Os Estados Unidos procedem à anulação de dívidas de alguns dos seus aliados. A operação mais evidente, nesse contexto, é o tratamento concedido à dívida alemã, regulamentada pelo Acordo de Londres de 1953. Para assegurar que a economia alemã ocidental é reativada e constitui um elemento estável e central no bloco atlântico, os Aliados credores, com os Estados Unidos à cabeça, fazem concessões muito importantes às autoridades e às empresas alemãs endividadas, que vão bem para além de uma redução de dívida. A comparação entre o tratamento dado à Alemanha Ocidental do pós-guerra e aos PED (países em desenvolvimento) ou à Grécia de hoje é inspiradora.
O acordo de Londres de 1953 sobre a dívida alemã
A redução radical de dívida da República Federal Alemã (RFA) e a rápida reconstrução do país, após a Segunda Guerra Mundial, foram possíveis graças à vontade política dos seus credores, isto é, dos Estados Unidos e dos seus principais aliados ocidentais (Grã-Bretanha, França). Em outubro de 1950, esses três aliados formulam um projeto no qual o governo federal alemão reconhece a existência de dívidas nos períodos que precedem e seguem a guerra. Os aliados juntam a esse projeto uma declaração em que se afirma que “os três países estão de acordo que o plano preveja regras adequadas para as exigências feitas à Alemanha, cujo efeito final não deve desequilibrar a situação financeira da economia alemã, via repercussões indesejáveis, nem afetar demasiadamente as reservas potenciais de divisas. Os três países estão convencidos de que o governo federal alemão compartilha a sua posição e de que a recuperação da solvência alemã será acompanhada de um reembolso adequado da dívida alemã, que assegure, a todos os participantes, uma negociação justa, tendo em conta os problemas económicos da Alemanha”1.
A dívida cobrada à Alemanha, referente ao período anterior à guerra, atinge 22,6 mil milhões de marcos, se contabilizarmos os juros. Estima-se a dívida do pós-guerra em 16,2 mil milhões. Por ocasião do acordo celebrado em Londres, em 27 de fevereiro de 1953, esses montantes são reduzidos para 7,5 mil milhões e 7 mil milhões de marcos respetivamente2. A situação representa percentualmente uma redução de 62,6 %.
O acordo estabelece a possibilidade de suspender o pagamento para renegociação das condições, se houver uma mudança substancial que perturbe a disponibilização de recursos3|.
Para assegurar que a economia alemã ocidental era realmente relançada e que constitua um elemento estável e central no bloco atlântico, face ao bloco de leste, os Aliados credores fazem concessões muito importantes às autoridades a às empresas alemãs endividadas, que vão para além de uma redução de dívida. Parte-se do princípio de que a Alemanha deve estar em condições de pagar tudo, mantendo um nível de crescimento elevado e uma melhoria das condições de vida da população. Pagar sem empobrecer. Para isso, os credores aceitam, primeiro, que a Alemanha pague a dívida na moeda nacional, o marco. Segundo, aceitam que a Alemanha reduza as suas importações, podendo ela própria fabricar produtos que anteriormente eram adquiridos no estrangeiro. Permitindo à Alemanha substituir as suas importações por bens produzidos internamente, os credores aceitaram a redução das suas próprias exportações para esse país. Ora, no período entre 1950-1951, 41 % das importações alemãs provinham da Grã-Bretanha, da França e dos Estados Unidos. Se acrescentarmos, a esse montante, a parcela de importações proveniente de outros países credores que participaram na conferência (Bélgica, Holanda, Suíça e Suécia), o total eleva-se a 66 %. Terceiro, autorizam a Alemanha a vender os seus produtos no exterior, estimulando as suas exportações com o objetivo de alcançar uma balança comercial positiva. Esses diferentes elementos são consagrados na declaração mencionada acima: “A capacidade de pagamento da Alemanha, dos seus devedores privados e públicos, não significa apenas a capacidade de efetuar regularmente os pagamentos em marcos, sem consequências inflacionárias, mas significa também que a economia do país possa cobrir as suas dívidas, tendo em conta a balanço de pagamentos atual. O restabelecimento da capacidade de pagamento da Alemanha implica enfrentar alguns problemas que são:
1. A futura capacidade produtiva da Alemanha, em especial a sua capacidade produtiva de bens exportáveis e a sua capacidade de substituição das importações;
