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O desafio catalão e o medo da democracia

Defender o direito a decidir da Catalunha permite abrir uma brecha profunda no regime espanhol e, ao mesmo tempo, estender a reivindicação desse direito à rejeição dos cortes, às privatizações ou ao pagamento da dívida ilegítima não só ali como em todo o Estado. Artigo de Jaime Pastor, publicado em Viento Sur.

Se já desde, pelo menos, o estalar da crise sistémica em 2008 e a irrupção do 15M em 2011 estamos a viver a crescente perda de credibilidade da narrativa dominante em torno do “projeto europeu” e, com ela, da mitificada Transição espanhola, é agora que estamos a comprovar as dificuldades em transpor o limiar necessário que ajude a demonstrar que é possível um projeto alternativo e entusiasmante tanto à escala da Europa como do Estado espanhol.

No marco deste relativo impasse, a crise do “modelo de Estado” desenhado na Transição aparece como o flanco mais débil do regime, embora esteja a conduzir a respostas contraditórias de um e outro lado e, no caso catalão, uma força política como a CiU, suporte até agora necessário do bipartidarismo “imperfeito”, trate de “cavalgar” um movimento social independentista de ampla base popular que não controla e que ameaça superá-la.

Seria, portanto, um erro do movimento plural, que no Estado espanhol e ao longo dos últimos dois anos e meio tem saído às ruas e praças para expressar a sua indignação, ficar à margem deste conflito e não apostar abertamente numa solução democrática; seja qual for a opinião que se tenha sobre a opção alternativa a oferecer perante o esgotamento do “modelo autónomo”. Porque, na realidade, a exigência de um referendo na Catalunha coincide com a aspiração por uma “democracia real” que esse movimento tem mostrado durante este tempo e que, no entanto, este regime nega cada vez mais abertamente. Assumindo essa defesa do direito a decidir da Catalunha, como também propõem forças como a CUP, Processo Constituinte e, agora com mais força, ICV-EUiA, poderíamos abrir uma brecha profunda neste regime e, ao mesmo tempo, estender a reivindicação desse direito à rejeição dos cortes, às privatizações ou ao pagamento da dívida ilegítima não só ali como em todo o Estado.

Por isso, perante a prova de forças que se anuncia não se pode ser neutro nem equidistante, já que urge gerar uma ampla corrente de opinião face à reação maioritária que fora da Catalunha se expressou ante o recente acordo adotado por quatro formações parlamentares em torno da dupla pergunta e da data do referendo. Analisando essas respostas, e deixando à margem os insultos e as piores desqualificações lidas e escutadas (incluindo as de Aznar, Rosa Díez, a Fundação DENAES e os seus mais fervorosos seguidores, dispostos a encontrar amigos da ETA em todo o lado), caberia distinguir três tipos de atitudes, não necessariamente incompatíveis: uma, a de quem persiste em negar a existência de uma identidade nacional catalã e, portanto, de um conflito político; outra, a de quem se agarra à letra da Constituição de 78 para se opor a qualquer consulta; e, por último, a de quem propõe uma reforma constitucional para avançar para um federalismo “à alemã”.

A primeira continua a ser predominante, infelizmente, num segmento relevante da cidadania que se socializou em torno de um nacionalismo espanhol que não tem rompido com o “tradicional” sendo que, na verdade, combina rasgos herdados do franquismo (especialmente na simbologia) com os de uma ideia de “Nação” (com N maiúsculo) que impede o reconhecimento de outras identidades nacionais em condições de igualdade dentro do Estado espanhol. O mais paradoxal desta atitude é que quem assume esse discurso não se considera nacionalista, como recorda Joseba Sarrionandía na sua densa e excelente obra “Somos mouros no nevoeiro?” (Pamiela, Pamplona-Iruña, 2012): “A questão dos nacionalistas espanhóis é uma coisa curiosa. Apesar de imporem a sua nação a ‘todos’ e não reconhecerem nenhuma outra nação no Estado, definem-se geralmente como ‘não nacionalistas’ e chamam ‘nacionalistas’ aos que não sejam ‘nacionalistas espanhóis’. Significativa forma de fazerem-se donos não só da nação como também também da linguagem” (p. 613).

Uma variante desta atitude encontra-se entre pessoas de esquerda que, ainda que não se identifiquem com a simbologia franquista, consideram que a reivindicação do direito a decidir da Catalunha é uma “cortina de fumo” para ocultar a questão social (algo que sem dúvida é verdadeiro no caso da CiU mas não na ampla e plural maioria social que o reivindica) e, portanto, recusam esse direito já que se consideram “antinacionalistas”.

A segunda é aquela que, ainda que aceitando que nas sondagens se confirma que existe uma ampla maioria na sociedade catalã que declara que a Catalunha é uma nação e reclama o seu direito a decidir o seu futuro, responde opondo a esse estado de opinião e à sua consequente reivindicação democrática uma defesa fundamentalista da Constituição (em particular, dos artigos 1.2 e 2 mas também do 155, que implicaria a suspensão da autonomia), recusando assim qualquer via legal de convocação da consulta.

Forças como o PP, UPyD e inclusive sectores do PSOE (com Alfonso Guerra, José Bono e Rodríguez Ibarra à cabeça) identificar-se-iam sem dúvida tanto com a primeira como com a segunda posição.

A terceira é a que tem sido assumida sem convicção pela direção do PSOE, firmemente contrária a qualquer celebração da consulta e preocupada unicamente em adiar o problema mediante uma promessa de reforma constitucional “federalista” que exigiria o acordo com a direita espanhola para a levar a cabo e que continuaria, em todo o caso, a manter a existência de uma única “Nação”. Uma posição que está a condicionar cada vez mais o PSC e que ameaça deixá-lo numa condição muito minoritária na Catalunha.

À margem de todas elas começa a surgir, não obstante, uma quarta, defendida inclusive por um “pai da Constituição” como Herrero de Miñón e por alguns “peritos” e colunistas juntamente com a IU, com as suas contradições, e outras forças à sua esquerda, favoráveis à procura de uma via legal para autorizar a consulta e, inclusive, ao reconhecimento da realidade plurinacional dentro deste Estado e, portanto, ao direito de autodeterminação. Trata-se de uma resposta que ajudaria sem dúvida a estabelecer pontes, mas que sem ser acompanhada por uma ampla pressão popular à escala estatal não ajudaria a desbloquear a situação atual num sentido democrático radical.

Obviamente, essa pressão, com a consequente tarefa político-cultural que deveria acompanhá-la, deveria articular-se com as reivindicações que fazem parte já do acervo coletivo do movimento plural de indignação e, por sua vez, teria de contribuir para a formação progressiva de um bloco plural de povos, disposto a recuperar o melhor do imaginário republicano que na nossa história comum temos podido compartilhar para transformá-lo e fundi-lo num projeto de autoemancipação coletiva. Desta forma, poderíamos converter o próximo 9N “numa oportunidade” e não “numa ameaça”, como também se sugere num artigo recente[i]. Oxalá a campanha das eleições europeias seja já uma primeira oportunidade para fazer aparecer a voz de quem fora da Catalunha não compartilha o discurso nacionalista espanhol dominante e aposta, em alternativa, em processos constituintes de rutura que possam depois convergir à escala estatal e europeia.

 

 

Artigo publicado em http://vientosur.info/spip.php?article8588

Tradução de Mariana Carneiro para o Esquerda.net

 

 



[i] Hugo Martínez Abarca, “O 9N não é uma ameaça: é uma oportunidade. Uma proposta constituinte”, http://www.cuartopoder.es/tribuna/e...

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