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O mal-estar difuso

Nestes tempos de empobrecimento e miséria simbólica, os “tempos livres” da propalada civilização do bem-estar ou “sociedade de lazer” evidenciam-se como uma enorme falácia.

Embora se assemelhe a Deus, o homem de hoje não se sente feliz.
Sigmund Freud ( O mal-estar na cultura)

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O mal-estar em Portugal e na maioria dos portugueses é evidente, julgo que não seja necessário indicar exemplos, o artigo do filósofo José Gil na revista Visão de 24 de Outubro, intitulado “A patologia de um país”, reflete bem a sintomatologia numa “única obsessão: como sobreviver?”, essa é a grande preocupação da maioria. Claro que os 99% que sofrem o empobrecimento acelerado, encontram o reverso da situação na fortuna dos 870 multimilionários portugueses, que aumentou 7,5 mil milhões de euros em relação a 2012, apesar da crise económica que degrada constantemente o país. Enfim, nada de novo, pois já se sabia que um dos efeitos desta “crise” seria a transferência de rendimentos do trabalho para o capital, não fosse esse o velho esquema do capitalismo, cujo truque premium após 2008 foi converter a dívida privada dos “mercados financeiros” em dívida pública. O BPN é o cumulo brutal desta “engenharia das soluções fictícias” como lhe chama Boaventura de Sousa Santos1. Este tipo de economia que faz prevalecer o enriquecimento de poucos, à custa da evaporação da classe média e dos salários, tem sido designada como the winner-take-all economy, cuja tradução para português vernáculo equivale ao vampirismo do “eles comem tudo...”.

Associada ao mal-estar social, está intensamente presente o ataque à democracia, nomeadamente pela usurpação do campo político e da governação pela elite financeira mundial, cujo objetivo declarado é a destruição do Estado social enquanto instância protetora do bem público e do bem-estar social das populações. Neste capítulo são amplamente conhecidas as políticas de privatizações e as medidas de austeridade que visam delapidar recursos públicos e empobrecer os trabalhadores. Nesta luta contra a desumanização e contra precariedade global da vida “é preciso converter o ideal democrático numa realidade radical que não se renda ao capitalismo. E como o capitalismo não exerce o seu domínio senão servindo-se de outras formas de opressão, nomeadamente, do colonialismo e do patriarcado, tal democracia radical, além de anti-capitalista tem de ser também anti-colonialista e anti-patriarcal.” (idem).

Tambémao nível municipal, onde seria expectável um maior contributo para a intensificação da democracia, designadamente através da emergência de mecanismos de participação na vida pública, a inércia do status quo e a prevalência da lógica clientelista funcionam como forças de bloqueio à transformação social. Apesar das operações de charme lançadas pelas supostas “parcerias locais” envolvendo autarquias e sociedade civil, as condições de produção e intervenção pública continuam capturadas pela ausência de questionamento do exercício e manutenção do poder, gerando quanto muito eventos efémeros com aroma a “mudança”, mas para que tudo continue na mesma, como aliás dizia o príncipe de Falconeri no Leopardo (Giuseppe Tomasi di Lampedusa): tudo deve mudar para que tudo fique como está.

Transcrevo um trecho do jornal Público (29-11-2013) assinado por diversos agentes culturais, que explicita uma das causas do mal-estar na cultura local: “Hoje temos um conjunto de edifícios parcialmente esvaziados a que maioritariamente não corresponde um projecto, uma programação (que muito se confunde com uma agenda), uma equipa ou uma direcção artística — com a necessária autonomia do poder político. Há um sistema que precisa de ser mudado, há um conjunto de boas práticas há muito definido a que tem de ser dada a força da lei. As estruturas públicas de cultura não podem continuar reféns da total arbitrariedade dos poderes locais nem abandonadas pelos governos que estimularam a sua criação em nome de uma política nacional.”

Também ficámos a saber que o poder político local mantém intactas vicissitudes antigas, há pouco mais de uma semana, Américo Rodrigues, diretor do Teatro Municipal da Guarda desde a sua fundação há oito anos, foi, a pretexto de uma conferência de imprensa sumariamente afastado dessas funções pela câmara municipal de que é funcionário2.

