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Bancocracia: da República de Veneza a Mario Draghi e Goldman Sachs

Como durante a República de Veneza, hoje, na União Europeia e na maioria dos países mais industrializados do planeta, o Estado vive em osmose com a grande banca privada e paga obedientemente a dívida pública. Por Eric Toussaint, publicado no CADMT.
Mário Draghi, Angela Merkel, Silvio Berlusconi (o grande patrão italiano), José Manuel Durão Barroso surgem como figuras emblemáticas que dão continuidade ao projeto de Thatcher

Entre o século XII e o início do século XIV, a Ordem dos Templários, presente em grande parte da Europa, converte-se no banqueiro dos poderosos, ajudando a financiar várias cruzadas. No início do século XIV, tornou-se o maior credor do rei de França, Filipe, o Belo. Perante o peso de uma dívida que sobrecarregava as suas finanças, Filipe, o Belo, resolveu desembaraçar-se dos credores e, ao mesmo tempo, da dívida, diabolizando a Ordem dos Templários, que acusou de múltiplos crimes (1). A Ordem foi banida, os seus chefes executados e os seus bens confiscados. Faltou um Estado e um território à ordem dos Templários para fazer frente ao rei de França. O seu exército (quinze mil homens dos quais 1500 eram cavaleiros), o seu património e os seus créditos sobre vários dirigentes não os protegeram do poder de um Estado que decidiu eliminar o seu principal credor.

À época (séculos XI a XIV), os banqueiros venezianos financiavam também as Cruzadas e emprestavam dinheiro aos poderosos da Europa, mas foram mais hábeis a gerir o assunto do que a Ordem do Templo. Em Veneza, assumem a chefia do Estado, conferindo-lhe a forma de uma república. Financiam a transformação da cidade de Veneza, cidade-Estado, num verdadeiro império que incluía Chipre, Eubeia (Negroponte) e Creta. Adotam uma estratégia imparável para enriquecerem de forma mais duradoura e garantirem o reembolso dos seus créditos: Decidem, eles próprios, endividar o Estado veneziano junto dos bancos que possuíam. Os termos dos contratos de financiamento foram definidos por eles, que eram ao mesmo tempo proprietários dos bancos e dirigentes de Estado.

Ao mesmo tempo que Filipe, o Belo, se livrava fisicamente dos seus credores para aliviar o peso da dívida, o Estado veneziano reembolsava até ao último tostão os banqueiros que tiveram, entretanto, a ideia de criar títulos de dívida pública, que poderiam circular de um banco para outro. Os mercados financeiros começavam a nascer (2.). Essa forma de empréstimo é precursora da forma principal de endividamento dos Estados tal como a conhecemos no século XXI.

Sete séculos depois do esmagamento da Ordem Templária por Filipe, o Belo, os banqueiros da Europa, tal como os seus antecessores venezianos ou genoveses, não mostram qualquer inquietação face aos governos em exercício.

Os Estados nacionais de hoje e o proto-Estado que é a União Europeia são, talvez, mais complexos e sofisticados do que as repúblicas de Veneza (ou Génova) dos séculos XIII a XVI, mas são também, cruamente, os órgãos de exercício do poder da classe dominante, o 1% que se opõe aos 99%. Mario Draghi, antigo responsável da Goldman Sachs na Europa, dirige o Banco Central Europeu. Os banqueiros privados têm colocado os seus representantes ou os seus aliados em lugares chave de governos e da administração. Os membros da Comissão Europeia estão muito atentos na defesa dos interesses da finança privada e o lobbying que é exercido pelos bancos junto de parlamentares, reguladores e magistrados europeus é extremamente eficaz.

Se um conjunto de grandes bancos capitalistas é o centro das atenções nos últimos anos, isso não deve esconder o papel exercido pelas grandes empresas privadas, ao nível da indústria e do comércio, que usam e abusam da sua proximidade com as estruturas do Estado com tanta habilidade como os banqueiros. A relação inextricável entre bancos, empresas industriais e comerciais e os grandes grupos privados de comunicação é também uma característica do capitalismo, tanto na sua fase atual como nas precedentes.

De facto, desde a vitória e institucionalização do capitalismo como modo dominante de produção e de formação social, o poder é exercido por representantes de grandes grupos privados e pelos seus aliados.

