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E as cidades adormeceram? Balanço e urgência da vitalidade urbana

Estou convencido de que não há cidades especiais e de que a criatividade humana é transversal a muitas atividades, mas precisa ser nutrida e sustentada num meio ambiente (ecossistema) propício.

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É um assunto que assome ciclicamente, resultado de uma intuição profunda de que as nossas cidades podem ser mais organicamente vivas e estimulantes, e menos subjugadas por “forças de bloqueio”. Cidades geradoras de condições e circunstâncias apropriadas à realização pessoal e social da pluralidade humana que as habita.

Em 2011, no Colóquio internacional Portugal entre desassossegos e desafios(CES-Coimbra) apresentei uma comunicação intitulada A (re)animação cultural das cidades anestesiadas, já com um sentimento de frustração crescente após anos de intensa participação cívica e cultural.

Desde então estou convencido de que não há cidades especiais e de que a criatividade humana é transversal a muitas atividades, mas precisa ser nutrida e sustentada num meio ambiente (ecossistema) propício. E de que no fundo era (e é) um problema de governância, pois neste capítulo é sabido, salvo honrosas exceções, que o excessivo protagonismo da câmara municipal, designadamente da ação política local ser muito personalizada na figura do presidente de câmara, significa um entrave à mudança social. Porquê? Basicamente porque, como qualquer ecossistema, o ambiente urbano deve ser atravessado pela diferenciação ideológica, pela presença em público de ideias e discursos não consensuais, pelo pensamento crítico emancipado e liberto dos medos silenciosos herdados da ditadura.

Ou seja, é difícil sustentar uma paisagem urbana, uma malha ou uma rede definida pela vitalidade sociocultural quando “o poder local reproduz as lógicas de funcionamento do poder central, designadamente ao valorizar quase exclusivamente a vertente da democracia representativa em detrimento da dimensão participativa, a pessoalização do poder acentua-se, agindo os eleitos em função de lógicas carismático-demagógicas, clientelares e partidárias e prevalecendo, por isso, uma visão paternalista(...) Uma lógica, sem dúvida, penalizadora da vitalidade da sociedade civil local.”1

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Para as pessoas da “minha geração” (70´s) a mudança de milénio tornou mais evidente o choque entre duas cosmopolíticas, uma que correspondia à nova fase de expansão mundial do neoliberalismo marcada pela globalização do capital e seus efeitos locais versus o surgimento do Fórum Social Mundial(em 2001) com a vontade aspiracional de um outro mundo é possível. Para trás ficava uma ténue memória vivida ou pressentida do 25 de Abril, uma forte marca dos acontecimentos de 1989 em Berlim, ou a mal digerida entrada de Portugal na CEE em 1986.

Depois da guerra do Golfo iniciada em 1990, nos Balcãs a guerra da Jugoslávia e do Kosovo foram a nossa dose de guerra europeia contemporânea e da compreensão do papel bélico da NATO pós hegemonia americana.

Entretanto fomos sendo delapidados por dentro, conhecemos a destruição das pescas, da indústria e da agricultura pela mão do atual Presidente da República. Vimos os milhões da CEE a criar novos ricos e tão parco desenvolvimento. Conhecemos notícias acerca das fraudes, da corrupção, do clientelismo, das derrapagens orçamentais, das parcerias público-privadas e do grande lóbi do imobiliário. Mas agora somos resgatados por fora e roubados por dentro.

Pelas infinitas autoestradas e outras tantas rotundas foram sendo semeados Centros Comerciais, cada um maior e mais espetacular que o anterior. Esvaziámos lentamente os centros das cidades de pessoas e de vida. O consumismo emergiu transvestido de religião monetária.

Houve também momento interessantes, as décadas de 80 e 90 fervilharam com o ressurgimento da contracultura e da contestação política, tinha nascido o PSR e posteriormente o Bloco, havia um movimento Punk disseminado até às aldeias, havia os Pop Dell’Arte e os Mão Morta no Rock Rendez-Vous. Apesar do desaparecimento de muitos cineclubes, o associativismo estava animado pelo ativismo ambiental anti energia nuclear, movimentos pela libertação animal e vegans; discutiam-se políticas culturais democráticas e participadas para cidades culturalmente vibrantes e diversas.

Havias as Rádios Pirata que trouxeram alguma ousadia participativa ao espaço público da comunicação. Havia o ZX Spectrum e uma primeira abordagem à moderna computação doméstica e pessoal, sabíamos programar em Assembly e Pascal. Um dia até acabei por juntar as duas coisas e fiz passar num programa de rádio uma cassete para Spectrum que os ouvintes conseguiram jogar em casa ligando a telefonia ao computador, uma ligação tecnológica hoje improvável e surrealista, mas funcional. Na altura era uma variação de Internet hertziana dos anos 80.

