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Nelson Mandela: As luzes e as sombras do líder

Agora, a África do Sul já não tem o seu grande homem para que continue a marcar o centro e a dar peso moral ao ANC. O atual presidente, Jacob Zuma, tem as maneiras e os modos de um Carlos Menem. Com a morte do Madiba, o humilde e moral Madiba, a África do Sul terá de tomar algumas decisões difíceis. Artigo de Sergio Kiernan, Página/12.

Seja no que respeita à sua estatura moral ou apenas à sua altura, Nelson Mandela era alto, era o centro de qualquer grupo. E era um verdadeiro paradoxo, porque num país de vozes tronantes e discursos inflamados, foi um orador de voz suave, quase transparente, e com esse raro sotaque inclassificável que tinha. De alguma maneira, o Madiba conseguia que reinasse o silêncio dos que não querem perder nem uma palavra. Era um truque pacífico e astuto que aperfeiçoou durante uma vida de militância compartilhada com oradores como Oliver Tambo, competindo com o brilhante Steve Biko e tratando de moderar o zulu Mangosuthu Buthelezi. Foi, aliás, um dos elementos que acabaram por colocá-lo nessa condição curiosa de ser canonizado em vida.

Mandela começou como político e advogado de direitos humanos, mas terminou, depois de anos na prisão, como o nó essencial da história insolúvel de África do Sul. Desde o século XVII, essa terra tão formosa regeu-se por violências realmente indescritíveis, com divisões que ameaçavam ser eternas e reducionismos quase infantis. O que era difícil por lá era ser normal no sentido de acreditar nos próprios olhos, de esticar a mão e tocar o outro, de o entender como um ser humano. África, sabe-o quem passe o mínimo tempo por lá, tem sérias dificuldades em forjar nacionalidades sobre as identidades de língua, de etnia e tribo. África do Sul complicou mais ao ter a única tribo branca, nativa, com raízes de amor à terra.

Madiba tornou-se no único em quem todos, por boas ou más razões, confiavam ainda que seja um pouco. Salvador do país, promessa de paz, única garantia para evitar a guerra civil. Era muito difícil de acreditar, mas bastava vê-lo em ação para sentir - e era sentir - que seria bem-sucedido. Eu tive essa oportunidade há vinte anos, nesses finais de 1993 em que escreviam quase a murros uma Constituição e os militares exigiam garantias de impunidade. Mandela nem sequer era ainda candidato, mas todos sabiam que ganharia as eleições do ano seguinte, pelo que até o corpo diplomático o tratava como um governante. Um dia chegou-nos a informação de que ia falar para a militância nos arredores de Pretoria.

Era num desses campos desolados e secos do Transvaal, mistura de parque industrial e pasto, que se espalham de Johannesburgo até à capital, ladeando a estrada. Um sindicato afeto ao ANC, o partido de Mandela, tinha um imenso campo de desportos e a iniciativa consistia em abrir um mural em homenagem a Chris Hani, o líder assassinado em pleno dia e num café por um psicopata neonazi. Tinha centenas de militantes da região, todos “punteros”[i] ou mais, vários diplomatas e o muito preguiçoso corpo de imprensa sul-africano, gente já impossível de impressionar.

E então chegou Mandela e com o punho ao alto cantou-se o hino do partido, o N'Kosi Sikelele I'Afrika, tão em tom que essa multidão acidental parecia um coro profissional. Falaram alguns, cantando os merecidos elogios a Hani. E depois Madiba tomou o microfone e fez algo que nunca faz um político. Começou a maldizer os quadros do partido por fazerem promessas de campanha. Começou a maltratá-los por prometerem “casas com piscinas de natação" aos votantes. Enojou-se porque pessoas sem emprego e sem estudos diziam-lhe que num ano ou dois viveriam como os brancos. Terminou até elevando a voz: "Não têm vergonha de mentir às pessoas? Nem se atrevam a usar o meu nome para isso!". Os quadros, com a cabeça baixa, escutaram em silêncio, sem protestar.

Foi um momento dramático e um presságio. Mandela ganhou as eleições, compartilhou o Nobel da Paz com De Klerk, teve gestos de unidade como o famoso Mundial de Rugby, fez com que a violência política praticamente desaparecesse, criou uma nova norma de comportamento na qual a "reconciliação" era o eixo. Também se dissociou de quase tudo o que fosse administrar o governo e vinte anos depois é visível o preço que teve que pagar: a economia é praticamente a mesma, a estrutura social é a mesma. Há uma nova classe média negra composta pelos profissionais e empresários que antes eram discriminados e agora ganham como profissionais e empresários. A estes somam-se os "conectados" que ocupam as quotas de "não brancos" nos diretórios públicos e privados. E o resto continua igual, esperando já não a casa com piscina, senão que cheguem a luz, a água corrente, a escola e a clínica. Fez-se muito, mas a base do modelo - moeda firmíssima, liberdade de câmbio, salários muito baixos, zero inflação - explica a eterna paisagem de favelas, de townships[ii], e a violência criminosa estratosférica.

Agora, a África do Sul já não tem o seu grande homem para que continue a marcar o centro e a dar peso moral ao ANC. O atual presidente, Jacob Zuma, tem as maneiras e os modos de um Carlos Menem. Com a morte do Madiba, o humilde e moral Madiba, a África do Sul terá de tomar algumas decisões difíceis.

 

Buenos Aires, 6-12-2013
http://www.pagina12.com.ar/diario/elmundo/4-235120-2013-12-06.html

 



[i] Líderes dos bairros, que geralmente funcionam como apêndice do Estado em termos de poder territorial e clientelismo político. (Wikipedia)

[ii] Na África do Sul, o termo township geralmente refere-se a áreas urbanas habitadas, muitas vezes subdesenvolvidas que, sob o Apartheid, estavam reservadas aos não brancos, em especial Africanos pretos e mulatos, mas também indianos da classe trabalhadora. Os townships eram habitualmente construídos na periferia de vilas e cidades. (Wikipedia)

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