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O mal-estar na cultura, entendida aqui enquanto sub-setor cultural das artes e do património, é um indício a ter em consideração relativamente à qualidade da vida cultural no sentido mais amplo e antropológico, que engloba a liberdade de elaborar estilos de vida alternativos, viver na diferença e na diversidade, conviver com tolerância e respeito pelo outro, implementar ideias criativas e sofisticadas, mas também valorizar o património e a memória ou reinterpretar as tradições culturais e as formas populares de cultura.

Com a recente publicação do Eurobarómetro “acesso e participação cultural” (Nov. 2013) ficámos a conhecer a quebra em todos os indicadores de acesso e participação em atividades culturais, verificadas entre 2007 e 2013. Declínio esse que significa um recuo dificilmente recuperável se se mantiver este contexto político-social predador. Como exemplo, veja-se o caso das idas ao teatro, onde a percentagem de portugueses que foram pelo menos uma vez por ano baixou de 19% (2007) para 13% (2013), aproximando-se assim dos 9,6 % apresentados pelo Inquérito à Ocupação do Tempo de 1999 (INE e OAC). Este estudo revela-nos também que as duas principais razões evocadas pelos europeus para não participar, ou não participar mais vezes, na vida cultural, para além da contingência de terem menos dinheiro, são: a "falta de interesse" e a "falta de tempo".

Tempo e interesse são dimensões da construção da identidade individual (individuação), que ativadas dão forma à atenção, como forma de dirigir a perceção e as funções cognitiva e afectiva (consciência e desejo) em direção a determinados objetos ou processos, neste caso culturais. Na era do capitalismo semióticoas energias mentais são a matéria-prima fundamental (produção) e em simultâneo a moeda de troca no mercado das indústrias culturais e criativas (consumo). Nesta linha de pensamento pode perceber-se que, como diz Bernard Stiegler, o consumo cultural, «metodicamente massificado, não é algo sem consequências sobre o desejo e a consciência.» (O desejo asfixiado, Le Monde Diplomatique Brasil , 2010)3.

Se desde sempre o alvo do marketing foi atingir o coração e a mente dos consumidores, a premissa da economia da experiência assenta agora no envolvimento emocional e na captura da atenção, colonizando as identidades pessoais e coletivas através da imersão cada vez mais total, mais acelerada e mais virtual na mercantilização absoluta da vida. Neste sentido, mas do lado da produção, afirma António Guerreiro que «a lógica económica das indústrias culturais requer a transformação do artista, do escritor, do agente cultural, em empreendedores de si próprios.» (Ípsilon, 29-11-2013: 38).

O devir do capitalismo hiperindustrial estende-se agora à mercantilização do tempo e da atenção. Mas o tempo cultural de outrora, mais lento (slow culture) parece desvanecer-se, canibalizado pela entropia do entetanimento (tittytainment)4. Enquanto isso a atenção dilacera-se sob o soft power do marketing, que é agora «o instrumento do controle social» (Deleuze)5 do homem, que já não é o homem encarcerado (das sociedades disciplinares) mas endividado, a dívida como pulseira eletrónica invisível ou uma nova espécie de servidão voluntária?

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Nestes tempos de empobrecimento e miséria simbólica, os “tempos livres” da propalada civilização do bem-estar ou “sociedade de lazer” evidenciam-se como uma enorme falácia. Por um lado, a crescente massa de excluídos esbarra no limiar da sobrevivência biológica, por outro os que ainda tem alguma fonte de rendimento pelo trabalho vêm as suas condições laborais piorar, quer pela diminuição do salário quer pelo aumento do número de horas de trabalho. Tempo livre e bem-estar deveriam ser dois objetivos centrais do desenvolvimento civilizacional, mas na realidade são duas miragens servidas em doses massivas pelos canais ubíquos damatrix.

Hoje em dia o mundo da cultura é um mundo ao avesso, um mundo onde por exemplo os museus nacionais sobrevivem com o mínimo para um serviço público minimalista (conservação) e que, sem dinheiro para programação própria, enveredam pela lógica doblockbuster e dos eventos massificados, dando razão àqueles que desde há muito afirmam que o velho modelo industrial de Hollywood se expandiria aos confins do mundo, onde facilmente coabitaria com a pobreza galopante dos artistas contemporâneos. Também neste caso, parece prevalecer o lema the winner-take-all economy, pois são agora as grandes máquinas da industria do entretenimentoquem domina a dinâmica museológica segundo a tradição ancestral do No Business Like Show Business.


Sobre o/a autor(a)

Investigador e docente universitário
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