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O Banco Mundial ao serviço dos poderosos num clima de caça às bruxas

Contrariamente a uma ideia aceite, a missão do Banco Mundial não consiste na redução da pobreza nos países em desenvolvimento. [Artigo publicado no portal do CADTM, o segundo da série "Os setenta anos de Bretton Woods, do Banco Mundial e do FMI".]
Sede do Banco Mundial em Washington. Foto Banco Mundial/Flickr

Contrariamente a uma ideia aceite, a missão do Banco Mundial não consiste na redução da pobreza nos países em desenvolvimento. A missão que os vencedores da Segunda Guerra Mundial lhe atribuíram, principalmente os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, consiste na ajuda à reconstrução da Europa e, subsidiariamente, em favorecer o crescimento dos países do Sul, uma boa parte deles, então, ainda colónias. É essa última missão que chamamos “desenvolvimento” e que ganhou cada vez mais maior dimensão. O Banco inicialmente empresta dinheiro às metrópoles coloniais (Grã-Bretanha, França, Bélgica) com o objectivo de mais bem explorarem as suas colónias; depois, quando posteriormente estas obtêm a independência, o Banco Mundial obriga-as a assumirem as dívidas contraídas pelas suas ex-metrópoles para reforçarem a colonização e a exploração dos seus recursos naturais e dos seus povos.

Os primeiros passos do Banco foram, de facto, difíceis. A hostilidade de Wall Street não diminuiu desde a morte de Franklin Roosevelt, em abril de 1945. Os banqueiros não confiavam numa instituição que, a seus olhos, ainda era demasiado influenciada pela política do New Deal, intervencionista demais e pública demais.

Ao longo dos primeiros dezassete anos de existência, os projetos apoiados pelo Banco Mundial consistem na melhoria das infraestruturas de comunicação e de produção de energia elétrica. O dinheiro emprestado pelo banco aos países em desenvolvimento deve, sobretudo, ser gasto aos países industrializados. Os projetos apoiados devem melhorar a capacidade de exportação do Sul para o Norte, a fim de satisfazerem as necessidades deste último e de enriquecerem um conjunto de multinacionais, no âmbito dos setores referidos. Durante este período, os projetos relativos à saúde, ao acesso à água potável e ao saneamento básico são inexistentes.

Desde o início, as missões do banco visam essencialmente aumentar a sua capacidade de influenciar as decisões tomadas pelas autoridades de um determinado país, favorecendo as grandes potências acionistas e a suas empresas.

A política do Banco Mundial evolui tendo em conta o perigo de contágio revolucionário e a Guerra Fria. O contexto político interpela os dirigentes do Banco: os seus debates internos demonstram que eles respondem a esse contexto em função dos interesses de Washington ou de outras metrópoles industrializadas.

A atividade do Banco Mundial começa em 1946. Em 18 de junho desse ano, Eugene Meyer, editor do Washington Post, ex-banqueiro, assume funções como primeiro Presidente do Banco. Permanecerá no cargo durante seis meses.

Os primeiros passos do Banco foram, de facto, difíceis. A hostilidade de Wall Street não diminuiu desde a morte de Franklin Roosevelt, em abril de 1945. Os banqueiros não confiavam numa instituição que, a seus olhos, ainda era demasiado influenciada pela política do New Deal, intervencionista demais e pública demais. Eles teriam preferido que os Estados Unidos desenvolvessem apenas o Export Import Bank. Regozijaram-se com a saída de Henry Morgenthau que deixou de ser secretário do Tesouro; não se opunham especificamente a Eugene Meyer, presidente do Banco, porém não apreciavam, de todo, os defensores do controlo público, como Emilio Collado e Harry White, diretores-executivos respectivamente do Banco Mundial e do FMI.

A partir de 1947, as alterações na direção do Banco satisfazem os banqueiros já que, daí em diante, um trio favorável a Wall Street toma as rédeas do poder: John J. McCloy é nomeado presidente do Banco Mundial em fevereiro de 1947, secundado por Robert Garner, vice-presidente, e Eugene Black assume o lugar de Emilio Collado. John J. McCloy tinha sido um grande advogado de negócios em Wall Street, Robert Garner era vice-presidente da General Foods Corporation e Eugene Black, vice-presidente do Chase National Bank. No FMI, Harry White é demitido. Wall Street está plenamente satisfeita. Com a saída forçada de Emilio Collado e de Harry White, desaparecem os últimos defensores da intervenção nos movimentos de capitais e do seu controlo público. Os “negócios” podem começar.


