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Uma reflexão sobre o Fantástico em Júlio Cortázar

A imitação do real é mutável, historicamente relativa, inconscientemente resvaladiça, difícil de ser apreendida pelo discurso humano. Mas sempre desejada... Por Selma Calasans Rodrigues
São numerosas as narrativas que lançam mão do recurso do sonho. Fotografia de Sara Facio
São numerosas as narrativas que lançam mão do recurso do sonho. Fotografia de Sara Facio

Indagações sobre literatura e realidade

O poeta que, praticamente, inicia a modernidade, Charles Baudelaire, já anunciava o fim do realismo, ao ponderar que odiava Daguerre (o inventor da fotografia). Considerava: "Acho inútil e entediante representar o que existe, uma vez que nada do que existe satisfaz"1.

A partir das inúmeras reflexões sobre a literatura e a realidade desde então e mais, a consciência que temos hoje da impossibilidade da linguagem de falar diretamente o real (Freud e Lacan nos mostraram isso), estamos longe de exigir da arte e do artista o mesmo tipo de acordo que os antigos pretendiam fixar, a saber, a verossimilhança .

Temos de reconhecer que a imitação do real é mutável, historicamente relativa, inconscientemente resvaladiça, difícil de ser apreendida pelo discurso humano. Mas sempre desejada...

Roland Barthes, essa grande voz da modernidade, na sua Leçon (aula inaugural ditada por ele no Colégio de França, em 7 de janeiro de 1977), fala exatamente da adequação e dos constrangimentos da linguagem e da função do escritor de criar novos truques de "mudar a língua" para "mudar o mundo". Ele nos faz imaginar uma "história da literatura, ou seja, das produções da linguagem, que seria a história dos expedientes verbais, muitas vezes louquíssimos, que os homens usaram para reduzir, aprisionar, negar ou, pelo contrário, assumir o que é sempre um delírio, isto é, a inadequação fundamental da linguagem ao real". Barthes continua dizendo que a literatura é sempre realista porque ela tem o real por objeto do desejo. Em seguida, com um toque antes paródico, do que paradoxal, ele diz que a literatura é também obstinadamente irrealista: "(...) ela acredita sensato o desejo do impossível"2.

Essa desconfiança com relação à possibilidade de falar o real já existia no filósofo Nietzsche, provavelmente o pai de toda essa corrente de pensamento que passa por Barthes, Derrida e todos que a retomam. Diz o filósofo: " Acreditamos saber alguma coisa das próprias coisas quando falamos de árvores, de cores, de neve e de flores, no entanto apenas possuímos metáforas das coisas que não correspondem de modo algum às entidades originais"3.

A verossimilhança é, portanto, uma convenção artística relativa a um código estético de uma época. Sobretudo as épocas que mais a pregaram estiveram a léguas de distância daquilo que se pode considerar, de fato, um vero-símil.

É uma convenção que deixa explícito o desejo intenso de preencher um vazio: entre as coisas e as palavras. Ou, dizendo de outra maneira: todo texto é um produto de forças. Como resultado de um compromisso, ele diz ao mesmo tempo do desejo e da sua interdição, ele diz do fantasma que o presidiu.

Transpondo fronteiras real/irreal: Julio Cortázar

O sonho: um dos recursos da literatura fantástica

"Se um homem atravessasse o Paraíso em um sonho, e lhe dessem uma flor como prova de que havia estado ali e ao despertar encontrasse essa flor em sua mão... então, o quê?". Essa observação pertence a Coleridge; entretanto, é aqui citada a partir de um texto de Jorge Luis Borges intitulado "A flor de Coleridge", que pertence à obra Otras inquisiciones (1952). Borges encaminha a reflexão de que não apenas o sonho é a motivação fantástica que enforma o enunciado narrativo, mas também o fato insólito de alguém despertar e ter na mão uma flor – que só "existira" no sonho. Nesse detalhe está o fantástico inteiro, pois aí o inverossímil se instala.4

O sonho tem sido usado freqüentemente como explicação para experiências inverossímeis, mas o que determina a fantasticidade stricto sensu é exatamente a brecha deixada pela narrativa ao inserir no enunciado a pergunta: será ou não sonho? Ou seja, uma indagação sobre os limites entre o sonho e o real.

