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Greenwald: espionagem dos EUA pouco tem a ver com terrorismo

Em entrevista à Carta Maior, o jornalista Glenn Greenwald fala sobre o seu trabalho de divulgar as práticas de espionagem dos EUA e garante que, apesar das ameaças, vai publicar todos os documentos que tem em seu poder. Por Eduardo Febbro.
Glenn Greenwald: "Sei que me espiam e monitorizam. Tudo mudou na minha vida. Mas não estou assustado. Não vou parar." Foto de Gage Skidmore

O ex-agente da CIA e da NSA norte-americana Edward Snowden e o jornalista norte-americano Glenn Greenwald acabam de desferir um novo golpe no esquema de espionagem global patrocinado pelos Estados Unidos. O jornal Le Monde publicou a totalidade dos documentos que revelam a amplitude da espionagem dos EUA contra a França. Espionagem massiva de indivíduos, espionagem industrial e económica, nada falta no cardápio. Glenn Greenwald voltou a fazer tremer os alicerces das relações internacionais. Os drones, a luta contra o terrorismo, a nefasta herança da administração do ex-presidente George Bush, as zonas obscuras da administração de Barack Obama e a espionagem globalizada montada pelos Estados Unidos a partir do dispositivo Prisma: Glenn Greenwald conhece esses temas com o rigor e a paixão que lhe conferem o seu compromisso e uma trajetória profissional que vai muito mais além do caso das revelações de Snowden.

Glenn Greenwald é o segundo ator central desta trama de espionagem. É este jornalista do Guardian que, mês após mês, destilou neste jornal o conteúdo do enorme dossier que Snowden lhe entregou em Hong Kong antes de se refugiar na Rússia. Snowden não o escolheu por acaso. Greenwald é um reputado autor de investigações que sacudiram o sistema político norte-americano e o converteram num dos 50 comentadores mais influentes dos Estados Unidos. Aqueles que conhecem o seu nome através de Snowden e do caso da espionagem tentacular do sistema Prisma ignoram a sólida trajetória que o respalda. Advogado de profissão, em 2005 Greenwald deixou a sua carreira de representante de banco e de grandes empresas e lançou-se na defesa dos direitos cívicos, das liberdades públicas e das investigações de fôlego.

Nesse mesmo ano, um caso de espionagem por parte da NSA revelado pelo jornal The New York Times o impulsionou através de seu blog, “How Would a Patriot Act”, que logo se tornará um livro, “How Would a Patriot Act? Defending American Values from a President”. No ano seguinte, este ativista rigoroso publicou um livro feroz sobre a espantosa herança da administração Bush, “A Tragic Legacy: How a Good vs. Evil Mentality Destroyed the Bush Presidency”. Em 2008, publicou outro livro acerca dos mitos e hipocrisias dos republicanos, Great American Hypocrites: Toppling the Big Myths of Republican Politic”, e, em 2012, outra obra sobre a forma pela qual a lei é utilizada para destruir a igualdade e proteger o poder, “With Liberty and Justice for Some: How the Law is used to destroy equality and protect the Powerful”.

Entre um livro e outro, Greenwald realizou investigações explosivas sobre Wikileaks, Julian Assange e o soldado Bradley Manning – o militar que entregou correspondência secreta a Assange. Premiados várias vezes pelo seu trabalho, Glenn Greenwald define o jornalismo de uma maneira militante: “para mim, o jornalismo é duas coisas: investigar factos sobre as atividades de quem está no poder e procurar impor-lhes limites”. Este é o homem a quem, em maio deste ano e logo depois de o Washington Post ter se recusado a publicá-los, Edward Snowden entregou os documentos da abismal espionagem estruturada pela NSA através do dispositivo Prisma com a colaboração de empresas privadas como Google, Facebook, Yahoo, Microsoft e tantas outras.

Glenn Greenwald vive no Brasil há vários anos. O duplo caso Snowden e Prisma mudou muitas coisas na sua vida. O seu companheiro, David Miranda, foi detido e interrogado em Londres durante muitas horas em virtude de uma lei antiterrorista. Ambos sabem que as suas conversas e gestos estão permanentemente vigiados. Adaptaram-se a essa vida sem renunciar a continuar o trabalho de denúncia. Nesta entrevista exclusiva realizada no Rio de Janeiro, para a Carta Maior, Glenn Greenwald revela aspetos inéditos sobre Edward Snowden, conta as dificuldades de sua vida e dá novas informações sobre a nova indústria norte-americana: espionar a cada cidadão do mundo.

Os Estados Unidos argumentam que a espionagem planetária tem como objetivo lutar contra o terrorismo. No entanto, a leitura dos documentos que Snowden lhe entregou não fornece a prova para esse argumento.

