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“As alternativas de equidade não interessam à maioria da direita”

Catarina Martins sublinha que o Orçamento de Estado de 2014 é uma brutal transferência dos rendimentos do trabalho para o capital, que está resumida na política fiscal do governo: aumentaram 30% o IRS, para descer 10% o imposto pago pelo lucro das empresas. “Que chamem a isto 'ética na austeridade' é acrescentar o insulto à ofensa”, acusa. A coordenadora do Bloco afirma que diante do falhanço de todas as metas da troika, só resta ao governo demitir-se. Leia o discurso final do debate do OE 2014 na íntegra.

O debate que aqui tivemos nos últimos dias não é o do Orçamento de Estado para o próximo ano, mas o do verdadeiro faz-de-conta em que se transformou a governação PSD e CDS.

Faz de conta. Faz de conta que as contas batem certo. Faz de conta que, depois de falhadas todas as metas, a austeridade de 2014 vai funcionar onde falhou a de 2011, 2012 e 2013. Faz de conta que, cortando salários e pensões, o investimento vai florescer e o consumo disparar. Faz de conta que o Governo acredita no que está a dizer por que, na verdade, é uma delegação de Berlim e Bruxelas a fazer de conta que é um Governo.

Desde o início do programa da troika que todas as metas orçamentais - repito, todas as metas - previstas pelo Executivo falharam.

Dizia o memorando original que o desemprego em 2014 iria atingir os 12%, mas os números oficiais dão-nos conta de 17,7% no final do mesmo ano de 2014. São mais 250 mil desempregados do que o estimado no memorando.

Dizia a troika que em 2014, no final do programa de ajustamento, Portugal teria um crescimento de 2,5%, uma previsão seis vezes superior à que a OCDE agora calcula.

Nestes 3 anos de devastação social a divida pública aumentou 20 mil milhões de euros acima das previsões. No Orçamento de Estado que é anunciado como sendo o último da troika é pois o momento certo para acertar contas.

Afinal, falhadas todas - repito, todas - as metas e promessas, o que ficou? Um país mais pobre, desigual, onde milhares de trabalhadores mais qualificados e especializados estão a abandonar o país. Um país onde os mais jovens não têm lugar. 120 mil emigram a cada ano, meio milhão de exilados dentro de portas, sem trabalho e sem escola. Um país onde ter filhos é ser pobre, onde ser criança é um risco. Um país onde os mais velhos têm de escolher entre a refeição ou os medicamentos. Um país de gente atirada para o lado, depois de 20, 30 anos de trabalho, com o rótulo “desempregado de longa duração”. Um país de gente que empobrece mesmo quando trabalha, esmagada por precariedade, por salários de miséria.

Um país que ficou precisamente o que a troika e a direita queriam que ficasse. Portugal, que já era o país mais desigual da zona euro, reforça esta nada honrosa distinção.

Ao mesmo tempo que nunca houve tantos milionários, que aumentam em número e no tamanho das suas fortunas, o peso dos rendimentos do trabalho no produto nacional igualou o ponto mais baixo das últimas décadas - não por acaso, os anos em que o primeiro-ministro dava pelo nome de Cavaco Silva.

O peso dos salários na riqueza total do país já está abaixo dos 50%, cada vez mais longe dos 60% que encontramos na maioria da Europa. Mais de metade do dinheiro gerado em Portugal são juros, lucros e renda. Curiosamente, ou nem por isso, são estes que menos são chamados pela direita a pagar a crise.

O Bloco de Esquerda bateu-se neste orçamento pela decência de um país que trate dignamente quem vive do trabalho e taxe o capital e as fortunas. Sem novidade, vimos as propostas chumbadas. As alternativas de equidade não interessam à maioria da direita.

Todo o seu programa é uma brutal transferência dos rendimentos do trabalho para o capital que está resumida na política fiscal do Governo: aumentaram 30% o IRS, para descer 10% o imposto pago pelo lucro das empresas. Que chamem a isto “ética na austeridade” é acrescentar o insulto à ofensa.

Não contente em andar permanentemente em contramão com a realidade, o Governo decidiu colocar mais uma mudança e seguir em força. No decorrer deste debate orçamental, disse-nos o secretário de Estado Hélder Rosalino que é “mais justo” cortar salários de 675 euros do que o fazer a partir dos 1500.

675 Euros. Nem menos, nem mais. São estes os novos privilegiados. Cortar salário a quem recebe 675 euros, um valor que mal paga a creche e a renda de casa, é taxar “mais quem mais pode”, como costumam dizer as bancadas do PSD e CDS?

Pior. Não apenas perderam salário e viram a sua carga fiscal disparar, como os trabalhadores dos 675 euros - escolhidos pela direita para pagar uma crise que continua a isentar a banca – encontram cada vez menos apoio social e serviços públicos.