Julio Cortázar

São numerosas as narrativas que lançam mão do recurso do sonho. Contemporâneo nosso, o argentino Julio Cortázar é autor de muitas obras fantásticas, especialmente contos. Distingo aqui "La noche boca arriba", conto que faz parte da coletânea Final del juego5 que envolve de maneira singularíssima o sonho na sua estrutura narrativa.

Trata-se da narrativa de um acidente de motocicleta sofrido por um jovem numa cidade moderna que parece ser Buenos Aires. O rapaz é hospitalizado.

Paralelamente ao relato da hospitalização, um outro se desenvolve: o do seu duplo, num sonho recorrente que passa a fazer parte da vida do paciente. Este, o duplo, se situa na América pré-colombiana (mais precisamente no México). Novamente temos, além do sonho, o motivo do deslocamento espácio-temporal (como em "A flor de Coleridge"). A mudança para o mundo onírico no enunciado narrativo se faz sem nenhum disfarce: "Como sonho, era curioso porque estava cheio de cheiros (...)". Nesse mundo ele, "moteca", fugia dos astecas ("moteca", alusão a moto; já o sufixo "teca" é habitual na denominação dos povos pré-colombianos). Era comum a rivalidade entre esses povos.6

O moteca, para escapar, devia esconder-se no mais denso da floresta. O mundo onírico explicita, desde o início, a presença do perigo e da morte iminente, a par de uma grande luta para vencê-la.

A guerra florida tinha começado com a lua e já durava três dias e três noites. Se conseguisse refugiar-se, no mais profundo da selva, abandonando a vereda, além da região dos pântanos, talvez os guerreiros não lhe seguissem o rastro. Pensou nos muitos prisioneiros que haviam feito. Porém a quantidade não contava, apenas o tempo sagrado. (LR, p. 217).

Quando conseguia abrir os olhos e viver a vigília, o personagem sentia-se feliz e protegido, satisfazia-se com o conforto do hospital.

Mal fechava os olhos, passava para o "tempo sagrado": um asteca inimigo atingia-lhe e lhe roubava o amuleto sagrado (seu "coração") que o protegia; ele se sentia perdido. O debater-se na cama fazia-lhe voltar à vigília, ao quarto, onde um companheiro diria: "É a febre". O recato do hospital insiste na sensação de conforto e confiança sentida pelo paciente. Mal pode ele, porém, manter os olhos abertos. Logo aparecem, no sonho, os acólitos do sacerdote que o levaram na noite de lua em direção à fogueira e à pedra vermelha de sangue, para o sacrifício.

A conclusão do relato apresenta uma inversão inesperada: muda a posição de sonho e vigília, anunciando a morte do protagonista através do “sacrifício” que se perpetra. Agora o sonho passa a ser o "real" e a vigília, sua vida nas ruas de Buenos Aires, o "irreal", o sonho:

…quando abriu os olhos viu a figura ensanguentada do sacrificador que vinha na direção dele com a faca de pedra na mão. Conseguiu fechar outra vez as pálpebras porque agora sabia que não iria acordar, que estava acordado, que o sonho maravilhoso havia sido o outro, absurdo como todos os sonhos; um sonho em que havia andado por estranhas avenidas de uma cidade assombrosa, com luzes verdes e vermelhas que queimavam sem chama nem fumo, com um enorme inseto de metal que zumbia sob suas pernas. (LR, p. 221)

As duas narrativas, a do campo asteca e a do hospital são simétricas, uma engendrando os símbolos da outra: o bisturi do médico engendra a faca de pedra do sacrifício asteca; o sacrifício, no sonho, anuncia a morte, que parecia afastada da consciência na vigília. A inversão final, com o afastamento e o consequente estranhamento da visão dos acontecimentos “reais”, constitui uma bela imagem da fuga da consciência de um personagem que se encontra com a morte:

Se podemos transpor fronteiras de tempo e espaço através do sonho (uma das formações do inconciente, cf Freud), também é possível fazê-lo pelo puro jogo da imaginação, que permite essas transgressões que na literatura se faz na linguagem. Assim é a Arte, assim é este belo conto de Julio Cortázar.

Selma Calasans Rodrigues é doutora em Literatura Comparada e Teoria da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora de Literatura Comparada e de Teoria da Literatura na Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ) durante 27 anos. Professora da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT). Autora de inúmeros trabalhos publicados em revistas especializadas e dos livros: “Macondamérica: a paródia em Gabriel García Márquez”. 2 ed. Goiânia: Editora da UFG, 2001. “O Fantástico”. São Paulo: Ática, Col. Princípios, 1988.

