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Zizero! - Žižek e a luta contra as alterações climáticas

O cientista e ecosocialista brasileiro Alexandre Costa questiona as posições assumidas pelo filósofo Slavoj Žižek no que diz respeito à luta ecológica.
Quando o tema é a luta contra as alterações climáticas, Žižek não sai bem na fotografia. Foto Andy Miah/Flickr

Não pretendo abrir uma ampla polémica em torno da obra de Slavoj Žižek, o tão conhecido filósofo esloveno, que faz tanto sucesso nos corredores da esquerda nos dias de hoje. Confesso que não havia lido nenhum de seus livros até pouco tempo atrás e que apenas guardava pé atrás com o tratamento de astro pop dado a ele por tanta gente (nada estranho ao meu tradicional ceticismo de cientista).

Tudo começou, porém, quando divulguei a notícia de que o congresso da esquerda radical europeia havia aprovado o Ecosocialismo como plataforma e, daí, ao comentar que isso era uma boa notícia, mas que a má notícia é que 43% do congresso havia votado contra, chamaram-me a atenção para as posições de Žižek nesse terreno.

A primeira impressão foi a pior possível pois deu-se através de uma entrevista em que o esloveno caracterizava a ecologia como "ópio do povo". Com base numa falsa caracterização da luta ecológica como "política do medo na sua forma mais pura", Žižek conclui que "essa ecologia do medo tem todas as oportunidades de se converter na forma ideológica predominante do capitalismo global, um novo ópio das massas que sucede o da religião". Ora, sabe-se da incapacidade de o capitalismo se compatibilizar com os ciclos naturais e os fluxos de energia e matéria do sistema terrestre, com os resíduos da hiperprodução capitalista perdulariamente contaminando o ecossistema global, acidificando os oceanos e modificando o clima. Sabe-se que existe uma contradição fundamental e insolúvel entre um modo de produção que pressupõe crescimento indefinido da produção de bens materiais e, portanto, do uso de recursos naturais, incluindo as mais variadas formas de matéria-prima e energia e as limitações na reposição desses recursos, ditadas precisamente por tais ciclos e fluxos. E sabe-se que, na natureza, nada pode crescer indefinida e exponencialmente, sem que se produza uma instabilidade, não raro "resolvida" de forma catastrófica. Não há como sustentar um hamster impossível.

Pois bem, como Žižek escapa dessa constatação objetiva, baseada numa análise dos limites da materialidade física, química e biológica sobre a qual se sustentam a nossa sociedade e economia? Tratando essa constatação como "desconfiança em relação à mudança, ao desenvolvimento e ao progresso", atirando os três conceitos para o mesmo caldeirão, desprezando as diferenças evidentes (e, em alguns casos, até contradições intrínsecas) entre eles e até mesmo os seus múltiplos significados possíveis. Ora, não raro "progresso" e "desenvolvimento" são identificados com o avanço (predatório) do capital sobre regiões inexploradas do planeta e com a assimilação e aculturação (quando não é o caso do genocídio aberto) de grupos sociais e até civilizações inteiras. Pode-se até chegar ao ponto de ressignificar tais palavras com base noutra noção de "progresso e desenvolvimento", calcada na valorização das culturas e do conhecimento científico, no tempo livre, superando a ideia de que existe uma "natureza a ser domada" no contexto de uma outra sociedade caracterizada por outro tipo de metabolismo entre sociedade humana e o restante do ambiente terrestre. Mas é evidente que, hoje, a visão concreta que as pessoas têm de "progresso e desenvolvimento" é a do "progresso e desenvolvimento" capitalistas. E, mais, que esse "progresso e desenvolvimento" realmente existentes são os que garantem manutenção e reprodução de uma ordem de exploração, opressão e predação; antagónicos, portanto, à noção mínima de "mudança". A salada preparada por Žižek obscurece o ponto fundamental: é necessário haver uma mudança radical da ordem sócio-económica para que se evite uma ruptura nociva, catastrófica e perigosamente irreversível (na escala de tempo de uma vida humana, de muitas gerações humanas, de existência de nossa civilização inteira ou até mesmo de existência de nossa própria espécie) nas próprias condições materiais de subsistência da humanidade. Essa mudança precisa romper com o "progresso e desenvolvimento" capitalistas, isto é, com sua lógica de crescimento indefinido para acumulação. Do contrário, ao invés de uma mudança desejada, pode-se descortinar uma mudança indesejada, com alterações radicais no clima e na biosfera terrestre levando-nos a um cenário em que a carência de alimento e água, problemas de saúde e perdas materiais e de vida por eventos severos se acumulem a um ponto de degeneração do tecido social. Para mim, sem rodeios, Žižek se mostra profundamente limitado ou desonesto intelectualmente nesse aspecto elementar.

