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Debate sobre “fundos abutres” na Argentina vai da suspensão do pagamento à aposta no Bitcoin

A criatividade da claque argentina durante a Copa do Mundo não ficou só por conta das músicas e provocações aos rivais em campo. Fora das quatro linhas, os adeptos também tinham o seu alvo. Durante os jogos, quase sempre foi possível ver alguma bandeira com a frase “Fora fundos abutres”, entre os hinchas da albiceleste.
Os “abutres”, como ficaram conhecidos no país sul-americano, são fundos de investimento que compraram títulos da dívida argentina a um valor nominal muito inferior ao que exigem cobrar na Justiça. Em junho, o Supremo Tribunal dos EUA rejeitou o recurso argentino e manteve a sentença do juiz federal Thomas Griesa, de Nova Iorque. Em 2012, Griesa determinou que a Argentina deveria pagar na íntegra a dívida aos fundos Aurelius Management e NML Capital, uma unidade da Elliott Management, do bilionário Paul Singer.
Mesmo durante o grande evento do futebol mundial, foi intenso o debate sobre como agir diante do impasse que pode empurrar a Argentina à falência técnica: se tenta pagar aos credores que entraram nas reestruturações da dívida, corre o risco de ver o dinheiro embargado e entregue aos fundos beneficiados pela Justiça norte-americana. Se não paga, o país não honra os seus compromissos e pode entrar em default.
Ilegalidade da dívida
David Acuña, da Corrente Peronista Descamisados, movimento social de base, também acredita que a dívida deveria ser considerada ilegal. “O pecado original foi tê-la reconhecido em 1983, com o regresso da democracia”, defende.
Em 2000, o juiz argentino Jorge Ballesteros sentenciou que a dívida externa do país foi “grosseiramente incrementada a partir de 1976 [ano do último golpe militar] mediante uma política económica vulgar, que deixou o país de joelhos”.
Ballesteros é lembrado por quem defende a investigação da dívida, como Leandro Amoretti, economista e referência do partido Pátria Grande, formação recém-lançada por uma frente de movimentos populares. “É necessário suspender o pagamento e investigar a dívida”, afirma em entrevista à Opera Mundi. Ele defende que o exemplo equatoriano de auditoria e reestruturação a partir das provas de ilegalidade da dívida pode servir de exemplo para um debate similar na Argentina.
No entanto, Amoretti acredita que isso depende também de um grande apoio regional. “Uma decisão como essa não pode ser pensada sem articulação de países latino-americanos, que também foram submetidos aos grandes capitais financeiros internacionais”, avalia. “A Argentina precisaria de apoio público e de acordos de investimento produtivo que mostrem que o país é soberano e vai pagar as suas dívidas. Não é fácil, mas é o que deve ser feito.”
David Acuña, da Corrente Peronista Descamisados, movimento social de base, também acredita que a dívida deveria ser considerada ilegal. “O pecado original foi tê-la reconhecido em 1983, com o regresso da democracia”, defende. No entanto, ele acredita que a correlação de forças hoje obriga a Argentina a uma negociação com os credores, sem descuidar de outras medidas que diminuam a dependência do mercado financeiro.
“Existe um processo forte de unidade das nações que integram a Unasul (União de Nações Sul-americanas) e esse é um âmbito onde se deve definir agendas conjuntas de funcionamento regional contra fundos especulativos”, defende Acuña. “Internamente, é preciso travar a estrangeirização da terra e democratizar o acesso a ela, avançar sobre o capital estrangeiro com uma eventual nacionalização, rever taxas sobre transações financeiras, fazer com que especulação financeira não seja um bom negócio.”
Acuña também acredita que o debate não pode estar à margem das consequências humanas do calote – ou do pagamento da dívida. “Destinar o dinheiro ao pagamento implica que haja menos recursos para infraestrutura, subsídios e programas de transferência de rendimento. A vida quotidiana das classes populares seria afetada e seríamos um país para poucos”, afirma.