2. A possibilidade de venda de mercadorias alemãs no exterior;
3. As condições comerciais prováveis no futuro;
4. As medidas fiscais e económicas internas, necessárias para assegurar um superavit das exportações”4.
Outro elemento muito importante, o serviço da dívida, é fixado em função da capacidade de pagamento da economia alemã, tendo em conta o avanço da reconstrução do país e as receitas provenientes das exportações. Desse modo, a relação entre o serviço da dívida e as receitas provenientes das exportações não deve ultrapassar os 5 %. Isto quer dizer que a Alemanha Ocidental não deve destinar mais de um vigésimo das suas receitas provenientes das exportações para pagar a dívida. Na prática, a Alemanha nunca utilizará mais de 4,2 % das receitas provenientes das exportações para pagar a dívida (esse montante foi alcançado em 1959).
Outra medida excecional: aplica-se uma redução drástica das taxas de juro, que oscilam entre 0 e 5%.
Além disto, em caso de litígio com os credores, os tribunais alemães são, regra geral, competentes para julgar. Afirma-se, de forma explícita, que, em certos casos, “os tribunais alemães podem recusar-se a executar [...] a decisão de um tribunal estrangeiro ou de uma instância arbitral”. É o caso quando “a execução da decisão for contrária à ordem pública” (p. 12 do Acordo de Londres).
Um favor de um valor económico enorme é oferecido pelas potências ocidentais à Alemanha Ocidental: o artigo 5.º do acordo concluído em Londres adia o pagamento das reparações e das dívidas de guerra (tanto as da Primeira como as da Segunda Guerra Mundial), que poderia ser reclamado pelos países ocupados, anexados ou agredidos (assim como pelos seus cidadãos).
Por fim, é preciso considerar os donativos em dólares feitos pelos Estados Unidos à Alemanha Ocidental: 1.173,7 milhões de dólares no contexto do Plano Marshall, entre 03 de abril de 1948 e 30 de junho de 1952 (cerca de 11 mil milhões de dólares hoje), aos quais acrescem, pelo menos, 200 milhões de dólares, entre 1954 e 1961 (cerca de dois mil milhões de dólares hoje), principalmente via Agência Internacional de Desenvolvimento dos Estados Unidos (USAID).
Devido a estas condições excecionais, a Alemanha Ocidental recupera, a nível económico, muito rapidamente e acaba por absorver a Alemanha de Leste, no início dos anos noventa. É hoje, de longe, a economia mais forte da Europa.
O resultado de uma primeira comparação entre a Alemanha Ocidental do pós-guerra e os países em desenvolvimento é esclarecedor. A Alemanha, embora abalada pela guerra, era economicamente mais forte do que a maioria dos PED atuais. No entanto, em 1953, concederam-lhe aquilo que recusam agora aos PED.
Parcela do rendimento das exportação destinada ao reembolso da dívida
A Alemanha foi autorizada a não encaminhar mais do que 5 % das suas receitas provenientes das exportações para o pagamento da dívida.
Em 2012, os países em desenvolvimento tiveram de destinar, em média, 10 % do rendimento das suas exportações ao pagamento da dívida. O número foi mesmo superior a 20 % no final dos anos noventa e início dos anos zero.
Em 2004, os países em desenvolvimento tiveram de destinar, em média, 12,5 % do seu rendimento proveniente das exportação para pagarem a dívida (8,7 % para os países da África subsaariana, 20 % para os países da América Latina e Caraíbas). Esses montantes foram mesmo superiores a 20 % no fim dos anos noventa.
Taxa de juro da dívida externa
No caso do acordo de 1953, referente à Alemanha, a taxa de juro oscila entre 0 e 5 %.
Por seu turno, no caso dos PED, as taxas de juro são muito mais elevadas. A maioria dos contratos prevê taxas variáveis com tendência de alta.