A caça às bruxas

A vida do Banco Mundial e a do FMI foram fortemente influenciadas pela Guerra Fria e pela caça às bruxas lançada, nos Estados Unidos, principalmente pelo senador republicano de Wisconsin, Joseph McCarthy. Harry White, pai do Banco Mundial e diretor-executivo dos Estados Unidos no FMI, foi objeto de uma investigação do FBI (Agência Federal de Investigação), em 1945, por espionagem em benefício da URSS. Em 1947, o seu caso foi submetido ao Grande Júri Federal, que recusa abrir um processo. Em 1948, é ouvido pelo Comité de Investigação de Atividades Antiamericanas (Un-American Activities Committee). Vítima de uma campanha agressiva, morre de ataque cardíaco em 16 de agosto de 1948, três dias após ter comparecido perante o comité. Em novembro de 1953, durante a presidência de Eisenhower, o procurador-geral condena, de forma póstuma, Harry White como espião soviético. Acusa igualmente o Presidente Truman de ter designado Harry White como diretor-executivo do FMI em 1946, sabendo que ele era um espião soviético.

A caça às bruxas afeta também o conjunto das Nações Unidas e as suas agências especializadas, porque, no final do seu mandato, em 09 de janeiro de 1953, o Presidente Truman faz sair um decreto solicitando, ao Secretário-Geral das Nações Unidas e aos dirigentes das agências especializadas, que comuniquem, ao governo dos Estados Unidos, informações sobre as candidaturas de emprego às Nações Unidas, entregues por cidadãos dos Estados Unidos. Os Estados Unidos encarregam-se de realizar uma investigação completa para detectar se as pessoas em questão são suscetíveis de se dedicarem à espionagem ou a ações subversivas (tais como “defender a revolução para alterar a forma constitucional de governo dos Estados Unidos”).

Nessa época, o termo “un-american” é um eufemismo corrente para caracterizar os comportamentos subversivos. Um elemento subversivo não pode ser admitido pela ONU. A interferência dos Estados Unidos nos assuntos internos da ONU é muito forte. São testemunhos disso o tom e o conteúdo da correspondência enviada ao presidente do Banco Mundial, Eugene Black, pelo secretário de Estado da administração Eisenhower, J. F. Dulles: “O secretário de Estado Dulles solicitou-me (escreve o seu assistente) que fizesse saber a grande importância dada por ele à obtenção de total cooperação por parte dos responsáveis pelas agências especializadas das Nações Unidas para a execução do decreto presidencial 10422. Ele está convencido que, sem essa total cooperação, os objetivos do decreto não serão alcançados e que, sem essa condição, os Estados Unidos não poderão continuar a apoiar estas organizações”.


O Banco Mundial, para emprestar dinheiro aos países membros, deve começar por pedir emprestado a Wall Street sob a forma de obrigações. Os banqueiros privados exigem garantias antes de concederem um empréstimo a um organismo público, visto que, no início de 1946, 87% dos títulos europeus estão em situação de incumprimento de pagamento e o mesmo acontece com 60% dos títulos latino-americanos e com 56% dos títulos do Extremo Oriente.

Com o trio McCloy-Garner-Black no comando do Banco, os banqueiros privados soltam, um pouco, os cordões à bolsa, porque têm a garantia de recuperarem, com lucro, as aplicações. E não se enganam.

Durante os primeiros anos de atividade, o Banco Mundial empresta principalmente aos países industrializados da Europa. É, com alguma timidez, que se lança na concessão de empréstimos aos países em desenvolvimento. Entre 1946 e 1948, concede empréstimos, num total de pouco mais de 500 milhões de dólares, aos países da Europa Ocidental (250 milhões à França, 207 milhões à Holanda, 40 milhões à Dinamarca e 12 milhões ao Luxemburgo), mas concede apenas um empréstimo a um país em desenvolvimento (16 milhões ao Chile).

A política de empréstimos do Banco Mundial vai sofrer uma reviravolta e diminuir devido ao lançamento do Plano Marshall, em abril de 1948, porque este ultrapassa, de longe, as capacidades do Banco (ver capítulo 4). Para o Banco, encerra-se o capítulo “reconstrução” e mantem-se apenas o capítulo “desenvolvimento”… Uma das consequências imediatas, para o Banco do lançamento do Plano Marshall foi a demissão, um mês depois, do seu presidente, John J. McCloy que parte para a Europa para ocupar o cargo de alto comissário dos Estados Unidos na Alemanha. É substituído por Eugene Black que permanecerá no lugar até 1962.