Se olharmos os últimos 30 anos e, sobretudo, a partir dos atentados de 11 de setembro, há uma ideia de que os norte-americanos querem aplicar: utilizar o terrorismo mundial para que as pessoas tenham medo de agir com as mãos livres. É uma desculpa para torturar, sequestrar e prender. Agora estão a usar a mesma desculpa para espionar. Os documentos sobre a maneira pela qual os EUA espionam e sobre os objetivos da espionagem pouco têm a ver com o terrorismo. Muitos têm a ver com economia, empresas e os governos, e estão destinados a entender como funcionam esses governos e essas empresas. A ideia central da espionagem é essa: controlar a informação para aumentar o poder dos Estados Unidos pelo mundo.

Nos documentos da NSA há alguns sobre o terrorismo, mas não são a maioria. O gasto de milhões de dólares para coletar toda essa informação contra o terrorismo é uma piada. Espionar a Petrobras, a Al-Jazeera ou a OEA não tem nada a ver com o terrorismo. O governo está a tentar convencer as pessoas de que devem renunciar à sua liberdade em troca de segurança. Tenta assustá-las e fazer crer que sacrificar a liberdade é algo necessário para estar a salvo e protegido das ameaças que vêm de fora.

O passo que Edward Snowden deu ao entregar-lhe os documentos que revelam o modo como Washington espia o planeta inteiro é surpreendente. Como se explica que alguém tão jovem, que fazia parte do aparato de inteligência, opte por esse caminho?

Há exemplos na história de pessoas que sacrificam os seus próprios interesses para pôr fim a muitas injustiças. As razões pelas quais agem assim são complicadas, complexas. Neste caso, há duas coisas importantes: uma é que Snowden valoriza o ser humano e os direitos. Snowden tinha clareza sobre um ponto: ou continuar com esse sistema, perpetuar este mundo destruindo a privacidade de centenas de milhões de pessoas no planeta, ou romper o silêncio e atuar contra esses abusos.

Creio que Snowden comprovou que se tivesse continuado a permitir a existência desse sistema não poderia ter a consciência tranquila para o resto de sua vida. A dor, a vergonha, o remorso e o arrependimento como sentimentos para o resto de seus dias despertavam medo nele. Era muito grave para guardar na sua consciência. Viu que não havia muitas opções e que devia tomar partido.

O outro ponto importante é que Snowden tem 30 anos e a sua geração cresceu com a internet como uma parte central de suas vidas. As pessoas um pouco mais velhas não se dão conta da importância da internet para a existência dessas pessoas. Snowden disse-me que a internet ofereceu à sua geração todo tipo de ideias, campos de exploração, contactos com outras pessoas no mundo e uma capacidade de entendimento inédita. Então decidiu proteger esse património. Não queria viver num mundo onde tudo isso desapareceria, onde as pessoas não pudessem utilizar a internet nunca mais.

Mas Snowden, apesar disso, foi um homem do sistema

Sim, mas era muito jovem quando começou. Tinha 21 anos. Com o correr do tempo foi mudando os seus pontos de vista sobre o governo dos Estados Unidos, a NSA e a CIA. Snowden mudou de forma gradual, progressiva. Começou a dar-se conta de que essas instituições que pretendiam fazer o bem não estavam a fazer o bem, mas sim o mal.

Snowden disse-me que, desde 2008 e 2009, pensava em promover fugas de documentos. Como muitas outras pessoas no mundo, Snowden também pensou que a eleição de Barack Obama iria fazer com que os abusos diminuíssem. Confiava nisso. Pensou que Obama reverteria o processo, que seria diferente e melhor, mas deu-se conta de que não era assim. Essa foi uma das razões. Teve consciência de que Obama não só não resolvia nada, como continuava a perpetuar o império norte-americano.

O poder dos Estados Unidos praticamente não tem limites a partir do controle das tecnologias da informação. Muitos pensam que, em certo sentido, Obama é pior que Bush.

É difícil dizer que Obama é pior que Bush. Não é preciso que Obama diga: espionemos mais. É claro que Obama tem uma parte da responsabilidade no crescimento deste sistema de espionagem. Obama continuou com as mesmas políticas de antes, mas mudou o simbolismo e a imagem. Creio que o escândalo provocado pela fuga destes documentos mudou a visão que as pessoas tinham de Obama. Snowden e eu passamos muito tempo em Hong Kong a falar sobre o que iria acontecer com as revelações. Não podíamos calcular as consequências. Tínhamos consciência da importância, mas pensávamos que poderia haver uma reação apática. Mas desde que se publicou a primeira história o interesse não parou de crescer.

