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Despojados

O novo plano de austeridade do Governo traz apenas a velha receita da austeridade: mais dificuldades para as famílias, mais ataques aos trabalhadores e pensionistas, mais cortes nos serviços públicos essenciais.

Despojados parece ser hoje o adjetivo que melhor se adequa aos portugueses. Despojados de salário digno, de educação, saúde, emprego, qualidade de vida, despojados de dignidade. Pior, despojados de esperança.

O novo plano de austeridade do Governo traz apenas a velha receita da austeridade: mais dificuldades para as famílias, mais ataques aos trabalhadores e pensionistas, mais cortes nos serviços públicos essenciais.

Entrámos numa espiral de cortes, contenções e sacrifícios que não vai acabar. Porque é disto que vive o capitalismo. Da busca de cada vez mais lucro e mais depressa. E os barões do capitalismo não vão recuar enquanto não garantirem as condições ótimas à manutenção desta máquina de lucro: mão de obra controlada, obediente, disponível para ser sujeita a qualquer atropelo sem resistência ou protesto e sobretudo que represente o mínimo de custo e o máximo de ganhos.

O aumento das horas de trabalho, o corte nos salários ou o roubo dos subsídios são os meios que têm utilizado para baixar o valor do trabalho. O que antes valia 10€ por hora hoje vale 5€ e amanhã valerá com sorte apenas um prato de comida. Já não são raros aliás, os casos de trabalho em troca de comida.

“Nesta nova fase da vida, Álvaro arranjou um emprego, que o mantém ocupado, embora sem salário: é pastor. Todas as manhãs leva um rebanho de 60 cabras e ovelhas a pastar num descampado ali perto, junto ao Rio Tinto, em S. Pedro de Campanhã. Como pagamento, o dono do gado dá-lhe almoço, a ele e ao outro pastor, o Tó Zé, de 34 anos, que vive por ali, numa vacaria abandonada. (Jornal Público).”

“Amélia Santos oferece-se para trabalhar a cuidar de crianças e idosos em troca de comida (SIC Notícias)”

“António Santos ficou desempregado, sem direito a subsídio. O dinheiro que juntou a trabalhar na construção civil e na restauração ainda chegou para pagar cinco meses de renda. Sem rendimentos e sem apoios, acabou por perder o apartamento. Nos melhores dias, dorme no sofá de amigos. Nos piores, numa cabana de cartão. "Faço qualquer coisa para não morrer à fome. Preciso mesmo de trabalhar nem que seja apenas em troca de um sítio para dormir e de comida", suplica o jovem que concluiu o curso profissional de comércio, equivalente ao 9 ano de escolaridade. Foi isso mesmo que escreveu nos anúncios que colocou em vários sites de classificados. Apesar de aceitar trabalhar de borla, não obteve qualquer resposta.” (Ordem Advogados.pt)

Estes casos, perdidos no meio de tantos outros representam o desespero gritante de tantos portugueses que engolindo a dignidade e escondendo a humilhação já apenas tentam sobreviver. Forças para resistir já não têm. A luta pela sobrevivência domina toda a sua existência. É assim que todo um povo é vergado e um povo despojado é a ferramenta ideal para o crescimento e fortalecimento de qualquer sistema capitalista. Só um povo despojado de esperança, de consciência coletiva e de capacidade de resistência permite a acumulação de cada vez mais lucro. Por isso também a estratégia do Governo tem sido a de colocar portugueses contra portugueses. Os reformados contra os jovens e os jovens contra os reformados, os funcionários públicos contra os privados e estes contra aqueles. A estratégia não é nova mas em momentos de crise intensa ganha sempre um novo fôlego. A luta quotidiana por um emprego, pela sobrevivência dos filhos e da família, quantas vezes por um simples pedaço de pão, relega para o plano da utopia o sentido do coletivo. Um povo dividido e zangado entre si dificilmente se encontra em terreno comum e se apercebe que com maior ou menor diversidade se constitui na realidade como uma mesma classe desconhecendo a força dessa consciência e dessa união.

O cenário é dantesco e a tarefa de revertê-lo hercúlea. Mas desistir não é opção. Não pode ser opção. Não pode ser este o legado que deixamos. Uma vida escrava ao serviço do capitalismo. A solução só pode ser a de fortalecer a luta, diversificá-la, intensificá-la, chamar a ela todas e todos os que ainda têm alguma força para resistir. Chamar o vizinho, a avó, o colega de trabalho, a professora da escola, chamar o eletricista, a senhora da mercearia, o dentista, chamar os amigos e a família, chamar todos e cada um deles. Porque a solução só pode estar na união.

Sobre o/a autor(a)

Feminista e ativista. Socióloga.
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