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Lampedusa: só os mortos podem ficar

Enquanto a Europa se recusar a tratar o afluxo, com a dimensão humanitária que ele comporta, e se negar a alterar radicalmente uma política de mercantilização do imigrante, continuaremos a presenciar, envergonhados, ao louvar dos mortos e ao massacre diário dos vivos.

"Quão grande precisará ser o cemitério da minha ilha?". Foi esta a pergunta dirigida em carta à Comissão Europeia por Giusy Nicolini, governante de Lampedusa, a pequena ilha ao largo da Sicília que foi, uma vez mais, envolvida por um mar de mortos. No amanhecer do último dia quatro, uma embarcação oriunda da Tunísia com 500 pessoas a bordo incendiou-se. O fogo, ateado numa tentativa de sinalizar a vida à deriva no mar, propagou-se e mais de 300 dos tripulantes, na sua maioria oriundos da Somália e Eritreia, morreram pelas chamas e pela força das águas. As labaredas da embarcação (fundeada a menos de uma milha da costa) só foram assinaladas pelas autoridades costeiras duas horas depois.

Vito Fiorino, um dos pescadores que ajudou a recolher os primeiros dos 155 sobreviventes da tragédia, denunciou o comportamento da guarda costeira, “Quando o meu barco estava já cheio de imigrantes e pedimos aos agentes para os acolherem no barco patrulha disseram-nos que não era possível, que tinham de respeitar o protocolo.” (El País). Há igualmente relatos de pescadores que se terão recusado a ajudar os náufragos. Em 2002, por força dos então aliados de Berlusconi, os xenófobos da Liga do Norte, a legislação italiana passou a punir o cidadão que preste qualquer ajuda à entrada de imigrantes não documentados.

O impacto público da tragédia resultou no decretar de um dia de luto nacional. As autoridades da capital promoveram uma vigília pelos mortos e até os jogadores do AC Roma entraram em campo com uma t-shirt alusiva ao caso – “a vida é um direito de todos #Lampedusa”. Para tal contribuiu também a ação do novo Papa, que em julho visitou a ilha para “chorar os mortos que ninguém vê”. O que Francisco não disse é que o “centro de permanência temporária” da ilha é gerido pela Confederação Nacional de Misericórdias da Igreja Católica. O Miguel Portas esteve no centro em 2005, à saída disse que o local se assemelhava a uma prisão.

É preciso referir que o Governo de Enrico Letta fez mais do que decretar o luto nacional. De forma inédita, o Primeiro-Ministro concedeu, a título póstumo, a cidadania italiana a todas as vítimas mortais da tragédia. Todos os mortos poderão ser enterrados no solo italiano a que tanto ansiaram chegar em vida. No mesmo dia, a justiça italiana acusava os 114 adultos sobreviventes pelo delito de imigração ilegal, que pode resultar numa multa de 5 mil euros e a expulsão do país. Na Europa fortaleza, só os mortos podem ficar.

A política da vergonha

Nas últimas duas décadas, vinte e cinco mil pessoas perderam a vida na tentativa de cruzar o mediterrâneo. Só Lampedusa, ilha com 6 mil habitantes, recebeu 8 mil desses mortos. A grande rota de emigração africana, seguida por aqueles que procuram nos países europeus uma oportunidade para uma vida possível, foi agora adensada pelos fluxos de refugiados causados pelos conflitos do corno e norte de África e do médio oriente. A Líbia, pela grande quantidade de trabalhadores estrangeiros – até à queda de Kadafi o país teria cerca de um milhão de imigrantes, sobretudo tunisinos e egípcios – contribuiu em particular para esse aumento.

Em Lampedusa não estamos, portanto, perante uma súbita tomada de consciência ética das lideranças europeias. Lampedusa é uma tragédia quotidiana que transbordou nos seus limites, e que nos mostra que a elite europeia tem agora dificuldade em lidar com as reverberações das suas próprias ações. Letta reclama medidas concertadas para conter o fluxo da Líbia, principal problema segundo ele. Agora que a Itália não pode mais se valer do acordo celebrado com Kadafi, que permitia o repatriamento imediato de Líbios, Letta vem cobrar a fatura, a Itália não vai pagar sozinha a confusão criada pela Nato. E a própria França, principal instigadora do putativo bombardeamento à Síria, maior foco de refugiados da região, avisa que poderá levar o tema da imigração ao próximo Conselho Europeu. Afinal de contas, no Médio Oriente, o futuro político pode acontecer já amanhã.

Entretanto surgiu Barroso, que visitou Lampedusa nesta quarta-feira, levando a preocupação da Comissão com os imigrantes e com os habitantes de Lampedusa. Não que seja uma novidade, uma vez que um documento do Conselho Europeu de 2011 reconhecia já frontalmente o fardo da ilha de Lampedusa – “os eventos recentes [mais mortos] irão, inquestionavelmente, ter consequência irreparáveis para os habitantes de Lampedusa. A época turística de 2011 será um desastre. Enquanto 2010 registou um aumento de 25% do número de turistas, em 2011 todas as reservas adiantadas foram já canceladas”. Os mortos, como se sabe, não veraneiam.

Resta dizer que do Governo português, sobre este caso, sabemos duas coisas. Uma é que Portugal acedeu à solicitação da Agência Frontex e enviou um aparelho C-295M com militares portugueses para participar na operação de fiscalização dos mares ao sul de Lampedusa. Com olhos do mundo postos na pequena ilha, a Europa não quer correr o risco de uma nova tragédia e por isso convém apertar a vigilância. A outra é que PSD e CDS dificilmente se baterão na Europa por uma alternativa a esta política da vergonha; enquanto a Europa se recusar a tratar este afluxo com a dimensão humanitária que ele comporta, evitando assim a todo o custo a abertura de um corredor humanitário, e se negar a alterar radicalmente uma política de mercantilização do imigrante que conduziu ao fechamento do território, continuaremos a presenciar, envergonhados, ao louvar dos mortos e ao massacre diário dos vivos.

Esse é um embate que temos de escolher fazer, pois como bem escreveu Pedro Tamen, “só os mortos, invisíveis, letais, pesados entes, nos disputam a vida”. Uma disputa pela vida, nem mais, que se perde em cada morte nos mares de Lampedusa.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, dirigente do Bloco de Esquerda e ativista contra a precariedade.
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