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O FMI não quer matar

O FMI reconhece ter havido "custos desnecessários" das políticas de ajustamento sem reestruturação da dívida, assumindo a existência de "erros técnicos e de cálculo" sobre o impacto das "políticas de choque" e da austeridade servida à força da chibata a portugueses, gregos e irlandeses.

Não lhes podemos dar mais do que uns dias em liberdade, perdoem-me o exercício de exigência em cativeiro. Internamento compulsivo numa clínica de reabilitação económico-financeira é o que lhes desejo. No fim, com TPC na sebenta, trabalhos para casa no momento em que porventura saiam identificados como novos, sujeitos a uma espécie de termo de identidade e residência ou, nalguns casos, com pulseira electrónica de cores fantasia, vermelho e verde, borracha moda. Quando essa imensa maioria de políticos profissionais do "arco do poder" regressar da terapia conjunta, talvez encontrem um país melhor, reabilitado, com a dívida renegociada. Será porque outros terão feito o que se exige. Se é o FMI que o diz por que não o dizem eles?

Milhares de almas podiam acordar desconfiadas quando, durante anos, a reestruturação da dívida era um cavalo de batalha apenas para o BE e CDU. Sempre o perigo do esquerdismo extremista a interferir na alta finança como um elefante em movimento numa loja de porcelanas. Também aqui os preconceitos, como na palavra do Papa Francisco, há dias, a reclamar que a luta contra a pobreza pertence ao cristianismo e não ao comunismo que dessa luta se apropriou na história que o homem faz, como se o discurso da luta contra a pobreza tivesse que escolher entre um Messi(as) ou um Ronaldo. A partir do momento em que personalidades tão díspares como Mário Soares, Bagão Félix, Manuela Ferreira Leite, Francisco Louçã ou Freitas do Amaral assinam o Manifesto dos 74, o país bem poderia ter acordado para uma nova união nacional, versão albergue espanhol dos bons. Mas nem isso, mesmo quando todos defendiam a reestruturação da dívida abraçando a ideia do elefante esquerdista. Caso para ficar de trombas: um mês após o fim do resgate, um artigo enviado por técnicos do FMI ao seu Conselho Consultivo defende que Portugal teria tudo a ganhar com a reestruturação da dívida externa do país. Internamento compulsivo numa clínica de reabilitação económico-financeira é o que lhes desejo, repito. O único passo de reorganização do plano da dívida que conhecemos foi quando o Governo português abdicou da última tranche de apoio da troika. Ah, valentes.

O FMI reconhece ter havido "custos desnecessários" das políticas de ajustamento sem reestruturação da dívida, assumindo a existência de "erros técnicos e de cálculo" sobre o impacto das "políticas de choque" e da austeridade servida à força da chibata a portugueses, gregos e irlandeses. Está no documento "The Fund"s Lending Framework and Sovereign Debt" e está em muitas declarações, ao longo dos anos, de responsáveis políticos europeus e até de Christiane Lagarde. O que faz o Governo português agora que é clara a insustentabilidade da dívida tal como a conhecemos? Estende as maturidades, reduz juros, negoceia montantes? Ou espera por um novo ciclo político para que tudo continue igual? Sabemos bem que confiar nos prognósticos do FMI é arar em terra dura. Foi mesmo Olivier Blanchard que negou a crise em Agosto de 2008... um mês antes da falência da Lehman Brothers, foi o FMI que errou na percepção dos multiplicadores fiscais agravando, à custa desse tropeção, a receita da austeridade e dos ajustamentos empobrecedores do crescimento dos países resgatados. Mas agora podem confiar nele. Não acertou no diagnóstico mas prescreveu a receita e acertou em cheio no doente. Também não o quererá ver morto.

Ignorar que a dívida que hoje temos continua a crescer a olhos vistos apesar do Estado social estar a caminho do coma induzido (e não fosse o Tribunal Constitucional, que alguns querem destruir, onde estaria já?) é cavar um fosso que só gerações de pobreza poderão ultrapassar. Em 10 relatórios - 10 - de avaliação produzidos pela troika, 1081 páginas de profunda reflexão, não encontramos uma única vez as palavras "pobreza" ou "desigualdade". Por outro lado, a palavra "orçamental" está em cada uma das 1081 páginas, como um subtítulo subjacente a qualquer ideia. Reunidos em Conselho de Estado, aqueles que defenderam este Tratado Orçamental e esta visão de Portugal optarão por que palavras para definir o que veem à sua frente? Até quando?

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 1 de julho de 2014

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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