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Reserva

Do outro lado do mundo, no dia em que o ano se despedia, vinha esta notícia: as autoridades japonesas começaram a recrutar pessoas sem-abrigo e desempregados para os trabalhos de limpeza da central nuclear de Fukushima.

Milhares de trabalhadores são necessários para “limpar” a catástrofe, numa tarefa que se estima durar trinta anos.

Os que menos podem e os que menos têm estão, assim, a ser enviados para a linha da frente do inferno. Estarão sujeitos a níveis de radiação que nenhum ser humano poderá aguentar sem dano, são enviados para uma sentença de morte antecipada, mas estes contratos – ao contrário de outros no Japão – nem seguro de saúde incluem.

Sabemos bem que o capitalismo precisa de desemprego estrutural e de uma base larga de destituídos para poder continuar a fazer o que sabe: aumentar a riqueza de alguns ao mesmo tempo que reduz os direitos, baixa salários e procura anular a capacidade reivindicativa. Mas o que é que acontece quando a reserva é usada para mais do que isso? Que leis podem reger o recurso aos que nada ou quase nada têm para ir muito além da chantagem do mercado?

O que se está a passar no Japão é a face visível de um fenómeno que está a minar as sociedades capitalistas. Já não estamos apenas a falar de trabalho sem direitos, essa categoria já é curta para descrever o que se passa. Na Europa, o aumento exponencial do desemprego e da pobreza está a dar origem a trabalho escravo. Um pouco por todo o lado, recruta-se pessoas que na esperança de terem um trabalho ficam reféns de redes de exploração, que deixam de saber o que é o salário, que não têm condições para fugir a estas novas formas de detenção.

Infelizmente, os regimes que comandam os destinos na Europa e no Japão não são apenas coniventes como promovem estas novas formas de exploração e de escravatura.

Lutar hoje por trabalho com direitos é determinante para pensar que o futuro pode ser outra coisa que não este inferno. O inferno que permite que do alto haja sempre quem diga: “não está satisfeito? Há muita gente lá fora que quer este trabalho”.

Para além de tudo isto, à medida que a crise se agudiza, o desemprego aumenta e a emigração se assume como a única condição possível para alguns, vai-se operando um processo profundo de transformação do mundo do trabalho. Um destes dias, alguém vai ter de fazer as contas para saber quantos dos míseros postos de trabalho que foram criados nos últimos anos têm direitos associados ou um salário que se aproxime do digno. Desconfio que quase nenhuns. Mas se pensarmos nos postos de trabalho destruídos sabemos bem que são precisamente os que tinham direitos associados que estão a ser desbastados. Esta é a base da transformação que as mentes iluminadas do capitalismo nunca se cansaram de promover e ela parece colher hoje mais condições para o sucesso do que nunca. Digo ‘parece’ porque não está ainda escrito o futuro. Do lado de cá somos muitos, só precisamos de vir a ser alguém.

Artigo publicado no jornal “As Beiras” em 4 de janeiro de 2014

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
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