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A pílula contra a SIDA

A nova "pílula contra a SIDA" ainda tem um longo caminho a percorrer até demonstrar ser uma estratégia eficaz, senão mesmo "a estratégia". Mas para começar será talvez boa ideia começar esta discussão livre de preconceitos!

A OMS defendeu publicamente a semana passada que as pessoas com comportamentos de risco deviam considerar tomar comprimidos anti-retrovirais para reduzirem a probabilidade de se infectarem com o VIH. Esta recomendação, para além de trabalhadores sexuais, reclusos e consumidores de drogas endovenosas, inclui também todos os homens que têm sexo com homens. Na génese desta posição está um facto para muitos ainda desconhecido mas que é já uma realidade estatística: a infecção pelo HIV está novamente a explodir! Sobretudo entre estes "grupos". Esta estratégia de prevenção é debatida há já alguns anos pela comunidade científica e médica ligada ao HIV e é conhecida como PrEP ("pre-exposure prophylaxis"). Em ensaios clínicos um comprimido por dia de um anti-retrovirail (a mesma medicação usada para tratar as pessoas infectadas), demonstrou ser capaz de reduzir a infecção por VIH em mais de 95% dos casos.

 

Isto colocou a OMS no centro de um fogo cruzado, em que os opositores da estratégia são, muitas vezes, os próprios homossexuais e as suas organizações. As críticas são muitas e incluem:

1. A toma deste comprimido vai criar uma falsa sensação de segurança e levar os homossexuais a fazerem mais sexo desprotegido (sem preservativo);

2. Os homossexuais vão ter mais sexo promiscuo e fora das "normas" das relações habituais;

3. A OMS está apenas a fazer um grande favor à indústria farmacêutica, que verá os seus lucros aumentarem;

4. Os anti-retrovirais são caros (podem ascender aos 200-300 euros por mês) quando comparados com o preço dos preservativos;

5. Em plena crise, com um desemprego galopante, os homossexuais não devem ter direito a estes comprimidos, visto existirem muitos outros cidadãos doentes a necessitarem de cuidados que lhe podem salvar a vida;

Num artigo do New York Times, um conhecido activista gay Americano, usava todas estas aritméticas argumentativas sob o título de "Truvada Whores" (as prostitutas do Truvada - o nome do antiretroviral mais utilizado em todo o mundo).

 

Não vou tentar rebater tudo isto, vou antes fazer um exercício diferente: imaginemos que estamos nos anos setenta e discutimos, pela primeira vez em Portugal, o uso da pílula anticoncepcional pelas mulheres, ou que voltamos ao referendo pelo aborto de 2007 e estamos a  ouvir argumentos da campanha do Não. Passo a exemplificar:

1. A pílula / aborto vai criar uma falsa sensação de segurança na mulher e levá-las a terem mais relações sexuais desprotegidas;

2. As mulheres vão ter mais sexo promiscuo, muitas vezes fora do casamento, aumentando a infidelidade;

3. Estamos a fazer uma grande favor à indústria farmacêutica / clínicas privadas de aborto, que verão os seus lucros aumentarem;

4. A pílula (em toma continuada) / o aborto são caros quando comparados com o preço dos preservativos ou outros métodos anti-concepcionais;

5. Num pais com dificuldades económicas, as mulheres não deveriam ter direito a estes métodos, quando existem muitos outros cidadãos doentes a necessitarem de cuidados que lhes podem salvar a vida;

 

Qualquer semelhança entre estas duas situações não é pura coincidência, é mesmo a realidade. No fundo o que está na base de ambas as situações não é mais do que o medo que "a moral vigente seja destruída". Os homossexuais, tal como as mulheres no passado, têm o "dever de se comportarem", ainda melhor se estiverem casados e forem fiéis. A sociedade não pode dar instrumentos aos homossexuais que os vão tornar ainda mais "esquisitos, promíscuos, irresponsáveis"! E não se pode gastar dinheiro a "promover" a promiscuidade e a pouca-vergonha!

 

Termino este exercício com apenas algumas notas:

- O Estado investe (ou deve investir) em estratégias de prevenção porque é sabido que curar ou tratar uma doença fica sempre mais caro do que preveni-la;

- os comportamentos de maior ou menor risco sempre existiram e sempre existirão, em todas as sociedade e em todos os países. Procurar minimiza-los através da prevenção é o máximo que conseguiremos fazer;

- A OMS defende que os anti-retrovirais façam parte de uma estratégia de prevenção alargada que inclua outras medidas. E que os próprios anti-retrovirais sejam ponderadas caso a caso e adequados à pessoa em questão;

 

Mas há uma coisa que a OMS está a conseguir com esta estratégia: difundir a mensagem que a infecção está a "explodir" novamente. E como os homossexuais e os restantes grupos que estão hoje com taxas de infecção assustadoras não vivem isolados do resto do mundo, todos e todas estão em risco. Aliás sabemos bem o que aconteceu quando a SIDA surgiu nos anos 80 em grupos de homossexuais Americanos: em poucos anos estava em todo o mundo e difundida entre todos os tipos de "grupos", sejam eles sexuais ou de qualquer outro tipo!

 

A nova "pílula contra a SIDA" ainda tem um longo caminho a percorrer até demonstrar ser uma estratégia eficaz, senão mesmo "a estratégia". Mas para começar será talvez boa ideia começar esta discussão livre de preconceitos!

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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