Rapidamente estávamos em 2001, absolutamente tresloucados com os acontecimentos hipermediatizados do 11 de Setembro. Logo nos demos conta de que uma nova desordem mundial se instaurava. A musculação do braço armado da globalização com a invasão do Afeganistão e do Iraque não deixava dúvidas acerca guerra infinita multisectorial que se aproximava. Hoje temos a Monsanto a lembrar-nos de que esta globalização do terror e da miséria foi sendo consolidada em paralelo com a usurpação do poder popular e contra o planeta. E sabemos, graças a Edward Snowden, que convivemos com a violação tecnológica da nossa privacidade realizada por entidades secretas de outros Estados. Somos absolutamente vigiados, desde a espionagem extra planetária via satélite longínquo à mais personalizada extensão humana no telemóvel. Eis ao ponto a que chegaram os nosso direitos humanos, políticos e sociais!

As perguntas parecem-me as mesmas de sempre: porque razão é tão difícil ver as ideias políticas e democráticas do Fórum Social Mundial ganharem existência na nossa escala local? Porque é que a globalização da violência física e simbólica se impõe em simultâneo com a interiorização de uma certa servidão voluntária? Como sair desta espiral de controle e asfixia?

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Uma vez que o étimo “cultura” dá sentido à palavra agricultura, vou usar esta última como metáfora para a necessidade de uma transição para um outra forma de vida urbana, revitalizada através das emancipações sociais e culturais. Tal como se depreende da palavra cultivo, cultura assume aqui um significado próximo dessa etimologia, cultura como nutrição do nosso dispositivo psíquico e simbólico (cognição, imaginação, criatividade, individuação, auto-determinação, …).

À semelhança com a nutrição alimentar, as condições e cuidados com a produção, distribuição e consumo, fazem hoje a diferença entre um modelo massificado de sobreprodução alimentar dominado por multinacionais e um modelo orgânico baseado na agricultura biológica e na valorização da produção local e respeito pela natureza em si.

Qualquer agricultor com consciência ecológica sabe que em primeiro lugar tem de trabalhar a fertilidade orgânica do terreno e evitar o uso de fertilizantes químicos poluentes de todo o ecossistema, como condição essencial ao cultivo de alimentos saudáveis.

No terreno da vitalidade urbana, a criação de condições amenas ao impulso criativo é similar à fertilização agrícola, procurando assim estabelecer as circunstâncias necessárias à sustentabilidade do ecossistema cultural e criativo (criatividade cívica), e como tal deve preocupar-se com:

- Condições infraestruturais: Facilitação no acesso a espaços e equipamentos; reabilitação de imóveis devolutos; qualidades do espaço público propícias à convivência intercultural e intergeracional; existência de espaços de encontro abertos ao livre debate de ideias; lugares de investigação e educação alternativos; políticas de desenvolvimento de clusters criativos e culturais; revitalização dos centros históricos e dos bairros; descentralização das atividades culturais pela malha urbana; meios de comunicação e informação sofisticados e geradores de pensamento crítico; ...

- Conectividade e resiliência: Sustentação efetiva de redes intraurbanas simbióticas baseadas na interdependência e partilha de ativos materiais e imateriais; incentivo à criação e produção colaborativa de conhecimento, ideias e projetos; criação e aplicação de novas metodologias organizacionais catalisadoras de mudanças estruturais e operacionais de modo a favorecer a interdependência e a resiliência local;...

- Governância e estratégia coletiva:A começar pelo lado da investigação qualquer modelo de governância política (democrática e participada) tem de proceder a uma cartografia cultural e criativa do território, um processo de auditoria cultural que permita conhecer os contextos, as práticas, os recursos, os obstáculos e os potenciais. Depois, é urgente criar um novo modelo de governância cultural assente num projeto de desenvolvimento integrado e nos direitos e liberdades culturais, que sustente o florescimento e a vitalidade cultural do território (fertilização orgânica do terreno). Neste aspeto, a importância das autarquias locais é crucial e o seu papel enquanto agente de desenvolvimento tem de ser revisto e transformado, passando de “força de bloqueio” auto-centrada para uma dinâmica de facilitação e apoio aos atores culturais através de uma estratégia pública e transparente.

- Cuidar da biodiversidade cultural: É hoje impossível ignorar a interação e interdependência entre diversidade cultural e biodiversidade natural, ambas constituintes de uma ideia de plenitude humana e planetária, integrantes de um sentido mais amplo de sustentabilidade. Retomando a metáfora da agricultura, as culturas bem sucedidas são aquelas que são nutridas e retro-alimentadas com a sabedoria e a dedicação do agricultor. Assim, também a vitalidade cultural de um território se afere pela circulação virtuosa entre a vitalidade do ecossistema urbano e a realização do potencial humano através das mais diversas práticas culturais e criativas.


1 SANTOS, Maria de Lourdes Lima dos (coord.) (1998). As Políticas Culturais em Portugal:Relatório Nacional. Lisboa. Observatório das Actividades Culturais. p. 346.

Sobre o/a autor(a)

Investigador e docente universitário
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