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O Papa Francisco e o capitalismo

No documento que o Papa Francisco acaba de publicar sobre a pobreza e a Igreja parece haver um vislumbre de que este Papa queira ir um passo além.
Já apareceram várias manchetes, escritas em tom alarmante, a dizer que “Marx está a inspirar o Papa”. Foto de Edgar Jiménez, wikimedia commons

Quando eu era criança, os meus pais me ensinaram que uma coisa são as religiões (aconselhando a mim e aos meus irmãos a sermos respeitosos com os seus fiéis, como parte do respeito devido a todo o ser humano) e outra coisa são as Igrejas (da cor que forem), que reproduzem e administram as religiões para benefício de seus aparelhos ou hierarquias, o que explica a sua constante identificação com as estruturas de poder às quais servem. Nem é preciso dizer que os meus pais não nos exigiam respeito por essas instituições. Ao contrário, tínhamos que julgá-las pelo servilismo a essas estruturas.

Ao longo da minha vida morei e visitei muitíssimos países. E em todos eles sempre vi que as Igrejas (e muito especialmente a Católica) servem sempre às estruturas de poder, sendo a Espanha o caso mais patente. É, portanto, compreensível o anticlericalismo das classes populares na Espanha, e considero um sintoma de enorme frivolidade trivializar esse anticlericalismo como um sentimento gratuito, resultado de ideologias estrangeiras que manipulam os povos. As classes populares não precisavavam de nenhum estímulo externo para verem e reagirem ao que viam.

Esse conservadorismo da Igreja Católica (uma das religiões mais conservadoras hoje existentes) é, em parte, compreensível, devido ao benefício económico que lhe concede. A base material da sua ideologia – como diriam os materialistas históricos – são as vantagens materiais que derivam do seu servilismo ao poder.

Mas esse mesmo servilismo é o que explica sua postura anticientífica, pois se sente ameaçada pelo conhecimento científico. Não é por casualidade que só em 1992 (sim, 1992) a Igreja Católica se desculpou por haver perseguido, no século XVII, Galileu, que teve a ousadia de afirmar que, contra o que dizia a Igreja, era a Terra que girava em torno do Sol e não o contrário. Em 2008, o Vaticano chegou a pensar em fazer um monumento para ele, mas decidiu atrasá-lo, porque era ainda demasiado cedo. Na Igreja Católica, as coisas de palácio vão um pouquinho devagar.

O que está a acontecer no Vaticano?

É interessante, claro, que no jornal do Vaticano, um historiador alemão, Georg Sans, tenha escrito, em 2009, um artigo a louvar Karl Marx por sua introdução do conceito de alienação originado pelo capitalismo. Georg Sans dizia que “temos que nos perguntar se Marx não tinha razão na sua descrição do capitalismo como gerador de alienação…” (citado em “Is the Pope Getting the Catholics Ready for an Economic Revolution? (Maybe He Read Marx)”, de Lynn Parramore). E as declarações do novo Papa, criticando o capitalismo, estão a criar um grande alvoroço.

Agora, é necessário que se entenda que a Igreja Católica e, mais concretamente o Vaticano, sempre tiveram atitudes críticas aos excessos do capitalismo. Das encíclicas de Leão XIII (1878-1903) até João Paulo II, as críticas do excesso do capitalismo foram constantes e, em geral, mais acentuadas quando outras ideologias contrárias à Igreja (ainda que não contrárias à religião), como o marxismo, adquiriam grande atração nos movimentos operários e intelectuais do mundo ocidental.

Agora, o que é novo no Vaticano é que no documento que o Papa Francisco acaba de publicar sobre a pobreza e a Igreja parece haver um vislumbre de que este Papa queira ir um passo além, pois a sua crítica não se limita aos excessos do capitalismo, mas ao capitalismo em si. Existem partes do documento que parecem aproximar-se dessa postura. Escreve Francisco: “o mandamento Não matarás estabelece um mandato para respeitar a vida humana. Daí que este 'não matar' deve aplicar-se a um sistema económico baseado na desigualdade e na exclusão…” Acrescenta Francisco que “tal economia mata. Daí que até que não acabe o domínio absoluto dos mercados e a sua especulação financeira (que Francisco aponta corretamente como sendo intrínseca ao capitalismo…), e até que não se ataquem as raízes dessas desigualdades, não se encontrará nenhuma solução para os problemas do mundo, ou para nenhum problema”.

Outro parágrafo de Francisco: “algumas pessoas (Francisco poderia ter escrito a maioria dos establishments económicos, financeiros, políticos e mediáticos europeus e norte-americanos) continuam a defender as teorias do “trickle-down”, que assumem que a concentração da riqueza que se produz no crescimento económico (capitalista) e nos seus mercados inevitavelmente vai trazer maior justiça e inclusão, ao aumentar tal riqueza e melhorar a vida de todos e a coesão social. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos dados, expressa uma ingénua e crua fé na bondade dos que concentram o poder económico e na eficiência sacrossanta do sistema económico existente”. Não vi esse parágrafo citado em nenhum dos meios de comunicação de maior difusão espanhóis, que sistematicamente excluem as vozes críticas ao neoliberalismo dominante.

Como era de esperar, a resposta foi previsivelmente hostil. Nos EUA, um país com uma cultura mediática dominante profundamente conservadora, já apareceram várias manchetes, escritas em tom alarmante, a dizer que “Marx está a inspirar o Papa”.

E Sarah Palin, a dirigente do Tea Party (a seita mais próxima à hierarquia católica espanhola) afirmou o seu choque frente às declarações de Francisco. E mais de um editorial tem dito que da mesma maneira que o Papa João Paulo II contribuiu para o colapso da União Soviética, o Papa Francisco pode ajudar a acabar com o capitalismo.

Parece-me exagerada essa imagem. Mas seria um erro que as forças progressistas ignorassem as mudanças no Vaticano. Entendo e compartilho (como aparece nos meus escritos em www.vnavarro.org) as reservas e o ceticismo sobre o novo Papa, ceticismo estimulado por casos tão ofensivos e dolorosos para os democratas como o silêncio de Francisco frente à homenagem dos caídos na Cruzada espanhola. Mas considero valioso que aconteçam mudanças na Igreja que diluam a sua enorme oposição às mudanças e ao progresso. E daí a sua enorme importância. Seria um grande erro não ser consciente disso, num país em que a Igreja sempre exerceu um papel negativo na sua defesa da ordem económica estabelecida e contra a expansão dos direitos humanos.

Artigo publicado na revista digital SISTEMA, 6 de dezembro de 2013. Traduzido e publicado pela Carta Maior.

Sobre o/a autor(a)

Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha).
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