Por que renunciou o papa Bento XVI?

01 de December 2013 - 23:41

Na sua declaração oficial de renúncia, o papa Benedito responsabilizou a sua saída à fragilidade da sua idade avançada e às exigências físicas e mentais do cargo, mas sempre houve a suspeita de que algo não teria sido contado. A minha apuração confirmou isso. Artigo de Mark Dowd, jornalista da BBC.

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No Vaticano, membros jovens e ambiciosos da Igreja são aconselhados a “ouvir muito, ver tudo e não dizer nada”

Em fevereiro deste ano, o agora papa emérito Bento XVI chocou o mundo quando se tornou o primeiro pontífice a renunciar em quase 600 anos. Mas a atenção rapidamente se voltou para a sua sucessão, e a consequente eleição do argentino Francisco.

No meio do episódio dramático, uma pergunta nunca foi totalmente respondida – por que renunciou Bento XVI?

Na sua declaração oficial de renúncia, o papa Benedito responsabilizou a sua saída à fragilidade da sua idade avançada e às exigências físicas e mentais do cargo, mas sempre houve a suspeita de que algo não teria sido contado. A minha apuração confirmou isso.

Fui visitar o cardeal nigeriano Francis Arinze no seu apartamento, com vista para a Praça de São Pedro, no Vaticano. Arinze é uma das figuras mais importantes da Igreja Católica atualmente e conhece o Vaticano como ninguém. Ele foi, inclusive, ainda que por pouco tempo, considerado um provável sucessor do papa Bento XVI. Além disso, Arinze era um dos poucos cardeais a quem o alemão contou pessoalmente a notícia de que iria renunciar.

Levantei o assunto dos escândalos que precederam o anúncio bombástico do papa e, em particular, a revelação de documentos papais, conhecido como Vatileaks, pelo ex-mordomo de Bento XVI, Paolo Gabriele. Isso pode ter contribuído para a renúncia do então pontífice? A resposta de Arinze foi inesperada.

“É legítimo especular e dizer ‘talvez’, porque alguns dos seus documentos foram furtados secretamente. Claro que poderia ser uma das razões (para a renúncia de Bento XVI)”, afirmou Arinze.

“Talvez ele tenha ficado tão triste ao tomar conhecimento de que o seu próprio mordomo, em quem tinha confiança, revelou tantas cartas que um jornalista poderia escrever um livro. Não esperava que ele estivesse contente com isso”.

No Vaticano, membros jovens e ambiciosos da Igreja são aconselhados a “ouvir muito, ver tudo e não dizer nada”. O facto de que uma figura tão importante dentro da Igreja não siga à risca tal regra é minimamente surpreendente.

Na essência, o papa Bento XVI era um académico, um teólogo e um intelectual. “Para ele, o inferno seria participar numa uma semana de formação sobre como melhor gerir a Igreja”, ironiza uma fonte.

O azar do agora pontífice emérito foi ascender ao trono de Pedro num momento em que havia um vácuo de poder, no qual um número considerável de membros do escalão intermédio da Cúria, a máquina administrativa da Igreja, se tornaram “pequenos Bórgia” (em alusão à família espanhola-italiana do mesmo nome que “produziu” três papas, recordados pelo seu governo corrupto e ganância pelo poder).

Essa última declaração veio da figura mais importante da Igreja atualmente, o próprio papa Francisco, conhecido por não medir as suas palavras. “A corte é a lepra do papado”, disse ele uma vez. O argentino descreveu a Cúria como narcisista e egoísta. Foi a mesma Cúria com a qual Joseph Ratzinger teve de lidar.

Intrigas e interesses

No período que antecedeu à morte do papa João Paulo II (1920-2005), o coração da Santa Sé foi dominado por intrigas e brigas internas. Essa foi a justificação para o ex-mordomo do papa, Paolo Gabriele, levar a público documentos confidenciais.

Mas Gabriele afirmou que a sua relação com o papa Bento VXI era como “a de um pai com um filho”. Sendo assim, por que agiu ele de forma a constranger o homem de quem era tão próximo?

“Ele disse que havia visto muitas coisas más a acontecer dentro do Vaticano. Em um dado momento, ele afirmou que havia chegado a seu limite”, disse-me a advogada de Gabriele, Cristiana Arru, enquanto agarrava as contas do seu rosário, na sua segunda entrevista pública.

“E então ele procurou uma saída para tudo isso. Ele diz que viu mentiras sendo contadas. Meu cliente pensou que o papa não estava sendo informado sobre alguns assuntos importantes que estavam a acontecer.”

Gabriele foi considerado culpado de “furto qualificado” e passou três meses sob custódia antes de ser perdoado pelo Papa. Mas isso não foi o fim de tudo. O líder da Igreja convocou um inquérito sobre o caso.

Três cardeais foram incumbidos de produzir um relatório de 300 páginas, a ser mantido a sete chaves. Mas um importante jornal italiano informou que havia conseguido ter acesso a parte do seu conteúdo. O resultado? Revelações ainda mais embaraçosas, desta vez com rumores sobre a existência de uma rede de sacerdotes homossexuais que exerciam “influência inadequada” dentro do Vaticano.

As dores de cabeça continuaram a incomodar o papa alemão. A bomba explodiu com o episódio envolvendo o presépio anual montado na Praça de São Pedro durante o Natal.

Durante anos, acordos feitos no Vaticano foram superfacturados. Quando um delator tentou reformar o sistema, funcionários da corte papal convenceram o pontífice a “promovê-lo” a um cargo a 6,5 mil quilômetros de Roma.

Episódios semelhantes ocorreram no Banco do Vaticano, durante anos uma fonte de manchetes constrangedoras para a Igreja Católica. A instituição financeira havia sido criada para ajudar as ordens religiosas e as fundações em transferir dinheiro para partes distantes do mundo. Mas quando uma proporção considerável das transações é feita em dinheiro e é enviada para regiões politicamente instáveis do planeta, não é preciso ser um gênio para prever que algo possa estar errado.

Parece que os funcionários do banco tomaram decisões importantes sem informar o Papa. Quando o conselho da instituição demitiu o seu presidente reformador, Ettore Gotti Tedeschi (convenientemente no dia em que a notícia da prisão de Gabriele recebia toda a atenção da imprensa), o pontífice foi um dos últimos a saber do ocorrido. Posteriormente, disse, por meio do seu secretário, que ficou “muito surpreso”. Tedeschi era um membro da Opus Dei (organização católica dedicada à evangelização) e pensava que estava próximo do papa, mas, no final, isso não o protegeu.

Mudança

Será que tudo isso foi um fardo muito grande para um Bento XVI envelhecido?

A resposta talvez esteja nas palavras do porta-voz do Vaticano, o padre Federico Lombardi. Disse ele: “A Igreja precisava de alguém com mais energia física e espiritual que seria capaz de superar as adversidades e os desafios de governá-la neste mundo moderno em constante mudança”.

Na minha avaliação, a Igreja Católica tem agora uma grande oportunidade para seguir em frente e enfrentar os desafios do século XXI. Muitas vezes vista como remota, a sua liderança precisa agora de debater questões polêmicas como a contraceção e o casamento gay. A reforma chegou na esteira do escândalo. Isso é algo que não passou batido pelo cardeal Arinze.

“O que você se tem de lembrar”, diz ele, “é de que muitas vezes Deus escreve direito por linhas tortas.”

 

Artigo publicado no portal Outras Palavras.