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Alberto Acosta: “O movimento indígena trava o neoliberalismo no Equador”

Nesta entrevista, conduzida por Jaime Pinho, o candidato às últimas eleições presidenciais do Equador, Alberto Acosta, ex-ministro de Rafael Correa e ex-presidente da Assembleia Constituinte, fala, entre outros assuntos, sobre a “revolução cidadã” em curso no país e sobre o contributo indígena ancestral que é a cultura do “Bom Viver”.
Foto de AgenciaAnde, flickr.

Que se passa neste momento no Equador, como está a “revolução cidadã”, que avanços, que dificuldades, qual o contexto regional… Que se está a passar que suscita tanta curiosidade e tanta esperança?

Sem margem para dúvidas que os processos políticos que se estão a viver na América Latina são inéditos, se compararmos com o que acontecia anteriormente em anos neoliberais e também se compararmos com aquilo que se passa hoje na Europa, onde ganhou muita força a tese do neoliberalismo. Isso é claro. Não são os mesmos processos anteriores dos anos neoliberais. Isto gerou uma série de expectativas, uma série de esperanças e por consequência produziu algumas mudanças. Algumas mudanças produzidas são importantes, outras nem tanto. Portanto, a primeira grande conclusão é que alguma coisa está a acontecer na América Latina, algo que despertou o entusiasmo, a expectativa e que se traduz no apoio de uma parte importante da população aos novos governos. É o caso da Venezuela, da Bolívia, do Equador, do Brasil, do Uruguai, em tempos também foi o caso do Paraguai. Mas estes governos já estão há alguns anos em funções: na Venezuela há mais de dez, no Equador vai fazer sete anos, na Bolívia vai fazer oito anos. Portanto, é preciso fazer uma leitura mais atenta dessas mudanças e o que significam.

Concretamente no caso do Equador, podemos ir anotando algumas questões importantes: reduziu-se a pobreza de 37% a 27%, a pobreza extrema também caiu muito. Mas não se deu o passo para a redistribuição da riqueza. Há uma melhor distribuição das receitas, o dinheiro disponível por parte do governo está a ser utilizado de uma maneira mais equitativa, e daí mais investimento social, em educação e saúde, bem-estar social, habitação social e obras públicas, sem dúvida. Mas não se reduziu a excessiva concentração da riqueza. Este é outro lado interessante: os pobres estão melhor do que estavam, mas os grandes grupos económicos estão muito melhor do que anteriormente.

E sobre a polémica à volta do extrativismo, petróleo…

O governo do Equador tem dado maior atenção ao sector social, mas não resultou contudo nos temas de concentração da riqueza. Temos um governo que está há sete anos em funções e não mudou a modalidade de acumulação. Não há uma mudança, um passo no pós-capitalismo. Há umas escassas intenções para sair do neoliberalismo. Podíamos dizer que estamos numa fase pós-neoliberal em alguns aspectos, mas não há uma saída do capitalismo. O que se aprofundou na América Latina, sobretudo na Bolívia, na Venezuela e no Equador é o extrativismo, as práticas extrativistas. Por isso digo que no Equador não há socialismo do século XXI, há um extrativismo do século XXI.

E isso o que é?

Maior exploração de petróleo. Com a décima maior prospeção petroleira na Amazónia equatoriana abre-se a porta à mega exploração, que era uma aspiração neoliberal. Impulsionam-se os agrocombustíveis e biocombustíveis, quer-se deitar abaixo uma providência constitucional para os transgénicos. Há uma aposta generalizada em aprofundar o extrativismo. O governo dirá que sim, que precisa de mais recursos do extrativismo para sair do extrativismo, o que é uma enorme contradição. Se nos mantivermos dentro da lógica do extrativismo então não há mudanças estrutural nenhuma, porque o extrativismo na sua essência faz parte do processo colonial, neocolonial, oligárquico. Seguem-se as mesmas lógicas extractivistas e dependentistas. Não há mudanças profundas. Portanto, há uma enorme contradição com o “caso ITT”, as zonas onde existem enormes reservas de petróleo. Este governo apresentava como uma decisão importante, revolucionária, deixar o crude no subsolo nesta zona amazónica. É uma proposta que não é do Governo, surge da sociedade civil muito tempo antes do presidente ter chegado ao Palácio Presidencial. Então, esta proposta que foi acolhida pelo governo, foi defendida pelo governo, foi sustentada por uma série de argumentos: proteger a vida dos povos em isolamento voluntário, proteger a biodiversidade, impedir a emissão de CO2, garantir as fontes de água, abrir a porta a uma discussão global que nos permita ter outro relacionamento a nível internacional. Mas o presidente da República esquece-se dos seus argumentos…

Ele é um pouco agressivo contra as críticas …

Tremendamente agressivo.

