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O espectro da crise

A crise das sociedades europeias está a alimentar perniciosamente uma política xenófoba e populista.

Arquiteta-se a riqueza do mundo, exigindo sacrifícios vitais a uns, oferecendo dividendos a outros, sempre com a cumplicidade de uma legislação torpe que tudo permite aos faltosos e cleptocratas. Uma legislação, que na sua fragilidade, tem legitimado a dicotomia entre os dois mundos, ricos e pobres, norte e sul, sendo que a globalização é o meio mais acessível para os governos colmatarem as falhas da própria política interna. Falamos de um sistema, em que o dumping social continua a ser um dos motes para influenciar o discurso de uma extrema-direita, que teima em trilhar caminho na Europa. Mas segundo alguns especialistas, a razão para o desemprego e pauperização da sociedade passa pelo progresso técnico, como a tecnologia da informação e a disseminação de linhas de produção automatizadas.

É uma questão a resolver, mas uma falsa questão retórica se pretendermos associar unicamente a crise económica ao dumping social, derribando inteiramente quem vê aqui o único culpado, fazendo deste o rastilho para aguçar os ódios entre as nações, trabalhadores, imigrantes e autóctones. Este é o embuste de uma extrema-direita, que faz desta premissa uma contenda, repetindo certezas que por si só são medíocres.

Não podemos por isso fechar os olhos, mas agir, boicotar, votar, tornar visível a face do monstro até aqui escondido por detrás deste esquema publicitário, disposto a seduzir mesmo o mais intransigente. O dumping social tem sido, por isso, não só pelas suas consequências, mas pelo seu papel neste desastre económico, fruto de uma ideologia assente numa dicotomia que espartilha o mundo e que na substância é pouco exequível.

Hoje temos uma Europa transformada num palco onde os partidos de extrema-direita fazem valer os seus ódios. Na Hungria, o partido nacionalista Jobbik detém uma percentagem alarmante de assentos parlamentares, o apoio da Aurora Dourada, na Grécia, o UKIP de Nigel Farage com uma maioria de votos dos conservadores e liberais-democratas, mas também dos trabalhistas. Os resultados da FN nas últimas eleições francesas e nas sondagens para as eleições europeias, o Geert Wilders, PVV, que tem como acrónimo a liberdade e o epíteto, o ódio. Eles vão ganhando terreno e estão unidos por uma ideia comum de antiglobalização, de sentido antieuropeu, e uma resultante posição anti-imigratória.

Nesta Europa, a opinião pública culpa a União Europeia e as políticas que consideram ser uma frente de cleptocratas, que favorecem os grupos de interesse. Para além da Europa culpam a globalização económica como a causa do aumento do dumping social, colocando em causa o bem-estar e a homogeneidade cultural. Para capitalizar esta onda de sentimento antieuropeu, a FN e o Partido da Liberdade holandês reuniram-se em antecipação às próximas eleições para o Parlamento Europeu, na esperança de serem capazes de desmantelar as políticas europeias e fortalecer o euroceticismo.

Estes partidos têm uma retórica visível nos pareceres económicos, com políticas protecionistas, um discurso anti-imigração, conduzindo à própria normalização da xenofobia, ciganofobia, islamofobia. Princípios traduzidos em políticas migratórias cruéis e desumanas, transformando os imigrantes em vítimas de um utilitarismo atroz.

Com esta ortodoxia liberal e o conservadorismo protecionista estamos a retroceder alguns anos, e a mesma economia que sustenta a Europa está paralelamente a destruí-la, transformando a crise económica numa crise política sem precedentes.

E é neste cenário que os imigrantes continuam afastados do espaço de cidadania. Eles são o espectro da crise, os primeiros a sofrer, porque a voz lhes foi amputada e a legislação laboral tem sido até aqui um dos grandes mandatários deste mesmo enredo económico. Estão inevitavelmente desprotegidos, à mercê de interesses e perfídias.

