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Ciência e poder na era da austeridade

O governo autoritário que hoje exerce funções em Portugal já deu luzes sobre os seus objetivos: cortar nos apoios generalizados à investigação científica e garantir que apenas tem apoios se não ousar produzir conhecimentos que deslegitimem o poder.

A ciência, o desenvolvimento e a liberdade científica são características fundamentais de sociedades mais desenvolvidas, coesas e democráticas. O desenvolvimento científico é potencialmente gerador de sociedades que se pensam melhor a si mesmas, que pensam melhor o mundo em que vivem e como o podem respeitar e usar para viverem melhor. Sabemos que há boas e más formas de usar o conhecimento produzido pelas ciências, mas também sabemos que não esse problema não se resolve acabando com o apoio à ciência mas antes estruturando uma dimensão ética do uso do conhecimento científico.

Mas sabemos também que governos autoritários desenvolvem sobre a ciência dois grandes tipos de política: o primeiro é o de cortar brutalmente o financiamento e o apoio à democratização da produção científica; o segundo é o condicionar o apoio à atividade científica que justifique as teses, os lóbis e as narrativas de quem está no poder. Pouca ciência e ciência controlada politicamente sempre foram um projeto autoritário. O governo autoritário que hoje exerce funções em Portugal não foge à regra e já deu luzes sobre os seus objetivos: cortar nos apoios generalizados à investigação científica e garantir que apenas tem apoios se não ousar produzir conhecimentos que deslegitimem o poder.

Os números recentes do Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional, mesmo com dados de 2011 do ano em que Passos Coelho entrou no Governo, são claros: nesse ano houve uma quebra 140 milhões de financiamento geral à ciência em relação ao ano anterior. Só o Estado, entre 2009 e 2011 reduziu 8 milhões de financiamento, enquanto as Instituições de Ensino Superior – atualmente asfixiadas financeiramente pelo Estado -, reduziu em 23 milhões de euros o financiamento. 2011 foi por isso o orçamento mais baixo desde 2008. Mas se parte desta tendência não é da inteira responsabilidade deste Governo, será que o Orçamento de Estado deste ano, aposta uma inversão desta tendência? Naturalmente que não.

Este Orçamento de Estado aposta numa redução do orçamento disponível para a FCT em cerca de 4%, passando o seu orçamento de 416 milhões de euros para 404 milhões de euros. Este é o seguimento do que tem sido aplicado nos últimos anos: de 2012 para 2013, a FCT já tinha perdido 53 milhões de euros. Por outro lado, o Orçamento de Estado corta 26 milhões de euros em bolsas de investigação científica, reduz em16% o investimento na ciência, quando comparado com 2011. Ao mesmo tempo que a FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia -, já anunciou o corte no número de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento e uma redução do financiamento aos centros de investigação. A intenção é só uma: vedar o acesso a condições de investigação e condicionar a atividade científica.

Mas não é só por via nos cortes generalizados à ciência que se dá este ataque. É bom lembrar a carta enviada à FCT pela Associação Portuguesa de História Económica e Social, a Associação Portuguesa de Ciência Política, a Associação Portuguesa de Sociologia, a Associação Portuguesa de Psicologia, a Associação Portuguesa de Antropologia e a Associação Portuguesa de Geógrafos.

Nesta carta, as associações científicas das ciências sociais contestam os critérios da escolha do conselho científico de ciências sociais e humanas da FCT, considerando que não preenchem critérios de exigência científica e currículo académico, solicitando a revogação da decisão. É sintomático uma unidade tão grande de tantas associações na contestação do júri. E não é para menos. A perplexidade das associações quanto à composição do júri, é a mesma que a de muitos candidatos a bolsas da FCT que alteram deliberadamente as suas escolhas científicas na feitura do projeto porque sabem que o financiamento depende também do facto de os objetos de estudo interessarem ou não a quem está no poder. É assim que se substitui auto-organização, solidariedade, classes, resistência, identidades coletivas, desigualdades, movimentos sociais, precariedade, por empreendedorismo, resiliência, inovação, globalização, modernização, liderança e competitividade. Diferentes conceitos refletem diferentes escolhas do que se quer investigar. E em questões de financiamento, para o poder há coisas mais e menos legítimas para se estudar. É por isso, a título caricatural, que hoje uma pessoa que quer ter acesso a uma bolsa de investigação, se colocar empreendedorismo no título, as suas probabilidades aumentam substancialmente.

É certo que não é sempre assim, que há quem insista em contrariar estas tendências e oriente a sua conduta académica pelo rigor na avaliação de projetos. São pessoas que nas universidades portuguesas e nos centros de investigação orientam a sua conduta por ética e responsabilidade pública. Pessoas que não cedem à pressão. Ainda bem que assim é. É de todas essas pessoas que precisamos, para lutar por uma ciência que não se deixa vencer, nem consumir pelas narrativas do poder.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo e investigador
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