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O país dos Audis
Há imagens que condensam de forma exemplar um tempo e um espaço. Ontem à noite tivemos uma delas. O sorteio dos Audis é um retrato de Portugal em 2014. Ou melhor, do poder político dominante que hoje redesenha o país.
O jornal Público dava conta ontem das reservas do bastonário da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas à eficácia prática da “fatura da sorte”. Arrisco dizer, porém, que a “eficácia” desta cobrança fiscal, que toca sobretudo o pequeno comércio e serviços, não se pretende situar apenas aqui. Com o “prémio à cidadania fiscal pelo combate à economia paralela” - um nome que ilustra bem como se busca transformar cada cidadão num fiscal das finanças - o governo está a dizer-nos mais qualquer coisa.
Dando a entender que os impostos servem sobretudo para habilitar o cidadão a um magnífico automóvel, o governo descentra a fiscalidade da sua função redistributiva e do seu papel na definição de políticas viradas para o bem comum. É uma outra forma de chegar à imagem do “Estado gordo”, um monstro estranho à dinâmica civil e cuja única função seria desvitalizá-la. Cabe perguntar: nesta lógica dos incentivos, quando o Estado deixar de sortear Audis, significa que já é legítimo não pedir fatura?
Mas não é só uma visão do Estado que está aqui implícita nesta fiscalidade-tômbola. É também uma visão da natureza humana, segundo a qual somos movidos a interesses meramente individualistas. Neste raciocínio, a única forma de arrecadar impostos é convencer os cidadãos que têm a ganhar egoisticamente com o processo. E isso corresponde – numa projeção dos sonhos imaginados da imensa maioria, aquela que neste momento está em crescente perda de rendimentos – a um automóvel alemão de alta cilindrada.
Como não conduzo, pedirei ativamente fatura quando chegar a vez de rifar este governo.
Comments
Concordo que esta iniciativa
Concordo que esta iniciativa de tentar cativar os cidadãos através do sorteio de carros é algo ridícula. Será que efectivamente faz com que mais gente peça facturas? Tal como sugerido, quando acabarem os sorteios as pessoas irão voltar a deixar de pedir facturas?
Por outro lado, assumindo que pede sempre factura das suas despesas, nunca lhe aconteceu ser o único num grupo que pede factura no fim de um jantar? A mim acontece sempre, com ou sem sorteio... É possível fazer alguma coisa para mudar isso ou deve-se aceitar que grande parte da população aceita passivamente que certas áreas de actividade simplesmente não paguem impostos?
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