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Os milionários dos tostões e os pobretanas dos milhões

Descobrimos hoje que os milionários de Portugal são todos os que auferem mais de 600€; no seu desafogo será a eles que se pede que paguem a crise. Aos outros, aos pobretanas que contam sequiosos os seus humildes milhões, pede-se somente uma pequena esmola.

Sendo a vida crivada de uma aleatoriedade de difícil interpretação, espera-se que na constante roleta do dia-a-dia as possibilidades quer do melhor, quer do menos positivo sejam semelhantes.

Limitar estas possibilidades apenas ao pior, é um castigo severo, um cruel delapidador de esperança; assim o pretendem os interesses económicos e a sua ambição em enclausurar expectativas e aspirações em paredes de uma pobreza permanente.

Jogamos diariamente com os créditos que são cada um dos nossos fôlegos; fazemo-lo acreditando que a pobreza de hoje poderá ser a dignidade amanhã, poderá ser a riqueza ou o desafogo.

Os vorazes e insaciáveis cortes salariais viciam o jogo, tornando a cada rodopio o resultado previsível, resultando num empobrecimento inevitável. A pobreza, que nunca deveria ser mais que um momento transitório, uma passagem menos feliz num extenso e rico livro, um período de tormenta numa maresia calma, passa a ser uma definição, um resultado final sem segunda oportunidade ou discussão.

Descobrimos hoje que os milionários de Portugal são todos os que auferem mais de 600€; no seu desafogo será a eles que se pede que paguem uma crise encomendada. Aos outros, aos pobretanas que contam sequiosos os seus humildes milhões, pede-se somente uma pequena esmola, já de si uma verdadeira benesse, não vá fazer falta uma moeda nas suas fortunas de dinheiro, bens e hipocrisia.

Em tempos de perda de direitos, pede-se ao menos o direito de não estar condenado a ser algo. Ser pobre é uma fase e não um estatuto social ou uma característica pessoal. Enriquecer banqueiros e custear devaneios com os escassos recursos de quem com dificuldade se mantém à tona num mar de dificuldades, é condená-los a passar de um momento para uma definição.

Cortar salários em quem aufere 600€ é condenar a vida a definir-se apenas como subsistência, é esquecer a cultura, o lazer, é amputar de qualquer esperança de sucesso o esforço, é castigar o trabalho árduo com uma mão cada vez mais cheia de nada ao final do mês.

Outrora, em negros tempos idos, era o berço que determinava o destino, já em guião impresso, de cada um. A educação, o sucesso, as condições de vida vinham já lacadas junto da certidão de nascimento. Assaltar os salários humildes é recuperar esta tenebrosa filosofia que eterniza a pobreza e o desfavorecimento, deixando para alguns os benefícios e oportunidades pertencentes a todos

O esforço de um país, para o resgatar, tem de ser igual para todos, na medida do que podem. Exigir o impossível é administrar veneno quando já se está doente.

Esquecem os iluminados de lâmpada fundida que empobrecer a população é gerar mais encargos com prestações e apoios sociais. Relembram alguns parasitas de lâmpada sempre acesa que bom mesmo era extinguir a responsabilidade social do Estado.

Trabalhar começa a parecer mais um castigo que uma oportunidade; o esforço compensa apenas para aqueles que desse conceito pouco percebem, para aqueles que nunca necessitaram de empenhar cada gota de suor por merecer mais e melhor. Trabalha-se para subsistir, já sem a perspetiva de uma carreira, sem a ilusão do mérito como uma alavanca de subida no posto, na responsabilidade e no salário.

A condenação perpétua ao empobrecimento é a arma de um neoliberalismo que fomenta o desespero, para que tudo se aceita, qualquer migalha, sem que se questione porque é vedada a oportunidade de ter o pão inteiro. Fugir desta condenação exige determinação, exige unidade e sentido de bem comum para além da individualidade, exige a perceção de que aceitar menos para fazer mais é nivelar por baixo o padrão de tudo o que merecemos.

Sejamos injustos, que haja esforço de todos, até dos pobretanas que no dia-a-dia se enchem de milhões, saídos maioritariamente dos bolsos dos milionários dos tostões, dos burgueses dos 600€ que ousam aspirar a algo mais que subsistir.

Sobre o/a autor(a)

Enfermeiro. Cabeça de lista do Bloco de Esquerda pelo círculo Europa nas eleições legislativas de 2019
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