A revolução chinesa de 1949 faz com que os Estados Unidos percam um aliado de peso na Ásia e obriga Washington a integrar na sua estratégia a dimensão “subdesenvolvimento”, para evitar o “contágio” comunista. Os termos do ponto IV do discurso do Presidente Truman sobre o Estado da União de 1949 são muito esclarecedores: “É preciso lançar um programa audacioso para sustentar o crescimento das regiões subdesenvolvidas… Mais de metade da população mundial vive no limiar da pobreza… A sua alimentação é insuficiente, as populações são vítimas de doença… A sua vida económica é primitiva e estacionária, a sua pobreza constitui um handicap e uma ameaça, tanto para elas como para as regiões mais prósperas… Os Estados Unidos devem colocar as vantagens do seu conhecimento técnico à disposição dos povos pacíficos, para ajudá-los a alcançar a vida melhor que almejam… Com a colaboração do meio empresarial, do capital privado, da agricultura e do mundo do trabalho dos Estados Unidos, esse programa poderá aumentar muito a atividade industrial das outras nações e elevar substancialmente o seu nível de vida… Uma maior produção é a chave para a prosperidade e para a paz e a chave para uma maior produção é a aposta na expansão do saber científico e técnico da modernidade… Esperamos assim contribuir para a criação de condições que finalmente conduzirão toda a humanidade à liberdade e à felicidade pessoais…”.
Logo na primeira página do relatório anual do Banco Mundial, que segue o discurso do Presidente Truman, o Banco anuncia que aplicará a orientação do ponto IV do discurso: “Na data de publicação deste relatório, todas as implicações do programa Ponto IV e a maneira específica como vai ser implementado ainda não estão totalmente claras. No entanto, do ponto de vista do Banco Mundial, o programa é de interesse vital. (...) Os objetivos fundamentais do Banco, nesta área, são essencialmente os mesmos do programa Ponto IV”.

Temos a impressão de estar a ler a ata de uma reunião de partido, cumprindo uma ordem do comité central. Dito isto, esse quarto relatório anual, escrito sob o duplo impacto da revolução chinesa e do discurso de Harry Truman, é o primeiro a salientar que as tensões políticas e sociais causadas pela pobreza e pela desigualdade na distribuição da riqueza são um obstáculo ao desenvolvimento. A má distribuição de terras também é destacada, bem como o seu caráter ineficaz e opressivo.

O relatório declara que é preciso erradicar doenças como a malária, aumentar a taxa de escolarização, melhorar o serviço público de saúde...

Além disso, frisa o relatório, o desenvolvimento do Sul também é importante para os países desenvolvidos, porque a expansão dos países desenvolvidos depende dos mercados criados pelos países do sul.

Nos relatórios seguintes, os temas sociais desaparecem progressivamente e uma visão mais tradicional ganha terreno.

De todo o modo, o Banco Mundial não põe em prática a dimensão social do Ponto IV nas suas políticas de empréstimo. Não apoia projetos que visem a redistribuição de riqueza e a distribuição de terras aos camponeses que não as têm. No que diz respeito à melhoria da saúde, da educação e do sistema de saneamento, será preciso esperar pelos anos de 1960-1970 para ver o Banco apoiar alguns projetos e, ainda assim, com a maior cautela.

Algumas características da política de empréstimos do Banco

A análise dos projetos aceites ou recusados pelo Banco Mundial indica, de maneira muito clara, que o banco não queria apoiar, salvo algumas exceções, projetos industriais destinados à satisfação da procura interna dos países em desenvolvimento, porque isso diminuiria as importações provenientes dos países industrializados.

Custos elevados para os países que pedem empréstimos

Os empréstimos do Banco Mundial aos países em desenvolvimento (PED) eram muito onerosos: taxas de juro elevadas (equivalentes às de mercado ou próximas) às quais se acrescentava uma comissão para as despesas de administração, um período de reembolso muito curto. Isso provocou logo protestos por parte dos PED que propuseram que a ONU pusesse em vigor um financiamento alternativo e menos oneroso do que o do Banco Mundial (ver capítulo seguinte).