1 BAUDELAIRE, Charles. Curiosités esthétiques, Salon de 1819, III. In: Œuvres. Bibliothèque de la Pleiade. Gallimard, 1951

2 Barthes, Roland. Aula (Leçon). São Paulo, Cultrix, 1980. p. 22-3.

3 Apud SANTIAGO, Silviano. Análise e interpretação. In: ____. Uma literatura nos trópicos. São Paulo, Perspectiva, 1978. p. 78.

4 RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo, Ática, Col Princípios, 1988. Este artigo é um fragmento do livro citado.

5 CORTÁZAR, Julio. La noche boca arriba. Final del juego in: Los relatos (1) Madrid, Alianza Editorial, 5ed, 1985, p. 213. As citações serão seguidas da sigla LR e o número da página. As traduções são minhas.

6“El relato transcurre durante las guerras floridas protagonizadas por los aztecas, durante los siglos anteriores a la Conquista de América. En esta guerra en vez de matar a sus enemigos en batalla, el objetivo era capturarlos y llevarlos vivos a su capital, donde los sacerdotes los sacrificaban sobre una de sus pirámides, lo ponían en una piedra "boca arriba" y les quitaban el corazón con un puñal de piedra. Era costumbre de los aztecas proveer prisioneros para los sacrificios que les hacían a sus dioses”. Wikipedia sobre “La noche boca arriba”, Julio Cortázar.

(...)

Neste dossier:

Centenário de Julio Cortázar

Neste dia 26 de agosto de 2014 passam cem anos do nascimento de um dos escritores argentinos mais influentes do século XX. O Esquerda.net associa-se às comemorações internacionais desta efeméride com este dossier organizado por Luis Leiria.

“Nenhum escritor acredita que o essencial da sua obra está escrito; não seria um escritor se pensasse assim".

Cortázar, o mestre do Fantástico

Ninguém consegue ficar indiferente à leitura dos seus contos. O escritor argentino que faria 100 anos em 26 de agosto de 2014 foi um dos mais importantes protagonistas do “boom” da literatura latino-americana dos anos 60, e dois Prémios Nobel consideraram-no um modelo e um mentor: García Márquez e Vargas Llosa. O seu romance “Rayuela” continua a surpreender as novas gerações de leitores e a ser reeditado. Traçar-lhe um perfil é uma tarefa hercúlea – aqui fica uma tentativa.  

Ilustração feita por Nora Borges, irmã do escritor Jorge Luís Borges, para "Casa Tomada", publicada nos Anales de Buenos Aires

Casa Tomada

Este foi o primeiro conto publicado por Julio Cortázar em 1946, na revista literária Anales de Buenos Aires dirigida por Jorge Luís Borges. Foi incluída na primeira coletânea de contos em livro, “Bestiario”, em 1951.

São numerosas as narrativas que lançam mão do recurso do sonho. Fotografia de Sara Facio

Uma reflexão sobre o Fantástico em Júlio Cortázar

A imitação do real é mutável, historicamente relativa, inconscientemente resvaladiça, difícil de ser apreendida pelo discurso humano. Mas sempre desejada... Por Selma Calasans Rodrigues

Famosa cena de Blow Up

Filmes baseados em contos de Cortázar

Una seleção de alguns dos mais importantes filmes inspirados em obras do escritor argentino

O Jogo do Mundo (Rayuela)

O enorme impacto de Rayuela (à letra, o infantil “jogo da macaca”, desenhado no chão com giz; imagem recorrente em vários dos planos narrativos) deveu-se sobretudo ao seu experimentalismo formal. Como se diz logo de início numa “tábua de orientação”, o livro “é muitos livros”. Por José Mário Silva

"Você tem de ser realmente idiota para"

O ator brasileiro Lima Duarte recita um texto de Julio Cortázar no programa Globo Universidade.

Julio Cortázar em criança.

Cronologia

"Em resumo, desde pequeno, a minha relação com as palavras, com a escrita, não se diferencia da minha relação com o mundo em geral. Pareço ter nascido para não aceitar as coisas tal como me são dadas."

Capa de "Trottoirs de Buenos Aires"

Os tangos de Cortázar

São muito conhecidas as preferências de Julio Cortázar pelo jazz, mas pouca gente sabe que o escritor compôs letras de tangos e editou até um disco, “Trottoirs de Buenos Aires”