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Pelo meu relógio, são horas de parar o relógio

No seu mais recente videoclipe, «Horas de Matar» – que, para todos os efeitos, deve ser observado em conjunto com o teaser divulgado uns dias antes –, os Mão Morta parecem ensaiar um exercício semelhante ao do detective Dupin, dos livros de Edgar Allan Poe. Por Fernando Ramalho, no blogue da Unipop.
Imagem do videoclipe "Horas de Matar", dos Mão Morta

Numa entrevista a um número de 2008 da revista Shift dedicado à Internacional Situacionista, quando perguntado acerca da possibilidade do exercício de práticas de descodificação da aparência, Adolfo Luxúria Canibal remetia o entrevistador para a secção XXII dos Comentários sobre a Sociedade do Espectáculo (1988), de Guy Debord. Aí, Debord cita Edgar Allan Poe e o célebre raciocínio do detective C. Auguste Dupin, em The Murders in the Rue Morgue (1841), que lhe permitiu desvendar o mistério dos assassinatos, perante a incapacidade da investigação policial para compreender o que se passara. Debord cita apenas uma parte do parágrafo em causa, mas vale a pena transcrevê-lo na íntegra.

It appears to me that this mystery is considered insoluble, for the very reason which should cause it to be regarded as easy of solution – I mean for the character of its features. The police are confounded by the seeming absence of motive – not for the murder itself – but for the atrocity of the murder. They are puzzled, too, by the seeming impossibility of reconciling the voices heard in contention, with the facts that no one was discovered up stairs but the assassinated Mademoiselle L'Espanaye, and that there were no means of egress without the notice of the party ascending. The wild disorder of the room; the corpse thrust, with the head downward, up the chimney; the frightful mutilation of the body of the old lady; these considerations with those just mentioned, and others which I need not mention, have sufficed to paralyze the powers, by putting completely at fault the boasted acumen, of the government agents. They have fallen into the gross but common error of confounding the unusual with the abstruse. But it is by these deviations from the plane of the ordinary, that reason feels its way, if at all, in its search for the true. In investigations such as we are now pursuing, it should not be so much asked 'what has occurred,' as 'what has occurred that has never occurred before.' In fact, the facility with which I shall arrive, or have arrived, at the solution of this mystery, is in the direct ratio of its apparent insolubility in the eyes of the police.

A um conjunto de indivíduos atomizados, confortados pela sua solidão, não se sucede um conjunto de indivíduos agindo colectivamente, mas um conjunto de indivíduos, unidos pela mera soma, desesperados pelo regresso ao conforto da sua solidão.

No seu mais recente videoclipe, «Horas de Matar» – que, para todos os efeitos, deve ser observado em conjunto com o teaser divulgado uns dias antes –, os Mão Morta parecem ensaiar um exercício semelhante ao do detective Dupin. Aquilo que os Mão Morta enunciam que agora «ocorre e não tinha ocorrido antes» é não tanto a predisposição para uma espécie de solução desesperada para todos os males, como eventualmente uma primeira leitura poderia indiciar, mas, com a eclosão da crise, a decadência de uma forma de viver que motiva um determinado modo de tomada de consciência que, por sua vez, conduz ao tal gesto desesperado. Um modo de tomada de consciência que resulta da angústia da perda, da subtracção do conforto do indivíduo burguês, de «classe média», solitário, atomizado, ou seja, que traduz a implosão do modo de viver neoliberal mantendo, porém, os pressupostos que constituem o indivíduo do neoliberalismo. A um conjunto de indivíduos atomizados, confortados pela sua solidão, não se sucede um conjunto de indivíduos agindo colectivamente, mas um conjunto de indivíduos, unidos pela mera soma, desesperados pelo regresso ao conforto da sua solidão. Tal como a motivação do acto desesperado se encontra na emergência da angústia individual, também os seus alvos, como que numa espécie de reflexo vingativo que se autolegitima pela recusa de qualquer justificação, são um conjunto de representações individuais difusas do mal: o banqueiro, o padre, o político, etc. É, na verdade, o cenário que torna possível a realização daquilo a que André Breton chamava o «acto surrealista mais simples», no Segundo Manifesto do Surrealismo, de 1929: «L’acte surréaliste le plus simple consiste, revolvers aux poings, à descendre dans la rue et à tirer au hasard, tant qu’on peut, dans la foule». E, mais adiante, Breton afirma:

La légitimation d’un tel acte n’est, à mon sens, nullement incompatible avec la croyance en cette lueur que le surréalisme cherche à déceler au fond de nous. J’ai seulement voulu faire rentrer ici le désespoir humain, en deçà duquel rien ne saurait justifier cette croyance. (…) Cette disposition d’esprit que nous nommons surréaliste et qu’on voit ainsi tout occupée d’elle-même, il paraît de moins en moins nécessaire de lui chercher des antécédents et, en ce qui me concerne, je ne m’oppose pas à ce que les chroniqueurs, judiciaires et autres, la tiennent pour spécifiquement moderne.