Hoje em dia, o Banco Mundial empresta a taxas próximas das de mercado aos países em desenvolvimento, cujo rendimento per capita anual seja superior a US$965. À semelhança de um banco clássico, tem o cuidado de selecionar projetos rentáveis, sem se esquecer de impor reformas económicas draconianas. O dinheiro emprestado vem maioritariamente da emissão de obrigações nos mercados financeiros (13 mil milhões de dólares em 2004). A solidez do Banco Mundial, garantida pelos países ricos, que são os seus maiores acionistas, permite-lhe obter esses fundos a taxas vantajosas. Os reembolsos ocorrem num período compreendido entre quinze e vinte anos, com um período de carência de três a cinco anos, durante o qual o capital não é reembolsado. Essa atividade de empréstimo é muito lucrativa: o Banco Mundial realiza lucros consideráveis, da ordem dos mil milhões de dólares por ano, à custa dos países em desenvolvimento e das suas populações.

Nem um único empréstimo para escolas até 1962

O Banco Mundial empresta para projetos específicos: uma estrada, uma infraestrutura portuária, uma barragem, um projeto agrícola...

Ao longo dos seus primeiros dezassete anos de atividade, o Banco não concedeu um único empréstimo para escolas, para postos de saúde, para sistemas de esgotos, para a canalização de água potável !

Até 1962, todos os empréstimos, sem exceção, destinaram-se a infraestruturas elétricas, a vias de comunicação (estradas, ferrovias...), a barragens, à mecanização da agricultura, à promoção de culturas para exportação (chá, cacau, arroz...) ou, marginalmente, à modernização da indústria de transformação.

Orientar os investimentos para a exportação
O objectivo corresponde a prioridades muito precisas: trata-se de aumentar a capacidade de os países em desenvolvimento exportarem as matérias-primas, o combustível e os produtos agrícolas tropicais que os países industrializados necessitam.

A análise dos projetos aceites ou recusados pelo Banco Mundial indica, de maneira muito clara, que o banco não queria apoiar, salvo algumas exceções, projetos industriais destinados à satisfação da procura interna dos países em desenvolvimento, porque isso diminuiria as importações provenientes dos países industrializados. As exceções correspondem a um punhado de países estrategicamente importantes e que dispunham de uma força real de negociação. Era o caso da Índia.

O dinheiro emprestado ao Sul regressa ao Norte.
O Banco Mundial emprestava dinheiro na condição de que fosse gasto pelos países em desenvolvimento em encomendas de bens e serviços feitas aos países mais industrializados. Como demonstram os quadros abaixo, ao longo dos primeiros dezassete anos, mais de 93% do dinheiro emprestado regressava, todos os anos, aos países industrializados sob a forma de compras.

Empréstimos odiosos concedidos às metrópoles coloniais.

Após dez anos de existência, o Banco Mundial só tem dois membros na África subsaariana: a Etiópia e a África do Sul. Violando o direito dos povos à autodeterminação, o Banco mundial concede empréstimos à Bélgica, à França, à Grã-Bretanha, para financiarem projetos nas suas colónias. Como reconhecem os historiadores do Banco: “Esses empréstimos, que servem para aliviar a escassez de dólares das potências coloniais europeias, eram amplamente direcionados para os interesses coloniais, em especial para o setor da mineração, seja para os investimentos diretos, seja para a assistência indireta, assim como para o desenvolvimento dos sectores dos transportes e das minas”. Esses empréstimos permitem aos poderes coloniais reforçar o jugo que exercem sobre os povos que colonizaram.

Contribuem para abastecer as metrópoles coloniais de minérios, produtos agrícolas e combustível. No caso do Congo Belga, os milhões de dólares que lhe foram emprestados, para projetos definidos pelo poder colonial, foram quase na totalidade gastos, pela administração colonial do Congo, na compra de produtos exportados pela Bélgica. O Congo Belga recebeu no total 120 milhões de dólares emprestados (em três parcelas), dos quais 105,4 milhões foram gastos na Bélgica.

…legados, um peso para as jovens nações independentes.

Quando as colónias, mencionadas acima, obtêm a independência, os principais acionistas chegam a acordo no sentido de lhes transferirem o peso da dívida contraída pelo poder colonial.