Entre 1980 e 2000, para o conjunto dos PED, a taxa de juro média oscilou entre 4,8 e 9,1 % (entre 5,7 e 11,4 % no caso da América Latina e Caraíbas e até mesmo entre 6,6 e 11,9 % no caso do Brasil, no período entre 1980 e 2004).
Moeda utilizada para pagar a dívida externa
A Alemanha foi autorizada a pagar na sua moeda nacional.
Nenhum país do Terceiro Mundo foi autorizado a fazer o mesmo, salvo exceções e para montantes irrisórios. Todos os grandes países endividados devem efetuar a totalidade dos seus reembolsos em divisas fortes (dólar, euro, yen, franco suíço, libra).
Cláusula de revisão de contrato
No caso da Alemanha, o acordo estabeleceu a possibilidade de suspender os pagamentos para renegociar condições, no caso de ocorrer alguma mudança importante que limitasse a disponibilização de recursos.
No caso dos contratos de empréstimo com os PED, os credores conseguiram que não houvesse cláusulas desse tipo.
Política de substituição de importações
No acordo da dívida alemã, é explicitamente previsto que o país possa produzir localmente o que importava anteriormente.
Em contrapartida, o Banco Mundial e o FMI impõem aos PED a renúncia à produção local dos produtos que pudessem importar.
Donativos em divisas (cash)
A Alemanha, embora grandemente responsável pela Segunda Guerra Mundial, foi contemplada com donativos importantes em divisas no contexto do Plano Marshall e noutros contextos.
Os PED, no seu conjunto, a quem os países ricos prometeram assistência e cooperação, receberam uma esmola sob a forma de donativos em divisas. Apesar de terem coletivamente reembolsado várias centenas de milhares de milhões de dólares por ano, receberam em cash aproximadamente 30 mil milhões de dólares. Os países mais endividados do Terceiro Mundo não receberam absolutamente nenhuma ajuda sob a forma de donativos em divisas.
É incontestável que a recusa de conceder aos PED endividados o mesmo tipo de ajuda concedida à Alemanha indica, de forma inegável, que os credores não queriam realmente que esses países se desendividassem. Os credores têm interesse em manter os PED endividados, de modo a extraírem o maior rendimento possível sob a forma de pagamento de dívida, a imporem políticas de acordo com os seus interesses e a assegurarem a lealdade dos PED às instituições internacionais.
Alemanha 1953/Grécia 2010-2012
Se arriscarmos fazer uma comparação entre o tratamento a que a Grécia está sujeita e aquele que foi aplicado à Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial, as diferenças e a injustiça são surpreendentes. Eis uma lista, não exaustiva, em 11 pontos:
1 - Proporcionalmente, a redução de dívida acordada, no caso da Grécia, em Março de 2012, é infinitamente menor do que a redução aplicada à Alemanha.
2 - As condições sociais e económicas que compõem esse plano (e os que o precederam) não favorecem em nada a recuperação da economia grega, apesar de terem contribuído grandemente para reanimar a economia alemã.
3 - Na Grécia são impostas privatizações que favorecem, sobretudo, os investidores estrangeiros. No entanto, a Alemanha foi incentivada a reforçar o seu controlo sobre os setores estratégicos da economia, com um setor público em pleno crescimento.
4 - As dívidas bilaterais da Grécia (em relação aos países que participaram no plano da troika) não são reduzidas (apenas as dívidas dos bancos privados têm sido), enquanto as dívidas bilaterais da Alemanha (a começar pelas dívidas em relação aos países que o Terceiro Reich tinha atacado, invadido ou anexado) foram reduzidas em 60 % ou mais.
5 – A Grécia deve pagar em euros, quando tem um défice comercial (e, portanto, falta de euros) com os seus parceiros europeus (especialmente com a Alemanha e com a França). Por seu turno, a Alemanha pagava o fundamental das suas dívidas em deutsche marks, fortemente desvalorizados.
6 - O banco central grego não pode emprestar dinheiro ao governo grego. No entanto, o banco central alemão emprestou às autoridades alemãs e fez funcionar (ainda que moderadamente) a impressão de notas.
7 - A Alemanha foi autorizada a não gastar mais do que 5 % das suas receitas provenientes da exportação para pagar a dívida. No entanto, nenhum limite foi fixado no caso da Grécia.
