutra recessão que durou 18 meses e que anulou o escassíssimo crescimento que tinha ocorrido na etapa de crescimento anterior. Em 2012 iniciou-se outra timidíssima recuperação com um crescimento de apenas 0,2% do PIB, recuperação que se está a reverter de novo, iniciando agora uma terceira recessão (o PIB da zona euro caiu 0,2%), atingindo três recessões em cinco anos. Um recorde total! Na realidade, a economia da zona euro nunca recuperou desde o ponto mais baixo de 2007, quando se iniciou a Grande Recessão. As pequeníssimas recuperações eram, acima de tudo, pequenos saltinhos do fundo do abismo.

Estamos agora no início da terceira recessão

O que é importante sublinhar é que esta terceira recessão, ao contrário das outras duas anteriores, se inicia e está focalizada nos países centrais da zona euro, Alemanha, França e Itália. As outras duas anteriores tinham-se centrado nos países periféricos, Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda. De certa maneira, esta terceira recessão é o culminar da Grande Recessão, que, finalmente, atingiu também em cheio o centro e eixo da zona euro. O PIB dos três países centrais soma 8,8 biliões de euros, que é o tamanho da economia da China. E, já que a economia da Alemanha (que representa um terço do PIB da zona euro) se baseia muito nas exportações, que representam 56% da sua economia, esta queda da economia do centro da zona euro augura uma queda da economia mundial.

Os factos políticos que estão a ocorrer no continente europeu, entre os quais o conflito da Ucrânia é de grande importância, têm contribuído, ainda que não causado, esta terceira recessão. O golpe de estado ocorrido na Ucrânia, com o apoio dos governos da União Europeia e dos EUA, iniciou uma situação de conflito, reacendendo a Guerra Fria, que está já a ter um custo económico considerável (ver os meus artigos sobre a Ucrânia). Mas a causa principal da terceira recessão são as políticas neoliberais baseadas na austeridade (os infames cortes e o desmantelamento do estado de bem-estar, a baixa de salários e o crescimento do desemprego), que estão a destroçar o bem-estar das classes populares.

E estas políticas estão a ser aplicadas para benefício e glória do que se chamava dantes o capital, hegemonizado pelo capital financeiro, que agora se chama o 1%. Hoje, o establishment (isto é, a estrutura de poder económico, financeiro, mediático e político) europeu, centrado na Comissão Europeia, no Banco Central Europeu, no Conselho Europeu e no governo alemão e seus aliados, como o governo Rajoy, está a levar a cabo estas políticas com toda a crueza, respondendo a cada crise com a previsível resposta de que o facto de não se sair da crise é porque é preciso aplicar as mesmas políticas inclusive com maior força e contundência, levando à ruína as classes populares. Três recessões em cinco anos é o resultado.

E o grande drama é que as esquerdas governantes têm aceitado e continuam a aceitar o dogma neoliberal. A sua versão é a versão light das mesmas políticas. Basta ver as propostas económicas dos principais partidos social-democratas na oposição, incluindo o PSOE (cujo novo secretário-geral enfatizou, na sua entrevista no El País, como ponto central do seu programa económico melhorar a competitividade europeia e espanhola), para se dar conta de que não há uma mudança substancial destas políticas, sob o argumento de que as que promovem são as únicas possíveis, acusando de utópicas, demagógicas e toda uma série de epítetos desqualificativos as únicas alternativas que permitiriam romper com esta série de recessões. A experiência histórica mostra que para sair desta recessão crónica (que repito, atinge dimensões de depressão em muitos países) é necessária uma mudança de quase de 180º da política que se está a aplicar.

Há alternativas

Se, por exemplo, nos centrarmos num dos maiores problemas – o endividamento das famílias e das grandes e pequenas empresas, a solução é fácil de ver. Os estados têm que garantir o crédito, tomando toda uma série de medidas, desde mudar a governação do euro e do BCE, estabelecendo o crescimento económico como objetivo deste Banco, até aumentar a capacidade aquisitiva das classes populares com um aumento muito notável e massivo da despesa pública, incluindo despesa nas infraestruturas não só físicas mas também sociais do país, facilitando o alcançar da felicidade (sim, leu bem, felicidade) como objetivo do novo modelo económico-social e não o agregado de lucros do capital. E tudo isso, não ocorrerá sem uma profunda democratização das instituições que reflitam a vontade e a soberania popular. Hoje, a exigência mais revolucionária existente na Europa não é a nacionalização dos meios de produção mas sim a exigência de que cada cidadão tenha a mesma capacidade de decisão num país, enfatizando as formas de participação direta (o direito a decidir a todos os níveis), além de democratizar as escassamente democráticas instituições representativas. Exigir democracia com toda a contundência e agitação (que deve excluir qualquer forma de violência) é revolucionário, pois entra em conflito direto com as estruturas que controlam as instituições que se autodefinem como democráticas. Escusado será dizer que a propriedade dos meios de produção, distribuição, persuasão e legitimação é chave para definir o grau de liberdade, democracia e justiça existente num país. Mas, a não ser que os sistemas escassamente democráticos mudem, não haverá maneira de que todo o resto mudar.

O grande erro de muitas esquerdas radicais tem sido limitar-se à agitação sem intervir na luta dentro do estado. Daí que estas esquerdas devam estar na rua e nas instituições, exigindo mudanças radicais (isto é, que vão às raízes do problema de concentração do poder) ao que as estruturas e castas de poder se oporão por todos os meios. As classes populares poderão alcançar o que desejam se se mobilizarem. O problema principal existente em Espanha não é que a população não esteja consciente das enormes limitações da democracia espanhola, mas que não acha que se possa mudar. Mas a história mostra que sim se pode. Ao contrário do que as estruturas de poder têm informado, a mudança da ditadura para a democracia passou-se como consequência da enorme mobilização popular, liderada pelo movimento operário. Foi esta mobilização que terminou com a ditadura. E estas mobilizações podem também forçar a mudança agora, democratizando autenticamente o país.

Artigo de Vicenç Navarro, publicado a 27 de agosto de 2014 em publico.es. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

Sobre o/a autor(a)

Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha).
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