Prova disso é o exemplo dado pela Mauritânia. No dia 17 de março de 1960, a França dá o seu aval a um empréstimo de 66 milhões de dólares, contraído pela Sociedade Anónima das Minas de Ferro da Mauritânia (MIFERMA). A Mauritânia será ainda, por algum tempo, uma colónia francesa já que a sua independência será proclamada em 28 de novembro do mesmo ano. Esse empréstimo deve ser liquidado entre 1966 e 1975. Segundo o relatório anual do Banco Mundial, seis anos mais tarde, a Mauritânia independente possui uma dívida de 66 milhões de dólares. O empréstimo, contraído a pedido da França quando a Mauritânia era ainda sua colónia, converteu-se em dívida da Mauritânia, alguns anos mais tarde. O Banco generalizou o procedimento que consiste em transferir a dívida contratada pelo poder colonial para os novos Estados independentes.

Ora, um caso semelhante tinha já ocorrido no passado, no âmbito do Tratado de Versalhes. Por ocasião da reconstituição da Polónia como Estado independente, após a Primeira Guerra Mundial, foi decidido que as dívidas contraídas pela Alemanha, para colonizar parte da Polónia, não ficariam a cargo do novo Estado independente. O Tratado de Versalhes, de 28 de junho de 1919, estipulava : “A parcela da dívida que, segundo a Comissão de Reparações, prevista no dito artigo, se refere às medidas tomadas pelos governos alemão e prussiano, para a colonização alemã da Polónia, será excluída da parte deixada a cargo desta última...”. O Tratado prevê que os credores, que emprestaram à Alemanha, para projetos em território polaco, só podem cobrar a essa potência o que lhes é devido e não à Polónia. Alexander-Nahum Sack, o teórico da dívida odiosa, especifica no seu tratado jurídico de 1927: “Quando o governo contrai dívidas com o objectivo de subjugar a população de uma parte do seu território ou com o objectivo de a colonizar através dos representantes da nacionalidade dominante, etc., essas dívidas são odiosas para a população que vive nessa parcela de território do Estado devedor”.

O mesmo se aplica na íntegra aos empréstimos que o Banco concedeu à Bélgica, à França e à Grã-Bretanha para desenvolverem as suas colónias. Consequentemente, o Banco viola o direito internacional ao imputar aos novos Estados independentes os encargos das dívidas contraídas para a colonização. O Banco, com a conivência dos seus principais acionistas coloniais e com a bênção dos Estados Unidos, cometeu um ato que não pode permanecer impune. Essas dívidas estão feridas de nulidade e o Banco deve prestar contas dos seus atos perante a justiça. Os Estados que foram vítimas dessa violação do direito deveriam exigir reparações e utilizar os montantes em questão para resgatar a dívida social devida ao povo.

As missões do Banco Mundial

O Banco Mundial envia missões de especialistas a determinados países membros. Nos primeiro vinte anos, trata-se, na maior parte das vezes, de especialistas dos Estados Unidos.

No início, o país “teste” mais visitado é incontestavelmente a Colômbia. É um país chave do ponto de vista dos interesses estratégicos dos Estados Unidos. Uma das prioridades de Washington foi evitar que a Colômbia caísse no campo soviético ou resvalasse para a revolução social.

A partir de 1949, o Banco envia à Colômbia uma missão bem guarnecida, composta por especialistas do Banco, do FMI, da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) e da OMS (Organização Mundial de Saúde). O objectivo é estudar as necessidades e determinar uma estratégia global de desenvolvimento para o país. Os projetos concretos, apoiados pelo Banco, referem-se à compra, aos Estados Unidos, de setenta máquinas de terraplanagem, seiscentos tratores e equipamento para três centrais hidroelétricas! Em 1950, o governo colombiano estuda o relatório da comissão do Banco para formular um programa de desenvolvimento, tendo esse documento como base. No ano seguinte, em 1951, uma comissão de especialistas colombianos independentes finaliza a elaboração desse programa de desenvolvimento, recomendando que o governo adote as seguintes medidas: reforma orçamental e bancária, redução e flexibilização das restrições à importação; flexibilização dos controlos de câmbio; adoção de uma atitude liberal e atrativa em relação ao capital estrangeiro.