8 - Os novos títulos de dívida, que substituem os antigos devidos aos bancos gregos, não estão sob jurisdição dos tribunais gregos. São os tribunais do Luxemburgo e do Reino Unido que são competentes para julgar esses casos (e sabemos como são favoráveis a credores privados). No entanto, os tribunais alemães (a antiga potência agressiva e invasora) eram competentes.
9 - Em termos de pagamento da dívida externa, os tribunais alemães podiam recusar executar sentenças de tribunais estrangeiros ou tribunais arbitrais, no caso de a sua execução ameaçar a ordem pública. Na Grécia, a troika recusa, claro, que os tribunais possam invocar a ordem pública para suspender o pagamento da dívida. No entanto, os protestos sociais e a subida das forças neonazis são consequência direta das medidas ditadas pela troika e do pagamento da dívida. Apesar dos protestos de Bruxelas, do FMI e dos “mercados financeiros”, as autoridades gregas poderiam perfeitamente invocar o estado de necessidade e a ordem pública para suspenderem o pagamento da dívida e revogarem as medidas antissociais impostas pela troika.
10 - No caso da Alemanha, o acordo estabelecia a possibilidade de suspender os pagamentos para renegociar as condições no caso de surgir uma mudança substancial, que limitasse a disponibilização de recursos. Nada disto está previsto para a Grécia.
11 - No acordo sobre a dívida alemã, está expressamente previsto que o país pode produzir, a nível interno, o que anteriormente importava, para alcançar um superavit comercial e fortalecer os seus produtores locais. Mas a filosofia dos acordos impostos à Grécia e as regras da União Europeia proíbem as autoridades gregas de ajudar, de subsidiar e de proteger os seus produtores locais, quer seja na agricultura, na indústria ou nos serviços, face aos concorrentes de outros países da UE (que são os principais parceiros comerciais da Grécia).
Pode-se acrescentar que a Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial, recebeu donativos, em proporções consideráveis, inclusive, como mencionado acima, ao abrigo do Plano Marshall.
Entende-se por que razão o líder do Syriza, Alexis Tsipras, faz referência ao Acordo de Londres de 1953, quando se dirige à opinião pública europeia. A injustiça com que o povo grego é tratado (assim como outros povos cujas autoridades seguem as recomendações da troika) deve despertar a consciência de parte da opinião pública.
Mas não tenhamos ilusões, as razões que levaram as potências ocidentais a tratarem a Alemanha Ocidental como trataram, depois da Segunda Guerra Mundial, não se colocam no caso da Grécia.
Para encontrar uma verdadeira solução para o drama da dívida e da austeridade, são necessárias poderosas mobilizações sociais na Grécia e no resto da União Europeia e a subida ao poder de um governo popular, em Atenas. É necessário um ato unilateral de desobediência, assumido pelas autoridades de Atenas (apoiado pelo povo), no sentido de suspender o reembolso e de revogar as medidas antissociais, para forçar os credores a fazerem concessões de vulto e, finalmente, impor a anulação da dívida ilegítima. A realização de uma auditoria cidadã popular, à dívida grega, deve servir para preparar terreno.
Artigo de Éric Toussaint, publicado em cadtm.org. Tradução para português de Maria da Liberdade, revisão de Rui Viana Pereira.
1 Deutsche Auslandsschulden, 1951, p. 7 e seguintes, in Philipp Hersel, El acuerdo de Londres de 1953 (III), http://www.lainsigna.org/2003/enero/econ_005.htm
2 Um dólar norte-americano valia, na época, 4,2 DM (marcos alemães). A dívida da Alemanha Ocidental, depois da redução (ou seja, 14,5 mil milhões de DM) equivalia, então, a 3,45 mil milhões de dólares.
3 Os credores recusam sempre incluir esse tipo de cláusulas nos contratos celebrados com os países em desenvolvimento.
4 Deutsche Auslandsschulden, 1951, p. 64 e seguintes, in Philip Hersel, El acuerdo de Londres (IV), 8 de janeiro de 2003, http://www.lainsigna.org/2003/enero/econ_010.htm