Como comenta a chantagem do Presidente da República do Equador contra uma iniciativa pelos direitos das mulheres decidirem sobre o aborto.

Nós sabemos que o Presidente da República em termos morais é conservador. É muito conservador. Já em 2007, quando começava a funcionar a Assembleia Constituinte, pronunciou-se contra o aborto. Nessa altura também se pronunciou contra o casamento homossexual e contra a possibilidade de não incluir o nome de Deus na Constituição. 

Havia uma iniciativa parlamentar e se o Presidente a tivesse apoiado poderia passar no Parlamento…

Podia ao menos ter sido discutido no Parlamento. Havia qualquer coisa como 30 deputados, homens e mulheres, do partido ou do movimento oficialista que defendiam a tese do aborto, a ampliação do aborto para situações de violação da mulher… mas não era a despenalização do aborto. Não, não. Ampliavam-se as causas do aborto, não se chegava a uma situação do aborto ser permitido como em Cuba ou no Uruguai ou na Europa. Era apenas uma ampliação dos direitos.

O presidente não permitiu e bloqueou o debate, não permitiu o debate. Então chegámos a um ponto medular. O Presidente da República na prática não permitiu que se aprofundasse um verdadeiro processo de “revolução cidadã”, seguiu com um estilo de governo personalista, autoritário. Temos na prática um chefe, um caudilho do século XXI, que se esquiva ao debate.

Perseguem-se pessoas que defendem a vida, a água, as florestas, os animais. Criminalizam-se os lutadores populares violando o que diz a Constituição. A Constituição no seu artigo 98 garante o direito à resistência. Mas não se respeita este artigo. Recua-se às leis da ditadura militar dos anos 70 e criminaliza-se a luta popular.

Teve uma grande participação na Assembleia Constituinte de 2007. A nova Constituição equatoriana tem algumas ideias do sistema do “bom viver”.

Sim, na Constituição recorre-se à tese do “bom viver”, sem dúvidas. E esse é um dos pontos mais importantes da Constituição.

Pode dar exemplos onde a Constituição aponte para esse paradigma alternativo?

Em primeiro lugar porque: fala do paradigma alternativo. Há todo um capítulo na Constituição de recomendação do “bom viver” onde se estabelecem vários direitos que estariam em sintonia com o que seria o “bom viver”. Outro aspeto, aparentemente formal, mas tremendamente importante: fala do SUMAKAUSAI, em espanhol o “buen vivir”. Incorporar numa a Constituição termos dos povos originários já é um passo importante. Falar de Pachamama (Mãe terra), de Sumakausai (Bom viver) já é um sinal muito importante de que se estão a fazer mudanças.

Quais são os pilares, as ideias-base dessa alternativa do Sumakausai, do “Bom viver”?

Uma das ideias-chave é ganhar distância daquela visão que está centrada no indivíduo à margem da colectividade. Um primeiro ponto fundamental é recuperar o comunitário. Um segundo ponto fundamental é estabelecer um novo relacionamento com a natureza, sentir-nos parte da natureza, actuar como parte da natureza. Portanto, tudo isto tem a ver com a valorização dos direitos individuais, com os direitos colectivos e com os direitos da natureza. E isso deve então projectar uma lógica diferente de organizar a sociedade. Não à volta da competição, da competitividade. Pelo contrário: em torno da harmonia. E eu sei que é muito difícil chegar a esta realidade, mas é preferível organizar-nos à volta da harmonia, como uma utopia, do que organizarmo-nos em volta da competição, o contrário de uma utopia. Por isso preferimos ir buscar a harmonia dos seres humanos consigo próprios, dos seres humanos com os seus congéneres, os outros seres humanos, os indivíduos, a harmonia entre si e de comunidades e além disso indivíduos e comunidades em harmonia com a natureza. Esse é o “miolo” deste assunto. Resgatar o comunitário, o comunal, a relação com a natureza e procurar um esquema de harmonias como ponto de partida. Isto obriga-nos a repensar o tipo de Estado, que tem de ser comunitário e plurinacional. No caso do Equador isso é indispensável! E repensar toda a economia e os mercados. É preciso civilizar os mercados, um controle por parte do Estado e da sociedade sobre os mercados. Isto implica também um processo de comunitarização de toda a sociedade. Resgatar o comunitário. Estes são alguns dos elementos claros desta proposta do “bom viver”. 

