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Regresso ao "eixo do mal", por Noam Chomsky

O acordo preliminar EUA-Irão sobre a questão nuclear contém significativas concessões iranianas, e nada comparável por parte de Washington, que se limitou a restringir por um tempo a punição a Teerão. Por Noam Chomsky, La Jornada
Em 2010 o Irão aceitou a proposta da Turquia e do Brasil de enviar o seu urânio enriquecido para armazenamento na Turquia. Em contrapartida, o Ocidente daria isótopos para os reatores iranianos de investigação médica. Obama ficou furioso. Foto de Pete Souza, The White House

No dia 24 de novembro foi anunciado um acordo preliminar sobre a política nuclear do Irão, que fixa um prazo de seis meses para a realização de negociações substantivas.

Michael Gordon, repórter do The New York Times, escreveu: “Foi a primeira vez em quase uma década, disseram fontes oficiais norte-americanas, que se consegue um acordo internacional para deter grande parte do programa nuclear iraniano e reverter alguns dos seus elementos”.

Os Estados Unidos não demoraram a impor penalizações severas a uma empresa suíça que violou as sanções por eles impostas. “O momento escolhido para o anúncio parecia mostrar em parte a intenção de enviar um sinal de que a administração Obama ainda considera que o Irão está sujeito ao isolamento económico”, explicou Rick Gladstone no The Times.

O acordo preliminar contém significativas concessões iranianas, mas nada comparável por parte dos Estados Unidos, que se limitou a restringir por um tempo a sua punição ao Irão.

É fácil imaginar possíveis concessões de Washington. Para mencionar só uma: os Estados Unidos são o único país que viola diretamente o Tratado de Não Proliferação Nuclear (e, o que é mais grave, a Carta de Nações Unidas) ao manter a ameaça de usar a força contra o Irão. Também poderia insistir para que o seu cliente Israel se abstenha dessa mesma importante violação ao direito internacional – que é apenas uma de muitas.

No discurso mainstream considera-se natural que só o Irão faça concessões. Afinal, os Estados Unidos são o Cavaleiro Branco que lidera a comunidade internacional nos seus esforços de conter o Irão – considerado a mais grave ameaça à paz mundial – e obrigá-lo a desistir das suas agressões, do terrorismo e de outros crimes.

Existe uma perspetiva diferente, pouco ouvida, que ainda assim mereceria alguma menção. Começa por rejeitar a afirmação dos EUA de que o acordo põe fim a 10 anos de falta de vontade iraniana para resolver esta suposta ameaça nuclear.

Há 10 anos, o Irão ofereceu uma solução para as suas diferenças com Washington em torno do programa nuclear, junto com outros assuntos. O governo de George Bush rejeitou iradamente a oferta e repreendeu o diplomata suíço que a transmitiu.

A União Europeia e o Irão procuraram então chegar a um acordo pelo qual o Irão suspenderia o enriquecimento de urânio e a UE ofereceria garantias de que os Estados Unidos não atacariam. Como relatou Selig Harrison no Financial Times, “a União, apoiada por Washington, negou-se a discutir assuntos de segurança, e o esforço morreu”.

Em 2010 o Irão aceitou a proposta da Turquia e do Brasil de enviar o seu urânio enriquecido para armazenamento na Turquia. Em contrapartida, o Ocidente daria isótopos para os reatores iranianos de investigação médica. Furioso, o presidente Obama acusou Brasil e Turquia de romper as fileiras e apressou-se a impor sanções mais severas. Irritado, o Brasil deu a conhecer uma carta de Obama na qual este propunha esse acordo, provavelmente dando por certo que o Irão o rejeitaria. O incidente cedo desapareceu da vista.

Também em 2010, os países-membro do TNP convocaram uma conferência mundial para pôr em marcha uma antiga iniciativa árabe destinada a estabelecer uma zona livre de armas de destruição maciça na região, que seria realizada em dezembro de 2012. Israel negou-se a estar presente; o Irão aceitou sem condições.

Depois disso, Washington anunciou o cancelamento da conferência, reiterando as objeções israelitas. Os estados árabes, o Parlamento Europeu e a Rússia chamaram a uma rápida retomada da conferência, enquanto a Assembleia Geral da ONU votou por 174-6 instar Israel a aderir ao TNP e abrir as suas instalações a inspeção. Votaram “não” os Estados Unidos, Israel, Canadá, Ilhas Marshall, Micronesia e Palau, resultado que sugere outra possível concessão dos EUA hoje.

Um tal isolamento dos Estados Unidos na arena internacional é bastante normal, numa ampla gama de assuntos.