Amoretti concorda com Acuña. “Destinamos à dívida muitos milhões de dólares que poderiam ser usados em desenvolvimento interno. Os anos que sucederam a crise de 2001 foram melhores que a década anterior, mas a consolidação da internacionalização da economia e a dependência de capitais estrangeiros faz com que ainda estejamos muito longe dos níveis de igualdade e soberania que um dia tivemos.”
Bitcoin
Para Santiago Siri, um dos ideólogos do Partido de la Red (Partido da Rede, em português), o governo argentino deveria cogitar a possibilidade de ser o primeiro a arriscar uma pequena parte de suas reservas em Bitcoin, sistema virtual de transações financeiras. Para Siri, a decisão de desprender-se do dólar poderá revolucionar o sistema financeiro.
“Se as nossas reservas estão em dólares, é preciso pensar que tipo de soberania há em relação a elas. E se vamos falar de soberania, acredito que é preciso apostar numa nova alternativa. Ao colocar 1% das reservas em Bitcoin, a Argentina tem a oportunidade histórica, com um risco marginal, de ser protagonista de um novo sistema financeiro”, desafia Siri.
O sistema Bitcoin é descentralizado e não passa por nenhuma instituição financeira reconhecida hoje. As transações são feitas no sistema peer to peer (ponto a ponto), que permite compartilhamentos em rede sem a necessidade de que os dados passem por um servidor central, que no caso do sistema financeiro atual seriam os Bancos Centrais.
“É muito difícil se desvencilhar do paradigma do dólar para atribuir valor a qualquer coisa. Mas o dólar também é ficcional, é emitido sem lastro”, diz Siri. “Mais importante que olhar a proposta pelo lado quantitativo é olhá-la pelo qualitativo: se um Estado decide ser o primeiro a tomar parte no Bitcoin, certamente seria um ator dominante nesse sistema financeiro.”
Prazo final
O primeiro prazo para o pagamento dos juros da dívida a credores que entraram nas reestruturações, 30/06, já venceu. A Argentina está agora em processo de negociação com os “fundos abutres”, enquanto se aproxima o prazo final, na próxima quarta-feira (30/07).
Nos últimos dias de junho, a Argentina tentou pagar juros da dívida a credores que entraram nas reestruturações de 2005 e 2010, mas o juiz Thomas Griesa ordenou que o Bank of New York Mellon, onde o dinheiro foi depositado, devolvesse a quantia. Com o risco de embargo desse pagamento, a estratégia do governo argentino era eludir o calote técnico ao deixar claro que não cumpria com as suas obrigações por culpa da sentença no país norte-americano.
O primeiro prazo para o pagamento dos juros da dívida a credores que entraram nas reestruturações, 30/06, já venceu. A Argentina está agora em processo de negociação com os “fundos abutres”, enquanto se aproxima o prazo final, na próxima quarta-feira (30/07).
Em 26/06 – quatro dias antes do primeiro vencimento - a Argentina pagou US$ 1,15 mil milhões a credores que entraram nas restruturações de 2005 e 2010. Parte do pagamento, US$ 539 milhões, foi depositada no BONY (Bank of New York Mellon), mas Griesa ordenou o bloqueio dessa quantia, o que impediu que os obrigacionistas recebessem o pagamento.
Na última segunda-feira (21/07), Griesa negou o pedido de Buenos Aires para reestabelecer a cautelar à sua sentença, o que permitiria que a Argentina pagasse os credores da dívida reestruturada enquanto negoceia com os chamados “fundos abutres”. O juiz nova-iorquino manteve o bloqueio ao dinheiro depositado pelo país sul-americano no BONY.
Em 30/07 vence o segundo prazo para o pagamento aos obrigacionistas que entraram nas reestruturações. O governo de Cristina Kirchner afirma que, em caso de ter de pagar a dívida integral com os “abutres”, haveria possibilidade de que outros credores exijam na justiça as mesmas condições ao ativar a cláusula RUFO (Direitos Sobre Ofertas Futuras, na sigla em inglês) do contrato de reestruturação, o que impossibilitaria qualquer pagamento da dívida.
Artigo de Aline Gatto Boueri, em Buenos Aires. Publicado no portal Opera Mundi
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