Contam alguns viajantes, militantes internacionalistas, que nos últimos tempos os indígenas – claramente na Bolívia, mas também no Equador – deram um salto na sua dignidade, nos direitos, nas ruas, nos direitos sociais.

Não vejo que seja uma coisa de relevo, por uma razão muito simples: não se abriram espaços de participação democrática. O Presidente da República do meu país tem tido atitudes desrespeitosas, incluindo racistas, para com os movimentos indígenas e os seus dirigentes. Desrespeitou o movimento indígena. Ele quer ter indígenas partidários submissos, não indígenas que sejam interlocutores democráticos que mereçam ser respeitados.

O estilo do Presidente Rafael Correa parece bastante paternalista. Mas vemos também indígenas, por exemplo, em certos programas da televisão pública equatoriana, como protagonistas, repórteres … Há trinta anos isto não acontecia…

Sem dúvida. Os indígenas ganharam força nos últimos anos. Recordemos que o movimento indígena emerge como um actor importante em 1990 quando se dá um grande levantamento indígena, em maio, junho desse ano: os indígenas reclamaram um espaço na sociedade. Até aí, em termos gerais, os indígenas eram “objetos” da política nacional.

Na Bolívia também? Nos anos 90 abre-se uma nova fase do movimento indígena?

Sem dúvida. Por coincidência, ou melhor: por ter sido preparado, dá-se na altura da comemoração dos 500 anos da chegada dos europeus à América: a questão do que tinha sido a colonização e a conquista. Daí a maior participação do movimento indígena, que se converte num actor político determinante para fortalecer a democracia no Equador. O movimento indígena é o que permite travar o neoliberalismo no Equador, está na liderança na luta contra o ALCA e os TLC Tratados de Livre Comércio).

Antes mesmo de Rafael Correa?

Muitíssimo antes. O processo começou antes do actual Presidente da República e vai continuar depois e inclusivamente se necessário contra o actual Presidente. Porque este processo faz parte de um acumulado histórico das lutas dos diferentes sectores da sociedade, na última etapa particularmente o movimento indígena, também o movimento sindical, o movimento de mulheres, o movimento ecologista, de professores, de estudantes. Grupos distintos da sociedade que reclamam mudanças profundas e que propõem os elementos que são vertidos na Constituição e dão lugar sobretudo à primeira fase da “revolução cidadã”: uma “revolução” que não é revolução e que cada vez é menos cidadã.

Dívida externa: o que nos podes dizer sobre o que se passou no Equador e o que podem fazer os países periféricos da Europa, como Portugal?

Nós, em relação ao problema da dívida externa, temos uma longa história. Eu gosto de falar em dívida eterna. Porque é uma dívida que começou antes da existência da República do Equador. O Equador é uma República independente desde 1830 e já estávamos endividados e em moratória, não podíamos pagá-la. Essa dívida pagámo-la em 1975 – 1976 e adquirimos uma nova dívida que foi a que foi impugnada pelo actual governo. A partir da sociedade civil, muito antes da chegada do actual Presidente, concebeu-se a necessidade de uma auditoria à dívida externa. Nos anos 80 falávamos deste tema e nos 90 o tema instalou-se o tema e exigiu-se aos diferentes governos. E chegou o momento do actual Presidente ter tomada a iniciativa. Em 2007 foi formada uma comissão de auditoria à dívida externa em que entre outras pessoas participou Éric Toussaint. Eu não participei porque nessa altura era ministro da energia e minas e depois presidente da Assembleia Constituinte.

Mas acompanhaste o processo?