Fixemos a nossa atenção numa família, com um filho e onde cada adulto tem um rendimento mensal bruto de 700 euros. Uma família de privilegiados, pelos critérios deste Governo. Pagam sobretaxa de IRS. Perderam o direito ao abono de família, assim como aos manuais ou refeições escolares. Privilegiados que são, pagam tanto pelo passe do metro ou do autocarro para a criança como pagam pelo dos adultos. São mais de 100 euros em transporte, se viverem no centro da cidade, sempre mais de 150 se tiverem que se deslocar. Fica mais barato ir de carro, se o tiverem, claro, ou não for a diesel e tiverem que pagar mais uma taxa.

E esta família, que tem pouco mais de 300 euros líquidos por pessoa para chegar ao fim do mês, se tiver o azar de trabalhar para o Estado, sabe que ainda vai ter de suportar uma redução no seu salário pelo aparente crime de trabalhar num hospital, numa escola, nas forças de segurança, nos transportes, num qualquer serviço público.

Taxar e baixar os rendimentos do trabalho. A receita sempre repetida nestes 3 anos.

Num país onde já se trabalha mais 200 horas por ano do que a média europeia, CDS e PSD dizem-nos que o problema é o horário de trabalho e aumentaram a semana de trabalho dos funcionários públicos.

Não pensem os trabalhadores do privado que isto não lhes diz respeito. O sinal que o Governo deixa é claro. Com os funcionários públicos a trabalharem, desde agora, mais 3 horas por semana do que a média laboral no privado, vai ser um passo até os patrões começarem a pressionar para subir o horário no comércio, industria e serviços.

Trabalhar mais horas, com menos direitos, pagando mais pelos serviços públicos, em troca de um salário cada vez menor, eis o resultado de quase três anos da direita no poder.

O Governo só não é austero na demagogia com que quer escamotear o óbvio. O falhanço das metas do memorando não é incompetência ou má vontade, mas uma política deliberada e consciente de reconfiguração do contrato social existente.

É por isso que o Governo cavalga o discurso contra a Constituição e o Tribunal Constitucional. Porque sente que, sem o álibi da troika, tão cedo não terá outra oportunidade histórica para aplicar o seu programa: desregular o mercado de trabalho e fazer dos serviços públicos um entreposto para negócios privados financiados com os nossos impostos. Era já esse o sentido da proposta apresentada em 2010, e rapidamente escondida, por Pedro Passos Coelho.

A sanha contra a constituição não é inocente ou sequer um acaso. A Constituição é entrave derradeiro a este ajuste de contas da direita com a história.

Como também não é coincidência que o Governo, ou as fontes anónimas que por si falam, culpem a Constituição de tudo e mais um par de botas à medida que o programa da troika se aproxima do fim. Porque não apenas sentem que, sem a mão amiga de Merkel e Durão Barroso, dificilmente conseguirão reconfigurar o contrato social defendido pela Constituição, como é preciso encontrar um bode expiatório para a colossal destruição social destes 3 anos.

Apelar ao consenso, neste contexto, é o canto da sereia para enganar os tolos que se querem deixar enganar. Apelar ao consenso, suportado no mata-borrão de Paulo Portas, que expressa uma ideia de sociedade e país altamente minoritária e que nunca foi sufragada, é o conto da carochinha. Não há consenso possível na destruição do Estado Social.

A ideologia do consenso, atirando para baixo do tapete os conteúdos sobre os quais esse suposto consenso é construído, é a ideologia do poder do momento. Mesmo quando este já perdeu, há muito, toda e qualquer forma de legitimação.

Um Governo que, perante a eminência do desastre, não hesita em desagregar as instituições para esconder a sua incompetência, e acelera a desastrada política que reforçou a crise não merece confiança.

A questão é simples. Na reta final de um programa que falhou todas as metas anunciadas, e sem qualquer legitimidade, resta ao Governo sair. Demitir-se. Para que com eleições se gere a legitimidade necessária a um programa para o país, em nome das pessoas. Para que com renovada e reforçada legitimidade interna e externa se resgate o Estado e a economia da tirania da dívida e do diretório europeu.

Neste Orçamento, como sempre, o Bloco de Esquerda estará pela democracia e pelo Estado Social, estaremos na defesa da Constituição em todas as convergências e não abdicando de todos os meios, institucionais e de mobilização social.

Mais deste Governo será sempre menos país. Mais austeridade resultará sempre em menos soberania e liberdade. Fazemos uma escolha. Votamos com o país, votamos contra este Orçamento. 

Catarina Martins: "Não há consenso possível na destruição do Estado Social"

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