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Tent-cities: a favelização no coração do capitalismo

A favelização americana é o resultado cada vez mais visível da precarização das condições de vida e trabalho nos Estados Unidos e o seu surgimento deu-se em várias partes do país, especialmente a partir de 2005. Por Daniela Mussi
Uma hooverville em Seattle, Estados Unidos, anos 30

Quem pensa que favela, cortiço, barraca de lona e papelão é uma realidade específica dos países da periferia do capitalismo, como o Brasil, pode começar a rever os seus conceitos. Esta chegou ao Estados Unidos, tem o nome de tent-city (cidade-acampamento), as cores vibrantes do nylon das barracas e os mesmos problemas da sua equivalente no Brasil. A favelização americana é o resultado cada vez mais visível da precarização das condições de vida e trabalho nos Estados Unidos e o seu surgimento deu-se em várias partes do país, especialmente a partir de 2005. São cidades-acampamento que funcionam como abrigo para moradores de rua e trabalhadores desempregados especialmente em regiões metropolitanas, mas também em áreas rurais e florestais das grandes cidades.

Interessante notar que esta não é a primeira vez em que os norte-americanos enfrentam a favelização. As tent-cities possuem como referência histórica as “Hoovervilles” (nome dado em referência ao então Presidente Herbert Hoover), acampamentos criados espontaneamente e por iniciativa da administração pública nos difíceis anos 1930. Uma das cidades-acampamento surgidas na época, “Weedpatch Camp”, situada na Califórnia, aparece retratada pelo romancista John Steinbeck na famosa obra “As vinhas da ira”, de 1939, que narra a história de uma família de agricultores arrendatários que é expulsa do campo durante a Grande Depressão e, sem ter onde morar, acaba por se juntar a este acampamento.

Estima-se que existam hoje por volta de 30 cidades-acampamentos em todo o país, reunindo centenas de pessoas, mas esse número não é estável, já que muitas são fechadas pela polícia enquanto outras surgem todos os anos. Num documentário realizado em 2012 para retratar a história de “Camp Take Notice”, cidade-acampamento situada numa área de auto-estrada de Ann Harbor (no estado de Michigan), o jornalista e professor da Universidade de Michigan, Anthony Collings, deparou-se com a situação da maioria dos acampados: abandono pelo poder público, efémera e demagógica visibilidade dos seus problemas pelas empresas mediáticas e luta quotidiana contra a degradação humana.

O acampamento Take Notice (em português, “Olhe para nós”) surgiu em 2008 composto por entre 20 e 70 pessoas, a depender da estação do ano, maioritariamente desempregados da classe trabalhadora ou classe média empobrecida após a crise e alguns veteranos do exército norte-americano. No seu documentário, “Take Notice: um acampamento para desabrigados”, Collings buscou retratar a trajetória de homens e mulheres que procuravam a cidade-acampamento como uma forma de sair das ruas, procurar emprego ou ainda conseguir voltar a pagar renda para morar.

De acordo com estudo realizado em 2008 para a Conferência de Presidentes de Câmara dos Estados Unidos, as três maiores causas da existência de desabrigados no país são a falta de moradia a preços acessíveis, a pobreza e o desemprego. Dados do Departamento de Habitação estimaram, em 2010, a existência de quase 700 mil pessoas desabrigadas no país, valor 20% maior do que em 2007. Nesta estimativa, é significativa a presença de homens negros e jovens e, no caso de famílias desabrigadas, de jovens negras mães solteiras. Além disso, se for considerada a parcela da população que depende diretamente dos subsídios do governo, o cenário de pobreza no centro do capitalismo torna-se bem mais complexo. De acordo com o Departamento de Agricultura, em 2012, 46 milhões de pessoas usufruíram de algum tipo de subsídio alimentar mensal (os chamados foodstamps), crescimento espantoso se comparado aos 17 milhões contabilizados em 2001 e aos dois milhões em 1969. Os dados apontam, ainda, que entre os 41 milhões de cidadãos americanos que alugam a sua morada, mais de 10% participam de algum programa de assistência à moradia, somados a mais de 2 milhões de família que usam vouchers oferecidos pelo governo para custear habitação e aos 4,4 milhões de americanos favorecidos por algum tipo de auxílio desse tipo em áreas metropolitanas.

O acampamento de Ann Harbor foi fechado pela polícia em junho de 2012, com a remoção de todos os seus moradores e o cerco da área à beira da estrada. De acordo com Collings, “alguns dos maiores problemas enfrentados pelos moradores de Take Notice eram o alcoolismo e a rejeição da comunidade ao redor do acampamento”. Tampouco os dois principais partidos políticos dos Estados Unidos, Republicano e Democrata, manifestaram qualquer tipo de apoio aos acampados que, após a remoção, regressaram às ruas e aos abrigos temporários. Além disso, sinaliza Collings, apesar de surgir como clara consequência da crise económica e do desemprego que assola o país, os acampamentos “ainda são vistos pela opinião pública como agrupamentos de ‘desocupados’ e criminosos”.

Assim como nas favelas e ruas brasileiras, o papel do trabalho filantrópico de igrejas e Organizações Não Governamentais aparece como forma imediata de intermediar certos auxílios públicos, a inserção nos abrigos locais e todas as formas de ajuda comunitária. Porém, este trabalho é incapaz de orientar a conquista de moradia digna e trabalho, realidade que não parece incomum aos brasileiros. Da mesma forma como no Brasil, a solidariedade é uma marca da vida nas tent-cities, nascida da luta contra a repressão policial e da experiência do coletivismo.