Acompanhei sempre o processo, apoiei sempre o processo. Foi um trabalho muito interessante para determinar uma série de irregularidades, ilegalidades ilegitimidades da dívida externa, que foram identificadas pelo governo e serviram para o governo renegociar uma parte da dívida externa e recomprar uma parte da dívida externa privada, com títulos globais a 12 e 30 anos e não a 15 anos. Não a dívida bilateral, não a dívida multilateral, não a reserva do resto do stock de dívida. Então, temos que sublinhar um ponto positivo que foi a auditoria que serviu para impugnar e renegociar a dívida em termos bastante aceitáveis. Podiam ter sido melhores: é lamentável que não se tenha completado todo o processo, é de lamentar muito que não tenha sido lançada uma impugnação legal e de ilegitimidade da dívida externa. Apresentou-se por exemplo a possibilidade de abrir processos dentro do Equador, que não foram avante. Não avançou por exemplo nenhuma acção contra quem contratou as entidades corruptas, usurárias. E também não se acompanharam os processos fora do Equador. Acho que estes são temas que este governo devia voltar a abordar: recupera-se a iniciativa, realiza-se a auditoria, utiliza-se o que fizemos bem. Mas não se avançou. Defendo, e olhando para o caso europeu, a necessidade de abrir processos de auditoria mas que estejam ligados a decisões políticas. Eu sei que é difícil, mas um processo de auditoria já é um processo político em si mesmo, é um exercício político muito forte na medida em que serve para denunciar todas as artimanhas corruptas à volta da questão da dívida externa. O ideal era que isso fosse assumido por algum governo e que esse governo impugne a dívida e estabeleça os custos e prejuízos correspondentes, dentro e fora do país, para dar um sinal muito claro para que isto não se repita. A auditoria é uma ferramenta política, mas é insuficiente para resolver por si só todos os problemas.

Sobre o medo que existe na sociedade portuguesa neste momento, em Espanha, Grécia: é possível que a lógica do capitalismo, do grande capital financeiro, pode levar países como Portugal a regredir a níveis como os que víamos nos últimos anos na América Latina e em África, salários de 200 e 300 euros em Portugal? Como na América Latina, na China…

Muitas vezes dizemos que as conquistas sociais são irreversíveis, mas infelizmente não é assim, porque pouco tempo depois, quando há uma crise, estas conquistas sociais são sacrificadas. E eu sou sincero, eu acreditava que os europeus iriam literalmente às barricadas, até às trincheiras, para defender o Estado Social e para defender os seus direitos, mas isso não aconteceu.

Dizem que somos os responsáveis pela crise, e tentam dividir a população, uns contra outros…

Esta é uma das lógicas do capital, dividir para reinar. É uma lógica que vem desde há muito tempo atrás. Uma das suas grandes ferramentas é em primeiro lugar a ideológica: “não há alternativas!”, fecha-se  a porta às alternativas.

Dizem que vivemos acima das nossas possibilidades…

Também nós vivemos isso. “ Agora é altura de pagar!”. Essa é uma tese muito clara dos neoliberais. Outra ferramenta muito potente é o medo: as pessoas que têm um rendimento mínimo querem proteger o seu rendimento, não importa o que aconteça aos outros, quando o que deveriam todos era unir-se para apresentar soluções diferentes. Portanto, a primeira coisa que eu recomendo é conhecer o que está a acontecer e o que se está passar noutros sítios para colher ensinamentos. Outra é não aceitar o discurso do “pensamento único”, do “não há alternativas”. Terceiro, recuperar essas alternativas existentes. Em quarto lugar, é preciso organizar-se e em quinto: atuar. Há que atuar organizados, solidários, buscando as frentes mais amplas para enfrentar esta realidade.

 

 

* Alberto Acosta candidatou-se às eleições presidenciais do Equador deste ano, ganhas com maioria folgada pelo presidente Rafael Correa. Foi presidente da Assembleia Nacional Constituinte e ministro de Rafael Correa, em 2007/8, no tempo da chamada “revolução cidadã”, em curso neste país da América latina. É economista e professor universitário. Veio a Portugal a convite do CIDAC para apresentar o contributo indígena ancestral que é a cultura do “Bom Viver”.

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