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Agonias

Entramos numa nova fase da conversão da social-democracia europeia a jogar o jogo do adversário no seu campo e de acordo com as suas regras: até agora, era o campo e eram as regras da direita liberal; com Hollande e com Valls o campo e as regras são as de Marine Le Pen.

A social-democracia e a democracia cristã estão a morrer às mãos da agressividade liberal que grassa na Europa. Elas foram os dois rostos do capitalismo europeu que o diferenciaram do capitalismo americano e do capitalismo japonês enquanto durou a guerra fria. Uma e outra representaram formas diferentes de articular horizontes de crescimento e acumulação capitalista com o reconhecimento de direitos sociais e a sua universalidade apoiada em serviços públicos. Essa lógica de compromisso entre capital e trabalho é agora o alvo do fundamentalismo ideológico que faz do abate dos direitos e dos serviços necessários para a sua efetivação o seu alvo. Isto significa que a "sensibilidade social" a que se referenciavam a social-democracia e a democracia cristã é hoje estigmatizada pelo neoliberalismo impante como um luxo que não se pode pagar e que deve por isso ser erradicado.

O modo desabrido como Passos Coelho comentou a subscrição do manifesto em favor da reestruturação da dívida por figuras que teimam em permanecer fiéis ao código democrata cristão não é do foro da indelicadeza mas da mais pura luta ideológica. O que Passos manifestamente não tolera é que haja quem, à direita, recuse o caminho do esmagamento social que resulta do esmagamento económico. O resto é uma questão de estilo. A isto, a social-democracia portuguesa chefiada por António José Seguro responde com o autoelogio convicto da sua responsabilidade pela assinatura do Tratado Orçamental, ou seja, do programa da austeridade eterna para Portugal e para a Europa. Estamos conversados.

Por outro lado, a coligação de governo entre o SPD e Angela Merkel na Alemanha dá conta de que a social-democracia desistiu de ser alternativa e quer governar no campo delimitado pelos capitães da austeridade e do congelamento dos salários. O mais a que aspiram hoje os partidos europeus da Internacional Socialista é a um bem comportado melhorismo gota-a-gota que não põe minimamente em causa, antes reforça, os objetivos estratégicos das políticas de liberalização.

Mas onde a agonia da social-democracia atinge contornos de paroxismo é na resposta de Hollande à derrota estrondosa do PS francês nas recentes eleições municipais e à ascensão eleitoral da extrema-direita. Ao nomear Manuel Valls para primeiro-ministro, François Hollande evidencia que está disposto a dar um passo inimaginável na descaracterização absoluta do que foi esse caminho de reformismo social de cunho progressista. A mensagem que Hollande dá é clara: a capitulação perante o liberalismo não chega, é preciso juntar-lhe autoritarismo. Essa é a receita para um programa que soma cortes de 50 mil milhões de euros na despesa pública até 2017 e alívio fiscal de 30 mil milhões para as empresas.

Valls é o socialista predileto da direita francesa pela sua marca autoritária e pelas posições inequivocamente xenófobas que tem adotado para com comunidades ciganas e imigrantes em França. Que seja também este socialista de extrema-direita - como é justamente conhecido - o predileto da direção socialista francesa para travar o crescimento da Frente Nacional é algo muito revelador.

Entramos numa nova fase desta conversão da social-democracia europeia a jogar o jogo do adversário no seu campo e de acordo com as suas regras: até agora, era o campo e eram as regras da direita liberal; com Hollande e com Valls o campo e as regras são as de Marine Le Pen. É uma agonia que causa agonias.

Artigo publicado no jornal “Diário de Notícias” a 4 de abril de 2014

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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