Da entrevista fui levado a um livro recente desse autor que, em português, recebeu o título de "Vivendo no fim dos tempos". O livro aparentemente apresenta uma perspectiva interessante, ao preconizar que alguns fatores (nomeadamente a crise ecológica, a revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema e o aprofundamento da divisão e exclusão sociais) estão empurrando o capitalismo para sua crise final, com o que concordo, evidentemente.

Žižek trabalha com o que supostamente é uma analogia com os cinco estágios de reação psicológica do indivíduo ante um problema muito grave: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Neste último estágio, é como se o indivíduo deixasse de encarar a situação como ameaçadora e, ao invés disso, a encarasse até como uma oportunidade de recomeçar. Detive-me particularmente no que ele chama de um "interlúdio", um texto entre o capítulo da "depressão" e o da "aceitação". Esse "interlúdio", chamado "apocalipse à porta”, pontua questões como a crise ecológica, incluindo a mudança climática.

O começo parece bom, sabe? Mas ao final a analogia com o esquema da psicologia mostra-se totalmente falhado. Após fazer algumas críticas acertadas ao cinismo do capital ante benefícios parciais e pontuais das alterações climáticas, o que Žižek reconhece como catástrofe, ele elenca três "visões apocalípticas" (nenhuma delas correspondendo de fato ao pensamento científico vigente, muito menos às alternativas propostas ao desvario capitalista, revindiquem-se elas decrescimentistas, ecossocialistas, etc.). Daí, ele fecha o "interlúdio" de uma forma completamente atrapalhada e contraditória. Em suas conclusões, ele pretende até salvar a pele dos que ele chama de "ecocéticos" por estes apontarem "o quanto de ideologia há em preocupações ecológicas" [1], abstraindo - o próprio Žižek - o quanto há de ideologia nas críticas desenvolvimentistas ao movimento ecológico e, sobretudo, o quanto há de "ideológico" no sentido raso, isto é, propagandístico, mentiroso, calunioso e abertamente anticientífico, no que é apresentado pelos negacionistas climáticos (e outros aos quais Žižek classifica eufemisticamente como "ecocéticos"). 

Em preparação para a "aceitação", já claramente querendo encaixar um círculo em um orifício quadrangular, Žižek patina no que ele chama de "abertura à contingência radical",  jogando fora a compreensão científica sobre a qual aparentemente havia baseado o início do "interlúdio". É um erro grosseiro!

De volta à entrevista, Žižek solta um emaranhado de sofismas como "A 'natureza' na Terra está tão adaptada às intervenções humanas, a 'contaminação' humana está a tal ponto incluída no frágil e instável equilíbrio da reprodução 'natural', que a interrupção intempestiva da ação humana causaria um desequilíbrio catastrófico. É isso precisamente que demonstra que a humanidade não tem como retroceder". Ora, todas as evidências que se tem de estudos diversos, que analisam tanto as prováveis alterações climáticas esperadas a depender dos cenários de emissão quanto seus impactos indicam que não há adaptação possível (com um mínimo de salvaguarda para as maiorias sociais) para determinado patamar de aprofundamento da crise ecológica; para um determinado nível de aquecimento global. E aí, a urgência de incorporação da mudança estrutural da base produtiva em nossa sociedade na pauta dos movimentos sociais não é apenas uma "questão ideológica". Žižek fala de limites ecológicos mas não os reconhece na prática e não entende a sua (deles) profundidade.

Mas é no livro mesmo que Žižek se supera, ao comparar a catástrofe climática que certamente advirá caso os estoques de metano sejam liberados (ele cita o permafrost, mas não os clatratos do piso oceânico) a um "acidente de carro que leva a uma amizade inesperada" [2]. Novamente ignorando, na prática, as pré-condições físicas e biológicas para sobrevivência de nossa espécie (ou, na verdade, para a sobrevivência digna de mais de 7 bilhões de seres humanos) e saltando solenemente por sobre a noção mais básica de probabilidade, introduz um otimismo injustificado, um negacionismo dos efeitos danosos, deletérios, nocivos e - num cenário sem mitigação - catastróficos das alterações climáticas.