Em contraste, o movimento dos Não Alinhados (a maioria de países), na sua reunião do ano passado em Teerão, voltou a apoiar com vigor o direito do Irão, como subscritor do TNP, a enriquecer urânio. Os Estados Unidos rejeitam este argumento, afirmando que o direito está condicionado a receber um certificado de limpeza emitido por inspetores, mas essa condição não está escrita no tratado.

Uma grande maioria de árabes apoia o direito do Irão a levar adiante o seu programa nuclear. Os árabes são hostis ao Irão, mas por esmagadora maioria consideram que os Estados Unidos e Israel são as principais ameaças que enfrentam, tal como Shibley Telhami voltou a dar conta ao passar em revista, recentemente, a opinião árabe.

“Os governantes ocidentais parecem desconcertados” pela negativa iraniana a renunciar ao direito de enriquecer urânio, observa Frank Rose no The New York Times, e oferece uma explicação psicológica. Outras vêm à mente se saímos um pouco da linha.

Só se pode falar de liderança dos EUA na comunidade internacional se esta for definida como sendo composta pelos Estados Unidos e quem estiver disposto a seguir-lhes os passos, frequentemente através da intimidação, como às vezes se reconhece tacitamente.

Críticos do novo acordo, como escrevem David E. Sanger e Jodi Rudoren no The New York Times, advertem que intermediários enganoso, chineses sôfregos por fontes de energia e europeus à procura de um regresso aos velhos tempos, quando o Irão era uma fonte importante de comércio, aguardam a sua oportunidade de saltar barreiras. Em resumo: aceitam por enquanto as ordens de Washington, mas só por medo. E de facto China, Índia e muitos outros têm procurado formas próprias de evadir as sanções de Washington ao Irão.

A perspetiva alternativa põe em dúvida o resto da versão dos EUA. Não ignora que durante 60 anos ininterruptos os Estados Unidos torturaram os iranianos. Esse castigo começou em 1953, com um golpe orquestrado pela CIA que derrubou o governo parlamentar iraniano e instaurou o xá, um tirano que com regularidade figurava nas piores listas de direitos humanos do mundo como aliado de Washington.

Quando o xá foi por sua vez derrubado, em 1979, os Estados Unidos dedicaram-se de imediato a apoiar a criminosa invasão do Irão encabeçada por Saddam Hussein, e no final participaram diretamente mudando a bandeira de navios do Kuwait, aliado iraquiano, para permitir-lhes romper um bloqueio iraniano. Em 1988, um navio de guerra dos EUA derrubou um avião comercial iraniano em espaço internacional e matou 290 pessoas, depois do que recebeu honras presidenciais ao voltar ao país.

Depois que o Irão foi obrigado a capitular, Washington renovou o seu apoio ao amigo Saddam e convidou até engenheiros nucleares iraquianos para os Estados Unidos para lhes darem formação avançada em produção de armas. Logo o governo de William Clinton impôs sanções ao Irão, que endureceram bem mais em anos recentes.

De facto, na região operam dois estados párias que recorrem à agressão e ao terror e violam à vontade o direito internacional: os Estados Unidos e o seu cliente Israel. É verdade que o Irão cometeu um ato de agressão: conquistar três ilhas árabes nos tempos do xá, apoiado por Washington. Mas qualquer ato terrorista que seja atribuído de maneira verificável ao Irão empalidece em comparação com os dos estados párias. É compreensível que esses estados se oponham com vigor a um fator de contenção na região, e mantenham por isso uma campanha para se livrar de restrições.

Até onde chegará o menor dos estados párias para eliminar esse temido fator de contenção, com o pretexto de uma ameaça à sua existência? Alguns temem que vá bem longe. Micah Zenko, do Conselho de Relações Exteriores, adverte na revista Foreign Policy que Israel poderia recorrer à guerra nuclear. O analista de política externa Zbigniew Brzezinski pressiona Washington para deixar bem claro que a Força Aérea dos EUA deterá Israel se tentar usar a bomba.

Qual destas perspetivas contraditórias está mais próxima da realidade? Responder à questão é mais que um útil exercício. A resposta tem significativas consequências mundiais.

Noam Chomsky é professor emérito de linguística e filosofia no Instituto Tecnológico de Massachusetts, Cambridge, (Mass. EUA). O seu livro mais recente é Power Systems: Conversations on Global Democratic Uprisings and the New Challenges to Ou.S. Empire. Interviews with David Barsamian.

Publicado no La Jornada, e no Truth Out

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

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