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Plano Prawer: o rosto moderno da limpeza étnica na Palestina

O governo mais à direita da história de Israel conseguiu o que os líderes palestinianos não foram capazes de fazer: unir todo o povo palestino. Artigo de María Landi, publicado em Carta Maior.
No sábado, dia 30 de novembro, os palestinianos organizaram o Terceiro Dia de Fúria, jornada de protesto contra o Plano Prawer que se estendeu do mar Mediterrâneo ao rio Jordão.

O governo mais à direita da história de Israel conseguiu o que os líderes palestinianos não foram capazes de fazer nas últimas décadas: unir todo o povo palestiniano, hoje dividido entre o Estado israelita, a Faixa de Gaza, os territórios ocupados da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental (anexada ilegalmente em 1967), e a diáspora.
No sábado, dia 30 de novembro, os palestinianos organizaram o Terceiro Dia de Fúria, jornada de protesto contra o Plano Prawer que se estendeu do mar Mediterrâneo ao rio Jordão.

Levando o sobrenome do parlamentar israelita que o elaborou, o plano pretende destruir 36 aldeias beduínas “não reconhecidas” por Israel no deserto do Negev (Naqab, em árabe) para construir, nas suas terras, colónias para a população judia.

Para isso, cerca de 70 mil beduínos serão retirados à força de sua terra ancestral, e 800 mil dunams  dela serão confiscados por Israel.

Calcula-se que em Israel haja mais de 150 aldeias árabes “não reconhecidas” pelo Estado sionista nas regiões do Naqab e da Galileia. Essas aldeias são consideradas ilegais pelo Governo, não figuram nos mapas e não contam com água corrente, eletricidade, telefone, arruamento, escolas e centros de saúde. As comunidades beduínas (cujos habitantes têm cidadania israelita) constituem cerca de 30% da população do Naqab, mas as suas aldeias ocupam apenas 2,5% do território.

Antes da criação do Estado de Israel, os beduínos deslocavam-se livremente pelo deserto; agora, dois terços da região foram designados pelas autoridades israelitas como “campos de treino militar”, inacessíveis à população beduína. Mas a verdade, conhecida por todos, é que grupos de colonos judeus aguardam ansiosamente que os habitantes nativos sejam retirados daquelas terras, para instalar-se nos bairros modernos e cómodos que Israel construirá para eles em território beduíno. 

O governo israelita pretende apresentar o Plano Prawer como uma ação “humanitária”, que oferecerá habitação adequada, serviços públicos e “um futuro melhor para as crianças” beduínas do Naqab/Negev, permitindo-lhes “integrar-se à estrutura de um Estado moderno ao mesmo tempo que conservam as suas tradições”.

A realidade, porém, é que nenhuma das comunidades afetadas foi consultada nem está de acordo com o plano. E têm bons motivos para isso: além de perder as suas terras, serão realojados em sete zonas super povoadas e pobres, nos quais outros grupos beduínos foram concentrados há anos (por isso há quem trace um paralelo entre o plano e as reservas indígenas dos Estados Unidos).
“Vivemos aqui desde muito antes da criação do Estado de Israel”, declarou Maqbul Saraya, 70 anos, à rede Al-Jazira. "Sentimos que a democracia e a justiça de Israel não se aplicam a nós”.

Condenação local e internacional

Nos países árabes vizinhos e em várias nações da Europa, além de Turquia, Tunísia, Coreia do Sul, Kuwait, Canadá e Estados Unidos também houve manifestações de solidariedade aos palestinianos no dia 30, para denunciar o que se considera a operação sionista de limpeza étnica de maior envergadura desde a Nakba (catástrofe) de 1948. O Parlamento europeu, o Comité contra a Discriminação Racial da ONU (CERD) e outros organismos intergovernamentais pediram a Israel que cancele o projeto, que se transformará em lei no final do ano. Organizações e redes internacionais como Amnistia Internacional, Vozes Judias pela Paz, Avaaz, entidades palestinianas e algumas israelitas também criticaram o plano e lançaram campanhas pedindo sua anulação. Mais de 50 intelectuais e artistas britânicos (entre eles Ken Loach, Mike Leigh e Peter Gabriel) publicaram uma carta no jornal The Guardian, qualificando o objetivo de Israel de arrancar a população beduína como “deslocamento forçado de palestinianos do seu lugar e de sua terra, discriminação e apartheid”.