A inquietação paira nesta Europa em ruínas, visível no desalento, e as ruínas acumulam-se. Uma Europa que reacionária, saudosista, depressa esqueceu os seus mortos. Constato-o diariamente nas ruas belgas, onde áleas e estatuárias de nome Leopoldo circundam o país, que raramente fala desse Holocausto silencioso que foi o Congo. Este esquecimento, deliberado ou não, a par de um conservadorismo quase endémico, faz reinar a discórdia e tenta rivalizar através de axiomas políticos, como é o caso do dumping social, e edificar um conjunto de medidas que afastam os cidadãos estrangeiros, que se veem aprisionados à sua única condição. Para fazer face a este flagelo pedimos à Comissão Europeia que se pronuncie sobre o estatuto dos trabalhadores, quando em mobilidade no espaço comunitário. Porque não é suficiente respeitar o acordo de Schengen ou alterar a diretiva Bolkestein, mas uma correção tem de ser acompanhada por uma política salarial justa, para que seja possível uma recuperação económica que nos estirpe a este flagelo social. Recentemente, esta diretiva foi alterada, evitando o princípio de "país de origem". Mas a possibilidade de uma empresa de um determinado país poder destacar empregados noutro país-membro subsistiu em nome do princípio fundamental da livre circulação de bens e pessoas, com a possibilidade dos trabalhadores receberem o seu salário no país de origem e sujeitos à lei do país de pleno exercício. O empregador tem, por isso, de pagar as contribuições do empregado em vigor no país onde trabalha.

Em teoria, o destacamento foi enquadrado, mas na prática, dada a extensão das contribuições sociais e discrepâncias entre os países da Europa, o problema permaneceu. Além disso, é difícil controlar as condições de emprego dos trabalhadores, que são fraudulentas e que se multiplicam, sob o disfarce de empresas de fachada em países com baixos custos laborais. O exemplo recente, com o caso dos trabalhadores do estaleiro nas imediações da estação ferroviária do Norte de Bruxelas. Quinze trabalhadores destacados a receber 3,4 euros à hora, uma diferença de mais de 10 euros face ao salário mínimo belga. Este foi um dos últimos incidentes notificados pelo Bloco de Esquerda, nomeadamente pelas eurodeputadas Marisa Matias e Alda Sousa. O dumping social é por isso uma prática pela qual um Estado ou uma empresa viola, burla ou degrada o direito social em vigor, a nível nacional, comunitário ou internacional, e daí deriva um benefício económico em termos de competitividade.

Este conceito cronologicamente surgiu na Europa, no run-up para o alargamento da União Europeia à Grécia, Espanha e Portugal. O termo “dumping social” não foi usado de forma explícita, mas no contexto socioeconómico de entrada dos três países da UE, bem como as várias questões discutidas durante as negociações de adesão, e assim torná-lo legítimo. A verdade é que certos países da UE, nomeadamente a Alemanha, temiam a entrada descontrolada de trabalhadores oriundos do sul, remontando, por isso, a este período o receio do efeito dumping. E como seria de prever, antigos membros da UE decidiram restringir temporariamente os europeus do sul ao acesso aos seus mercados de trabalho.

Atualmente, os medos que daqui resultam transformaram-se em pânico moral, dirigido aos imigrantes e às minorias. Os discursos aviltam-se na maioria dos países, afirmando que os descendentes de imigrantes vão acabar por impor um outro modo de vida ao povo pátrio, uma colonização inversa. Estamos perante, segundo os partidos de extrema-direita, uma crise do ser europeu, a (auto) consciência. Os europeus encontram-se sem qualquer projeto de longo prazo, sem perspetivas, porque o desenvolvimento do continente está-se a tornar incompreensível e a mover-se aleatoriamente. E a crise das sociedades europeias, que se mostra através de todos estes pânicos morais, está a alimentar perniciosamente uma política xenófoba e populista.

Agora, mais do que nunca, são necessários elementos de oposição, reflexão, espaços que não sejam anódinos, mas elementos de intervenção. A história revive-se, suspendendo o ciclo democrático que nos tem, de certa forma, protegido até aqui, mas todos nós sabemos que um dia estes opúsculos, desferidos por vis defensores, serão vencidos pela razão. Para mim, a única resposta possível é votar, em nome de todos nós e de todos aqueles que sofrem em silêncio, e a única liberdade, a nossa determinação em mudar.

Sobre o/a autor(a)

Jornalista e escritora a residir em Bruxelas. Candidata independente do Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu
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