De um ponto de vista histórico, o New Deal, iniciado pelo presidente Roosevelt, em 1933, e os trinta anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial surgem como um parênteses durante o qual a classe dominante teve de fazer concessões, ainda que limitadas, mas reais, às classes populares. Os grandes patrões tiveram de esconder algum do controlo que possuíam sobre o Estado. Com a viragem neoliberal, iniciada no final dos anos setenta, abandonaram a discrição. Os anos oitenta colocam na frente de cena uma classe dominante completamente desinibida, que assume e ostenta com cinismo a corrida atrás do lucro e a exploração generalizada dos povos. A frase tristemente célebre de Margaret Thatcher «Não há alternativa» marca, até hoje, o cenário político, económico e social, através de ataques violentos aos direitos e conquistas sociais. Mário Draghi, Angela Merkel, Silvio Berlusconi (o grande patrão italiano), José Manuel Durão Barroso surgem como figuras emblemáticas que dão continuidade ao projeto de Thatcher. A cumplicidade ativa de governos socialistas (de Schröder a Hollande, passando por Blair, Brown, Papandreou, Zapatero, Sócrates, Letta, Di Rupo e muitos outros) mostra até que ponto estão inseridos na lógica do sistema capitalista, até que ponto fazem parte do sistema, como Barack Obama, do outro lado do Atlântico. Como afirmou o multimilionário americano Warren Buffett, «É uma guerra de classes e é a minha classe que está a ganhar».

O sistema da dívida pública, tal como funciona no capitalismo, constitui um mecanismo permanente de transferência da riqueza produzida pelo povo para a classe capitalista. Esse mecanismo foi reforçado com a crise que começou em 2007-2008 porque as perdas e dívidas dos bancos privados foram transformadas em dívida pública. Em grande escala, os governos socializaram as perdas dos bancos para que eles pudessem continuar a obter lucros que distribuem pelos seus proprietários capitalistas.

Os governantes são aliados diretos dos grandes bancos e colocam ao seu serviço os poderes e os fundos públicos. Existe um vaivém permanente entre os grandes bancos e os governos. O número de ministros das Finanças e da Economia, ou de primeiros-ministros, que vêm diretamente de grandes bancos ou que para lá vão quando deixam o governo continua a aumentar desde 2008.

O negócio da banca é muito importante para a economia para ser deixado nas mãos do sector privado. É necessário socializar o sector bancário (o que implica a sua expropriação) e colocá-lo sob controlo cidadão (funcionários dos bancos, clientes, associações e representantes dos atores públicos locais), para que seja sujeito às regras de serviço público (3) e os rendimentos gerados pela sua atividade sejam postos ao serviço do bem comum.

A dívida pública contraída para salvar os bancos é definitivamente ilegítima e deve ser repudiada. A auditoria cidadã deve determinar as outras dívidas ilegítimas e/ou ilegais e permitir a mobilização para que a alternativa anticapitalista tome forma.

A socialização dos bancos e a anulação/repúdio das dívidas ilegítimas devem ser inscritas num programa mais amplo (4).

Como durante a República de Veneza, hoje, na União Europeia e na maioria dos países mais industrializados do planeta, o Estado vive em osmose com a grande banca privada e paga obedientemente a dívida pública. O não pagamento da dívida ilegítima, a socialização dos bancos e outras medidas vitais serão resultado de uma irrupção do povo, ator da sua própria história. Trata-se de colocar no poder um governo tão fiel aos oprimidos como os governos de Merkel e Hollande são às grandes empresas privadas. Esse governo do povo deverá fazer incursões na sacrossanta propriedade privada para desenvolver bens comuns, que respeitem os limites da natureza. O governo deve também fazer uma ruptura radical com o Estado capitalista e erradicar todas as formas de opressão. É necessária uma verdadeira revolução .

 

Tradução: Maria da Liberdade. Revisão: Rui Viana Pereira.


Notas

|1| Ver David Graeber, Dette 5000 ans d’Histoire, Paris, Les liens qui libèrent, 2013; Thomas Morel e François Ruffin, Vive la Banqueroute!, Paris, Fakir Editions, 2013.

|2| Fernand Braudel, Civilisation matérielle, économie et capitalisme. XVe-XVIIIe siècle, Paris, Armand Collin, 1979; David Graeber, Dette 5000 ans d’Histoire, Paris, Les liens qui libèrent, 2013.

|3| O sector bancário deveria ser totalmente público à exceção do sector cooperativo de pequena dimensão, com o qual poderia coabitar e colaborar.

|4| Ver Damien Millet e Eric Toussaint, «Europa: qual o programa de urgência para enfrentar a crise?» http://cadtm.org/Europa-qual-o-prog..., publicado a 24 de junho de 2012. Ver também: Thomas Coutrot, Patrick Saurin et Éric Toussaint, «Anular a dívida ou taxar o capital: um falso dilema», http://cadtm.org/Anular-a-divida-ou..., publicado a 31 de Outubro de 2013. Por fim ver : Que faire de la dette et de l’euro? http://cadtm.org/Que-faire-de-la-de..., publicado a 30 de abril de 2013.

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