Isso está a converter-se num travão para que os governos continuem a abusar do seu poder, para que continuem a atuar em segredo. Mas há indivíduos como Snowden, como o soldado Bradley Manning, ou entidades como a Wikileaks que trazem a informação à luz. Julian Assange é um herói pelo trabalho que fez com a Wikileaks. Em muitos sentidos foi ele que tornou isso possível, foi Assange que expôs a ideia segundo a qual, na era digital, era muito difícil para os governos proteger os seus segredos sem destruir outra privacidade. Essa é a razão pela qual o governo dos EUA está em guerra contra as pessoas que fazem isso: quer assustar outros indivíduos que estejam a pensar em fazer o mesmo no futuro. Eu apoiei-me na coragem de Snowden para publicar esses documentos. Edward Snowden é hoje uma das pessoas mais procuradas do mundo. É possível que passe os próximos 30 anos na cadeia. O que ele fez é uma das coisas mais admiráveis que já vi alguém fazer em nome da justiça.

Os governos de Argentina, Brasil e de outros estados no mundo estão a pressionar para romper o cerco da espionagem e o controlo quase absoluto que os Estados Unidos têm sobre a internet. Qual é a solução, na sua opinião?

Eu creio que a solução seria criar um lóbi entre os países, que os países se unam para ver como construir novas plataformas para a internet que não permitam que um país domine completamente as comunicações. O problema reside também em que cada país começa a ter mais controlo sobre a internet e isso pode fazê-los cair na tentação de fazer o mesmo que os Estados Unidos: tentar monitorizar e utilizar a internet como uma forma de controlo. Há uma consciência real de que Argentina e Brasil estão a construir uma internet própria, assim como a União Europeia, algo que até agora só a China tinha feito. Mas o risco está em que esses governos imitem aos Estados Unidos criando os seus próprios sistemas não para permitir a privacidade de seus cidadãos, mas sim para comprometê-la. Isso é um perigo.

É importante ter a garantia de que o controlo dos Estados Unidos sobre as comunicações não termine numa transferência a outros poderes. Li um documento no New York Times que mostrava o imenso poder e influência que os EUA têm graças ao controlo dos serviços de internet. De facto, os Estados Unidos inventaram a internet. Muitos países deram-se conta de que não serão capazes de garantir a sua confidencialidade se seguirem usando sistemas abrigados em servidores norte-americanos. Por isso estão a pensar em como desenvolver sua própria internet independente.

No Brasil, por exemplo, a primeira reação do governo quando se soube da espionagem dos Estados Unidos consistiu em propor seriamente a criação de uma internet própria. E creio que outros países vão começar a fazer o mesmo, ou seja, criar redes que não passem pelos Estados Unidos nem tampouco que os dados fiquem armazenados em servidores de empresas norte-americanas. Creio que especialmente na Europa, onde há recursos financeiros para tanto, isso será proposto seriamente. Agora, é claro, a Europa não é muito dada a ser independente dos EUA. Ela gosta de ser tratada como um adolescente, algo assim como uma colónia com direitos que caminha ao ritmo do tambor dos EUA.

A presidenta Dilma Rousseff propôs a criação de um órgão independente de controlo da internet. Acredita que essa é uma ideia viável?

Não estou seguro de que isso possa resolver o problema. A ideia da internet é de uma irrestrita e não controlada forma de comunicação entre os seres humanos para compartilhar informações sem regulações. Então, não sei se é uma boa ideia colocar a internet sob o controlo de organismos internacionais. Pode ser que seja pior assim. Quando foi criada, a internet não estava sob o controlo de nenhum governo e cada um podia usá-la como bem quisesse. Esse é o motivo pelo qual ela se converteu em uma ameaça. Creio que esse é o modelo que devemos recuperar.

Você é hoje um homem ameaçado. A sua vida mudou muito desde que colocou em circulação os documentos de Snowden?

Sim, bastante, muito stress, é muito difícil todo o tempo. Os meus advogados dizem-me que é perigoso para mim regressar aos Estados Unidos, perdi a minha privacidade individual. Sei que me espiam e monitorizam. Tudo mudou na minha vida. Mas não estou assustado. Não vou parar. Vou publicar todos os documentos que tenho em meu poder.

Entre os atores ocidentais mais questionados está a União Europeia. A sua reação, após as revelações de Snowden, foi de uma tibieza impressionante.

A debilidade e a covardia da União Europeia nunca me surpreenderam, Creio que o que podemos esperar da Europa é que seja tão débil e covarde como qualquer outro país. Foi surpreendente ver como aparentaram indignação com as revelações de Edward Snowden para logo em seguida se fazerem de desentendidos. É muito perigoso que exista um mundo onde um só país pode ditar o que se deve fazer. Os governos têm de ter coragem. O governo do Equador foi muito valente quando deu asilo a Assange na sua embaixada de Londres. Foi algo muito elogiável. O que o Equador fez foi proteger os Direitos Humanos, não um jornalista ou um divulgador de documentos.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

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