Consultores, designados, de forma conjunta, pelo Banco e pelo governo colombiano, elaboram igualmente propostas relativas aos caminhos de ferro, à aviação civil, ao investimento industrial e à emissão de títulos de dívida pública. Um conselheiro económico, nomeado pelo Banco, foi incorporado pelo Conselho Nacional de Planeamento Económico da Colômbia. No relatório anual de 1953, tomamos conhecimento da implementação de instâncias de planeamento. Vejamos as palavras de uma das personalidades do FMI, Jacques Polack, a propósito da sua participação numa missão na Colômbia: “As instruções que recebi na qualidade de dirigente da missão do FMI na Colômbia, em 1955, formuladas numa reunião entre o vice-presidente do Banco e o diretor-executivo do Fundo (...) diziam claramente, na linguagem contundente da época: "torçam-lhes o braço direito e nós torcer-lhes-emos o braço esquerdo”.

Vemos que, em geral, essas missões visam essencialmente o aumento da capacidade do Banco (e de outras instituições, em particular o FMI) de influenciar as decisões tomadas pelas autoridades de um dado país, num sentido favorável às grandes potências acionistas e às suas empresas.

A política do Banco Mundial evolui reagindo ao perigo de contágio revolucionário e à Guerra Fria

Em 1950, o campo aliado dos Estados Unidos no Banco Mundial expulsa, de facto, a China, que passou em 1949 para o lado comunista e concede o seu lugar ao governo anticomunista do general Tchang Kai Chek, instalado na ilha de Taiwan. Para evitar o contágio ao resto da Ásia, diversas estratégias serão utilizadas e alguns países chave serão objeto de uma intervenção sistemática do Banco Mundial. É o caso da Índia, do Paquistão, da Tailândia, das Filipinas e da Indonésia. Até 1961, o Banco não será autorizado a ocupar-se da Coreia do Sul, que constitui uma área reservada exclusiva dos Estados Unidos (ver capítulo 11).

A Polónia e a Checoslováquia, que aderem ao bloco soviético, saem de imediato do Banco. A Jugoslávia, expulsa do campo soviético, recebe, como contrapartida, apoio financeiro do Banco.
O ano de 1959 começa sob um enorme furacão revolucionário, que sacode as Américas: a vitória da revolução cubana nas barbas do Tio Sam. Washington é obrigado a fazer concessões aos governos e aos povos da América Latina para tentar evitar que a revolução se propague como um rastilho de pólvora a outros países.

O historiador do Banco, Richard Webb, ex-presidente do Banco Central do Peru, compreendeu bem a dimensão do fenómeno: “Entre 1959 e 1960, a América Latina beneficiou muito da revolução cubana. Os primeiros efeitos surgem com a decisão de constituir um banco interamericano de desenvolvimento e de responder – após longa resistência – aos pedidos latino-americanos de estabilização dos preços das matérias-primas; um acordo sobre o café é assinado em setembro de 1959. A ajuda aumentou no início de 1960, após as expropriações massivas em Cuba, o pacto comercial da ilha com a URSS e a viagem de Eisenhower à América Latina. ‘Após o meu regresso’, escreve, ‘eu tinha a intenção de implementar medidas históricas com o objetivo de realizar reformas sociais que beneficiassem todos os povos da América Latina”.

O presidente D. Eisenhower acrescenta: “Estávamos constantemente confrontados com a questão do que poderia ser feito a respeito da efervescência revolucionária no mundo. (...) Eram necessárias novas medidas políticas que atacassem a raiz do problema: a agitação revolucionária. (...). Uma sugestão era (...) aumentar o salário dos professores e construir centenas de escolas profissionais. (...) Tínhamos de afastar de nós próprios algumas velhas ideias (...) para impedir o Mundo Livre de arder em chamas”.

O historiador do Banco, Richard Webb, prossegue: “Em abril, o Secretário de Estado, Christian A. Herter, informou a União Pan-Americana sobre uma grande mudança na política externa americana para a América latina, inclusive a decisão de apoiar a reforma agrária. Dillon, em agosto, apresentou ao Congresso um novo programa de ajuda, que solicitava ao Banco Interamericano de Desenvolvimento um financiamento de 600 milhões de dólares, com taxas especiais, e que dava ênfase às despesas sociais destinadas a dar resposta às desigualdades na distribuição de rendimentos e às instituições anquilosadas, dois sérios obstáculos ao progresso. A lei entrou de imediato em vigor. A percepção da crise na região mantinha-se em 1961 e Kennedy foi um pouco mais além na resposta dada: ‘A par com Berlim, é a região mais crítica. (...) O próximo golpe pode vir de qualquer canto da região. (...) Não sei se o Congresso me apoiará, porém chegou o momento, porque estão todos assustados com a possibilidade de Castro conseguir fazer propagar a revolução por todo o hemisfério’. Em março de 1961, Kennedy pediu que se reagisse para impedir o caos na Bolívia. O seu governo decidiu ignorar tanto as recomendações do Fundo Monetário Internacional como as do Departamento de Estado, que queriam aplicar à Bolívia um pacote de medidas de austeridade anti–inflacionárias e, em vez disso, ofereceu ajuda económica imediata. (...) ‘As coisas estavam suficientemente sombrias mesmo sem pedir mais sacrifícios àqueles que não tinham nada para dar’. Uma semana mais tarde, Kennedy anunciava a Aliança para o Progresso na América Latina, um programa de dez anos de cooperação e desenvolvimento, dando ênfase às reformas sociais, através da ajuda em larga escala aos países que ‘contribuíssem com algo’”.