De cidade-arsenal à cidade fantasma

Em 1941, durante a II Guerra Mundial, quando o sucesso dos Estados Unidos no conflito não era um facto, circulava nas altas rodas dos dirigentes políticos e grandes capitalistas norte-americanos a expressão: “Nós temos Detroit”. Com isso, faziam referência à vantagem que o país poderia adquirir no conflito dado o enorme complexo industrial e a força de trabalho ali concentrada, bem como a possibilidade de converter rapidamente a produção metalúrgica, especialmente automobilística, em produção de armamentos e tanques de guerra. A força da capital do estado de Michigan era a força da indústria, e esta era o centro da potência em que se convertiam os Estados Unidos. A recuperação económica da crise que estourara em 1929 coincidia com o tempo de guerra, e Detroit era considerada a esperança produtiva e tecnológica dos Estados Unidos, num ciclo de crescimento que perduraria até meados dos anos 1970 e a crise do petróleo.

Em 2013, Detroit não é senão a sombra do seu passado. Aliás, quase uma espécie de assombração nacional. A profunda e progressiva desindustrialização pela qual os Estados Unidos passaram a partir dos anos 1980 e seu caráter crónico depois da crise financeira de 2007, atacou a cidade-automóvel em cheio. Dados do Bureau of Labor Statistcs mostram que na região de Detroit, a taxa de desemprego, atualizada em maio de 2013, é de 9,3% da força de trabalho, bem superior ao índice nacional. Além da destruição do parque industrial, a profunda crise fiscal local e a recente crise imobiliária levaram à migração da força de trabalho para outros estados, desertificando partes inteiras da cidade.

Entre 2005 e 2009, os fotógrafos franceses Yves Marchand e Romain Meffre percorreram Detroit semanalmente, fotografando prédios, hotéis, esquadras de polícias, igrejas, bibliotecas e teatros completamente vazios e destruídos. As imagens impressionantes de uma grande cidade fantasma deram origem ao livro “Detroit em ruínas”. Este, nas palavras dos fotógrafos, revela fotos de “uma cidade abandonada para morrer”. Em nada se parece com a cidade na qual, em 1913, Henry Ford montou sua primeira fábrica para produção do modelo Ford T e para a qual contratou 90 mil operários. Hoje em dia, a mesma companhia contrata pouco mais da metade deste número e é a principal empregadora da região.

O povo do abismo

Há cem anos, em 1913, o romancista e jornalista norte americano Jack London publicou pela primeira vez o livro reportagem “O povo do Abismo”, sobre os dias em que viveu ao lado de moradores de rua e frequentadores de abrigos em Londres, capital da maior potência económica da época. Neste, anunciou o que percebera como uma realidade perfeitamente harmoniosa ao centro do capitalismo: “encontrei uma condição crónica de miséria que nunca é resolvida, mesmo nos períodos de grande prosperidade”.

Passados mais de cem anos, é notável perceber que a vida miserável continuou parte constitutiva do centro e da periferia do mundo capitalista, bem como sua ampliação nestes tempos de crise. No período mais recente, em especial depois da crise económica internacional iniciada em 2007, é percetível o crescimento no coração dos Estados Unidos, país mais rico e poderoso do planeta desde a II Guerra Mundial, do mesmo “povo do abismo” com o qual London conviveu nas praças inglesas do início do século passado.

De acordo com o último Censo (2011), 14,3% da população norte americana vive abaixo da linha da pobreza (pessoas que vivem com menos de um dólar por dia), o que equivale a 40,9 milhões de pessoas. Outro fator importante é a diferenciação geográfica e racial da vida pobre nesse país. Os dados oficiais mostram que a população negra, equivalente a 12,3% dos habitantes país, é maioria relativa entre os mais pobres, 36%. A população branca, ao contrário, equivalente a 74,2% do total de norte-americanos é apenas 41% da população mais pobre.

Esses dados sinalizam, guardadas as devidas proporções, que é possível estabelecer marcos de comparação razoáveis entre a economia norte-americana e o desenvolvimento desigual das economias periféricas do mundo. Além da pobreza, a economia norte-americana enfrenta hoje o fantasma do desemprego e do subemprego, que pressiona paulatinamente a qualidade de vida e estabilidade da população. Segundo o Bureau of Labour Statistics, com uma população de 308 milhões de habitantes, entre os quais apenas 241 milhões compõem a força de trabalho, os Estados Unidos enfrentaram um crescimento paulatino da taxa de desemprego nos últimos anos. Esta chegou a atingir 10% em 2009, bem superior aos números da década anterior, quando oscilou entre 4 e 6%.

Apesar de uma pequena recuperação no último ano, os índices de desemprego não caíram abaixo dos 7,3% desde o início da crise. Mesmo entre os economistas reunidos no Fórum Económico Mundial em Davos está clara a divisão de opiniões nos últimos anos a respeito de uma possível retomada da situação de emprego anterior e da liderança internacional para a saída da crise. Ao que tudo indica, a favelização do Império e a ampliação do seu abismo social veio para ficar.

Uma versão reduzida e modificada deste texto foi publicada na edição n. 196 da revista Caros Amigos, em Julho de 2013.

19 de julho de 2013

Publicado no Blog Convergência

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