Nos territórios ocupados, houve protestos em Gaza, Ramala, Jerusalém, Hebron, Nablus. Mas talvez as imagens mais eloquentes, e que tiveram maior difusão , tenham sido as das localidades que se encontram dentro das fronteiras de Israel – onde a repressão teve o mesmo excesso de violência imposto à Cisjordânia: gás lacrimogéneo, granadas de som, canhões de água química tóxica, espancamentos e pontapés dos policiais, e dezenas de prisões. Ao ver a profusão de bandeiras palestinas nas ruas, praças e postes públicos, e de rostos envoltos em kuffies, aqueles que não estão familiarizados com a geografia do país acham difícil entender que as fotos de Yaffa ou Haifa (cidades costeiras que eram joias da Palestina antes de 1948 e que ainda contam com uma grande população palestiniana) foram tiradas dentro de Israel.

Isso também vale para a manifestação na aldeia beduína de Hura, uma das afetadas pelo Plano Prawer: as imagens podiam ser do vale do rio Jordão ou das colinas do sul de Hebron, territórios palestinianos ocupados e submetidos às mesmas políticas de deslocamento forçado da população nativa, obrigada a entregar suas terras a colonos judeus. A paisagem e o povo que a habita são os mesmos; o poder que os oprime, também.

Em resposta à jornada de protesto, o ministro israelita de Relações Exteriores Avigdor Lieberman (um colono fanático e ultranacionalista – ironicamente emigrado da Moldávia – que defende abertamente a anexação da Cisjordânia e de Gaza, com a expulsão da população palestiniana e a aniquilação da que vive em Gaza) fez uma de suas habituais declarações de racismo explícito: “Estamos a lutar pelo território nacional do povo judeu, e há aqueles que querem deliberadamente roubar essa terra e controlá-la à força” .

O sionismo como ele é

Talvez o maior “mérito” do Plano Prawer, além de unir a população palestiniana de todos os setores políticos e geográficos, tenha sido colocar em evidência, mais que todas as políticas israelita, a natureza e o programa do projeto sionista: a expansão demográfica e territorial judaica, a contenção demográfica e o despejo da população palestina nativa. O objetivo último dessas políticas, perfeitamente articuladas em ambos os lados da Linha Verde, a fronteira internacional – não reconhecida por Israel – é consolidar um regime que muitos cientistas sociais (como o geógrafo israelense Oren Yiftachel ) qualificam de etnocracia.
Ao mesmo tempo, essas políticas revelam a falácia de analisar o conflito sob o paradigma de “dois Estados” ou das “fronteiras de 1967”. A realidade é de um único Estado, que, ao se definir como judeu, exige, para preservar sua “pureza” étnico-religiosa, eliminar de todas as maneiras possíveis a ameaça demográfica que a população não judia constitui. Essas maneiras incluem não apenas o roubo de terras, a colonização, a limpeza étnica e o apartheid dos palestinianos, mas também a expulsão em massa dos imigrantes africanos.

Esse Estado não reconhece outras fronteiras senão a totalidade da “terra de Israel” bíblica e não está disposto a cedê-la a seus habitantes não judeus. Não estiveram dispostos os primeiros líderes sionistas, nem estão os atuais. Tudo o mais – incluída a indústria do processo de paz – é discurso para consumo dos média ocidentais.
Não menos importante, ou mais, é a questão da integridade do povo palestino. Realidades como o Plano Prawer mostram a omissão implicada na redução da questão palestina aos mais de 4 milhões que hoje vivem em Cisjordânia e Gaza – em menos de 20% de seu território original. Tão injusto como excluir de qualquer solução os 6 milhões de refugiados/as dispersos pelo mundo é esquecer o 1,5 milhão de palestinas/os que vivem dentro de Israel (20% da população), expostos a mais de 55 leis de apartheid e a políticas de exclusão e deslocamento em consequência do afã ilimitado da judaização. Enquanto não mudar a natureza do regime colonial e racista de Israel, não haverá paz justa nem duradoura – nem democracia – naquela terra desgarrada.

 

Artigo publicado no portal Carta Maior.

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