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Ou novamente o povo, por Ana Luísa Amaral

Queria encontrar uma palavra que pudesse resumir o meu povo aviltado, escorraçado, em nome de lucros fáceis, de escravidões a interesses pardos.
Foto de Paulete Matos

As palavras são propósitos, as palavras são mapas.

Adrienne Rich

 

Queria encontrar uma palavra que falasse de nós, deste nosso tempo feito de descalabro, das profundas, terríveis desigualdades instaladas, tão mais chocantes quanto a seu lado se invoca o sacrifício e razões económicas em cifradas linguagens e em constantes referências às obrigações de dívidas que, como povo, não fizemos; tão mais chocantes quanto nos passam uma ideia mentirosa de futuro. Essa palavra havia de falar do futuro que não chega, nem nunca chegará se o trilho continuar a ser o mesmo, e do presente estragado, e do passado de há quarenta anos, cheio de cravos e sonhos, do qual propositadamente se apagaram os cheiros e as cores. Queria falar da esperança verdadeira que vai sendo destruída pelas falsas esperanças. E dos pobres cada vez mais pobres.

Sobretudo, queria uma palavra que fosse para além da descrição deste estado de coisas, que conseguisse expressar a indizível brecha, o abismo entre a promessa e o seu cumprimento, entre o que foi escrito na Constituição, em realismo utópico e por isso possível da visão democrática, essa ideia assente numa cidadania de liberdade e iguais direitos, e o contínuo desrespeito por esses mesmos direitos e essa mesma liberdade. Uma palavra que falasse do engano na desfaçatez. Das excepções àquele que devia ser um estado de direito. Da torção dos discursos, dos desvios continuados à verdade. Queria muito encontrar uma palavra que denunciasse esta desrazão: de como dar a palavra deixou de fazer sentido e de significar compromisso.

Queria encontrar uma palavra que pudesse resumir o meu povo aviltado, escorraçado, em nome de lucros fáceis, de escravidões a interesses pardos. Uma palavra que falasse do pão e da dignidade que roubam ao meu povo; e que, ao mesmo tempo, mostrasse o perigo cada vez maior que corre a ideia de representação. Uma palavra que, por outras palavras, falasse assim: “Os governantes nada mais são que representantes do povo. Se, ao abrigo do seu estatuto de governantes, adquirem benesses, trocam favores, se movem nas zonas cinzentas da desconfiança e da ausência de transparência, então deixam de representar esse povo e perdem o direito de o representar. E o povo tem, por sua vez, o direito de exigir que desistam de o fazer. O mesmo é dizer que o povo tem o direito de intimar a esses governantes que se demitam. E tem até o direito de exigir que eles sejam, caso seja o caso, levados à justiça”.

Queria uma palavra assim: que descrevesse este pântano de corrupção, paranóia, inverdade, que acusasse esta guerra sem armas de fogo, mas servida pelas armas da intimidação e do embuste. Uma palavra que, depois de dita e usada, recordasse que a insurreição se justifica quando o bem comum é, como está a ser hoje, ameaçado de morte, quando o povo é virado contra o povo, e que há momentos em que só a desobediência pode ser um antídoto para a crueldade intolerável e para a barbárie.

Não tenho essa palavra. Tenho só esta caneta. E a obrigação de não me calar, uma obrigação que me foi dada por habitar um lugar a que todos, num estado de direito, deveriam ter tido direito. Porque tenho, como alguns, alguma voz, da qual não me devo nem quero esquecer. Porque há aqueles que a não têm. Ela é quase inaudível quando pronunciada pelos idosos que encontro ao fim do mês no posto de correios ao pé da minha casa, a levantar a reforma, em resposta ao funcionário que conta “duzentos e vinte e oito, duzentos e vinte e nove, duzentos e trinta euros e quarenta, e cinquenta cêntimos”. A mão estende-se, conta as notas, ouve-se o agradecimento “muito obrigada, boa tarde”. Só isso se ouve da voz dessas e desses sobreviventes. Que palavra para descrever isto? Que palavras para falar das palavras oficiais e arrogantes sobre a urgência do sacrifício?

A palavra que eu queria, que condensaria o que está para lá da afronta que diariamente nos é lançada, o que está para lá do insulto à nossa capacidade de pensar e à nossa dignidade, o que está para além da desvergonha, talvez fosse a mais simples, como o mundo e a vida poderiam ser. Se a encontrasse, talvez ela me servisse de mapa. Ou de bússola para um mundo de todos.

Mas não tenho essa palavra. Só esta certeza da importância dos outros ao meu lado. Só as suas vidas e o dizer das coisas, que ao nosso lado, e ainda que dentro do silêncio, gritam. E gritam –

Artigo de Ana Luísa Amaral, publicado no jornal “Público” de 15 de Setembro de 2013

Sobre o/a autor(a)

Poeta. Professora universitária na Faculdade de Letras do Porto
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