O anúncio de grandes reformas não impediu o Banco e os Estados Unidos de sustentarem regimes ditatoriais e corruptos, como o de Anastasio Somoza na Nicarágua. Eis um exemplo: em 12 de abril de 1961, apesar de cinco dias mais tarde, os Estados Unidos lançarem uma expedição militar contra Cuba, a partir de território nicaraguano, a direção do Banco decidiu conceder um empréstimo à Nicarágua, sabendo perfeitamente que o dinheiro serviria para reforçar o poder económico do ditador. Foi o preço a pagar pelo apoio ao ataque contra Cuba. De seguida, apresenta-se um excerto do relatório oficial interno sobre a discussão entre dirigentes do Banco, a 12 de abril de 1961:
- Sr. [Aron] Broches. Soube que a família Somoza está em todo lado e que seria difícil encontrar qualquer coisa na Nicarágua sem esbarrar com eles.
- Sr. [Robert] Cavanaugh. Eu não quereria dar a impressão de estar a promover um acordo para pedir ao povo que venda as terras cobiçadas pelo presidente.
- Sr [Simon] Cargill. Se o projeto é em si satisfatório, não me parece que o interesse do presidente seja um problema que leve a que tudo deva ser abandonado.
- Sr. Rucinski. Concordo que é tarde demais para voltar atrás.
- Sr. Aldewereld. O problema da propriedade das terras e da família Somoza é desagradável, mas é algo que estávamos à espera desde que tudo começou e penso que agora é tarde demais para discutir o assunto.

Alguns meses mais tarde, em junho de 1961, os mesmos dirigentes do Banco debatem o empréstimo a ser concedido ao Equador. O conteúdo da discussão é revelador do contexto político global que motiva a ação do Banco:
- Sr. Knapp. O Equador parece ser o próximo país a tornar-se ‘castrista’. (...) Que risco político representa a população indígena invisível, que constitui metade ou dois terços do país e está completamente fora da situação política e económica? (...)
- Sr. [John] de Wilde. O Equador teve um bom percurso. Não seria este o momento oportuno para as agências (...) como o Banco se manifestarem (...) a fim de evitar uma deterioração da situação política?
- Sr. Knapp. (...) Esse é o tipo de trabalho sujo que os Estados Unidos deveriam cumprir.
- Sr. Broches. Qual a posição do Equador no índice de injustiça social a que o Sr. Kennedy se refere?
- Sr [Orvis] Schmidt. Se há grandes disparidades na distribuição de riqueza no Equador, elas são menores do que noutros países da América Latina. (...) Os índios nas montanhas ainda estão tranquilos, apesar de o governo não ter feito grande coisa por eles.
- Sr. Demuth. Se olharmos para os países feudais da América Latina, (...) devemos ser realistas e reconhecer que vão ocorrer revoluções. Só podemos esperar que [os novos governos] honrem as obrigações dos seus antecessores.
- Sr. Aldewereld. O colonialismo é certamente mau no Equador (...) até mesmo (...) pior do que no Extremo Oriente. Algo violento vai acontecer. (...) Eu acho que os nossos projetos têm de servir para reduzir as pressões internas. (...) Estou de acordo que poderíamos conceder mais créditos da agência internacional de desenvolvimento para atenuar esses riscos políticos.
- Sr. Knapp. (...) Mas os riscos políticos levam à falta de pagamento.

Não é possível ser mais claro.


Artigo publicado no CADTM

Artigo da Série : Os setenta anos de Bretton Woods, do Banco Mundial e do FMI

Tradução: Maria da Liberdade

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Sobre o/a autor(a)

Politólogo. Presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo
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