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Mães por encomenda

Os direitos sexuais e reprodutivos e o direito à escolha foram resultado de lutas intensas e importantes. Recuar neste domínio é fazer tábua rasa dessas conquistas.

Na semana que agora termina falou-se muito de natalidade em Portugal. Os dados estatísticos que foram revelados mostram que o país tem o número de nascimentos mais baixo da União Europeia e cada mulher tem em média 1,2 filhos o que não permite assegurar a renovação geracional. Mas os dados estatísticos mostraram também que a natalidade desejada, ou seja, o número de filhos que as mulheres portuguesas gostariam de ter é, em média, de 2,2. Foi também nesta semana que foram apresentadas as propostas do Grupo de Trabalho que o governo criou para apresentar medidas de combate a este problema. O debate que se gerou foi amplo e igualmente equívoco.

Algumas das vozes que vieram a público quiseram associar a descida da natalidade à lei da interrupção voluntária da gravidez ou à existência de planeamento familiar. Este é um debate equívoco e perigoso porque confunde a análise de um problema com um recuo conservador face a algumas conquistas importantes nos direitos das mulheres. A natalidade em Portugal é, de facto, um problema, mas é-o na medida em que as mulheres portuguesas não podem ter os filhos de acordo com a sua vontade porque a vida que vivem não o permite. Pudessem as mulheres portuguesas ter os filhos que desejam e a renovação geracional estaria assegurada naturalmente. Este debate não deve, por isso, servir para atacar o planeamento familiar, conquista importante do Serviço Nacional de Saúde, ou para colocar em causa o direito conquistado de não ter filhos. Os direitos sexuais e reprodutivos e o direito à escolha foram resultado de lutas intensas e importantes. Recuar neste domínio é fazer tábua rasa dessas conquistas.

Devemos preocupar-nos com este problema sim. Devemos procurar as suas causas sim. Tudo isso é importante porque tudo isso nos dá ferramentas para discutir a sociedade que temos e a sociedade que queremos. Este é seguramente um dos indicadores mais claros do falhanço das políticas de austeridade: não tem filhos quem quer, mas antes quem pode. Apresentam-se medidas que, no caso dos direitos laborais, se destinam a apenas uma ínfima fatia das possíveis mães porque, infelizmente, apenas uma ínfima fatia tem contrato de trabalho com direitos. A maioria está desempregada ou tem uma bolsa ou um vínculo precário. São medidas cínicas. E ignoram que as mulheres que ainda têm vínculo laboral com direitos sofrem chantagem permanente para não engravidar sob pena de perderem esse vínculo. Se o governo quer falar de natalidade que fale, mas que não atire areia para os olhos de quem quer ter filhos e não pode. Trabalho com direitos e bem-estar social. São essas as condições básicas para se iniciar o debate. E liberdade de escolha, sempre. Não é de encomendas que estamos a falar.

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
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