Ora, o "acidente de carro" que termina em uma "amizade inesperada" é coisa da ficção, da película citada. Na vida real, o que acidentes sérios trazem, na ampla maioria dos casos, é morte, dor, sofrimento, sequelas físicas e/ou mentais aos envolvidos ou, mesmo em casos leves, contratempo e prejuízos materiais. Não, Žižek, a hipótese de que você, ao atirar violentamente o seu carro contra outro (o primeiro que aparecer), conheça um grande amigo, é mínima. O mais provável é que você magoe ou mate alguém, magoe-se ou morra. É simplesmente assim. Não faz sentido não temer um acidente de carro violento (e ao que eu saiba esse temor justificado nunca foi limitador para que as pessoas tomem medidas por mais segurança no trânsito, por transporte público ou por mobilidade de uma forma geral). Não faz sentido achar que um acidente e os seus impactos que podem ser evitados (com medidas de precaução simples como evitando altas velocidades ou consumo de bebida alcóolica) seja tratado como algo quase inevitável, ou como uma "contingência", como algo cujo temor "paralise", muito menos como algo que traga expectativas positivas. Assim é com a alteração climática.

Žižek, que não é um gato de um milhão de vidas, mas um ser humano com uma só, estaria disposto a atirar-se de carro, em alta velocidade, contra um obstáculo, na expectativa de um "resultado inesperadamente positivo"? Duvido. É assim também no caso do destino do sistema climático terrestre, hoje intrinsecamente ligado às escolhas da humanidade no que diz respeito à matriz energética (e, em última instância, à própria manutenção do modo de produção capitalista). Só há uma Terra. Como diria Richard Alley, se fosse um video-game, eu apertaria o botão, só por curiosidade, para ver o que aconteceria. Se eu tivesse um milhão de Terras virtuais e pudesse, sem o sacrifício de vida (não somente humana), atirar 999.999 em destinos incertos, minha (neste caso justificadamente) irresponsável curiosidade me levaria a tal. Mas não é um video-game e eu só tenho um planeta-morada. Para mim, meus filhos, para os outros seres humanos, desta geração e das seguintes, para a rica e variada teia biológica que ora o reveste. E por isso, estou disposto a lutar para que um motorista irresponsável não o atire contra o poste da alteração climática! Esse chauffeur desastrado é a indústria de combustíveis fósseis e é Žižek, na prática, junto com os negacionistas climáticos, que está embriagado. Se há uma fuga da realidade muito mais perversa e condenável do que a causada pelo consumo de ópio ou qualquer outro material que contenha substância psicoativa é o negacionismo.


Alexandre Costa é doutorado em Ciência Atmosférica e professor na Universidade Estadual do Ceará. Artigo publicado no blogue O que você faria se soubesse o que eu sei? 

Notas:

[1] As palavras de Žižek são: "não há razão para tratar os ecocéticos como similares aos negadores do Holocausto - há uma lição dupla a ser aprendida a partir deles sobre o aquecimento global: (1) o quanto há de ideologia que é de fato investido em preocupações ecológicas e (2) quão pouco se sabe sobre as reais consequências de nossas atividades no ambiente natural". São afirmações vergonhosas, afinal os negacionistas climáticos são, sim, análogos aos criacionistas e aos negadores do Holocausto, vários deles têm ligações conhecidas com a direita organizada e com a indústria de combustíveis fósseis, seu compromisso com o conhecimento científico e com um debate honesto é, por conseguinte nenhum, e seu único papel é confundir a opinião pública e atrasar a tomada de consciência sobre a gravidade da crise climática e as ações para combatê-la.

[2] O trecho completo é "ao invés de sucumbir ao terror dessa perspectiva, é nesses casos que se deve manter a mente aberta a novas possibilidades, tendo em mente que a 'natureza' é um mecanismo contingencial multifacetado no qual catástrofes podem levar a resultados inesperadamente positivos, como no filme 'Short Cuts', de Robert Altman, no qual um acidente catastrófico de carro leva a uma amizade inesperada".

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