Esta abordagem dos Mão Morta encontra eco no poema de Louis Aragon «Front Rouge», de 1931, escrito e publicado depois de uma visita do poeta à União Soviética e uma espécie de prenúncio do seu afastamento do movimento surrealista e adesão ao Partido Comunista Francês. O poema era um apelo à revolução proletária em França, que incluía a «exortação» ao assassinato de uma série de figuras, das mais concretas – Léon Blum, alguns outros deputados socialistas e dissidentes do PCF – às mais simbólicas – os bófias («les flics»), os meninos ricos e as putas de primeira classe, os eruditos sociais-democratas, doutores, engenheiros, etc. –, inspirada pelo «farol» soviético («Mort à ceux qui mettent en danger les conquêtes d'Octobre / Mort aux saboteurs du Plan Quinquennal»). Umas décadas mais tarde, Aragon viria a referir-se a «Front Rouge» como «ce poème que je déteste», mas em 1931 a sua publicação valeu-lhe uma condenação a cinco anos de pena suspensa por «incitação ao crime e propaganda anarquista». A similitude entre este episódio e o videoclipe dos Mão Morta expressa, no entanto, como que uma relação em espelho: enquanto Aragon constrói uma narrativa épica da luta de classes, uma visão messiânica do proletariado que, inspirado e guiado pelo exemplo da União Soviética, levará por diante o destino heróico da história, aniquilando a burguesia, os Mão Morta, por seu turno, parecem já só encontrar na situação actual as sementes da barbárie; enquanto Aragon sublinha a inevitabilidade da vitória do sujeito histórico revolucionário, os Mão Morta operam a partir de pressupostos que impossibilitam sequer imaginar qualquer sujeito colectivo.

Os Mão Morta parecem assumir-se como uma espécie de cronistas de uma realidade que representam nos seus cenários e personagens; colocam-se, no fundo, numa posição mais próxima da do detective Dupin.

A diferença maior, porém, entre Aragon e os Mão Morta será a posição em que cada um se coloca. Para Aragon, o poema é uma arma e o papel do poeta comprometido com a revolução é o de ser vanguarda e porta-voz na luta de classes. A sua função é programática, prescritiva, propagandística. Pelo contrário, os Mão Morta parecem assumir-se como uma espécie de cronistas de uma realidade que representam nos seus cenários e personagens; colocam-se, no fundo, numa posição mais próxima da do detective Dupin. Nenhuma destas perspectivas é mais ou menos legitimável por alguma suposta capacidade de interpretação mais rigorosa do real. Ambas olham para a realidade a partir de pressupostos e escolhas prévias. Por outro lado, nenhuma delas é mais ou menos crítica, emancipatória, revolucionária, etc. Em última análise, essas dimensões estão presentes em qualquer experiência artística, mas apenas em potência, ou seja, apenas na medida em que venham a despoletar discursos e práticas críticas, emancipatórias, revolucionárias, etc., e não necessariamente adesões ou discordâncias, quer se trate de diagnósticos ou prescrições.

Ao longo de 30 anos de percurso, os Mão Morta têm-se muitas vezes colocado nessa posição de cronistas. Aliás, não por acaso, a sua biografia oficial tem como título Narradores da Decadência (Vítor Junqueira, 2004), podendo aí ler-se, logo no início: «Adolfo Luxúria Canibal e os Mão Morta colocaram-se deliberadamente à margem, tornaram-se narradores da decadência, procuraram e muitas vezes encontraram nela uma espécie de fulgor.» Esta é uma postura não isenta de riscos, como tem aliás sido visível em diversas reacções ao referido videoclipe. Uma interpretação programática do videoclipe pode tanto conduzir à acusação de «incitação ao crime e propaganda anarquista» como à de protofascistas. De modo relativamente semelhante, também os Sex Pistols foram acusados de nazis, menos pela suástica na t-shirt de Sid Vicious do que pela canção «Belsen Was a Gas», uma blague tosca construída a partir do imaginário da libertação do campo de concentração de Bergen-Belsen, a verdadeira expressão do horror, especialmente para os britânicos, cujo exército captara um conjunto de imagens no momento da entrada no campo que mostravam milhares de prisioneiros devastados pela fome e pela doença, sobrevivendo no meio de outros tantos cadáveres espalhados por todo o lado. A canção, no entanto, dizia mais sobre a Inglaterra do final dos anos 1970 do que sobre a derrota do nazismo. Curiosamente, também os Sex Pistols pareciam identificar na realidade que observavam a negação do humano como a última réstia possível de humanidade: «Be a man / Kill someone / Kill yourself / Be a man / Be someone / Kill someone / Be a man / Kill yourself».

Mantendo-nos na metáfora dos relógios, talvez valesse a pena confrontar os Mão Morta de 1991 com os Mão Morta de 2014 – mais para comparar 1991 e 2014 do que para assinalar alguma eventual incoerência no discurso dos Mão Morta. Em 1991, alguns meses antes de Francis Fukuyama ter decretado o fim da história, os Mão Morta cantavam, em «Charles Manson», «Parem o relógio! / Vamos todos fazer a revolução / De cocktail na mão». Aquele «Parem o relógio!», condição para uma revolução já não mais vista como um acelerador da história mas como, pelo contrário, gesto de suspensão do tempo, pode porventura sugerir pistas interessantes para se pensar um período em que a barbárie se insinua. A questão é se, nesta latrina, ainda há tempo para parar o relógio…


Artigo de Fernando Ramalho, publicado no blogue da Unipop.

Mão Morta - Horas de Matar

Pelo meu relógio são horas de matar

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