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“Há esperança de que apareça uma alternativa de esquerda na Europa”

De volta ao Brasil, onde atuou politicamente e trabalhou como jornalista, para lançar o seu livro “O Inferno de Outro Mundo”, Luís Leiria, editor do portal português Esquerda.net, “combina e recombina memórias” sobre eventos como a Revolução dos Cravos e faz projeções sobre as distopias na Europa pós-crise em nove contos de ficção. Por Maurício Thuswohl, do Rio de Janeiro, publicado na Carta Maior.
Foto de Paulete Matos.

Enquanto bebia um cappuccino à espera do entrevistado, este repórter, que já é experiente, experimentava desta vez uma sensação diferente. O motivo da entrevista com o jornalista português Luís Leiria é o seu livro, “O Inferno de Outro Mundo”, que está a ser lançado no Brasil pela Editora Sundermann, mas o que estava para acontecer era o reencontro com um velho amigo, separado por pelo menos duas décadas. Após participar ainda adolescente da Revolução dos Cravos, Leiria veio viver no Brasil, onde por um tempo foi militante da Convergência Socialista (atual PSTU), organização na qual eu também atuei no movimento estudantil, nos anos 80. A amizade vem de lá, mas as coincidências continuaram. Mais tarde, o jovem quadro português brilhou na editoria de Internacional do Jornal do Brasil, onde eu também viria a trabalhar como jornalista. Em seguida, Leiria viveria no seu país a experiência com a media alternativa de esquerda.

Já de volta a Portugal, na segunda metade dos anos 90, Luís Leiria continuou a sua atuação política e profissional. No xadrez da política portuguesa, passou a integrar o Bloco de Esquerda. Na seara profissional, desde 2006 está à frente de uma das mais bem sucedidas iniciativas para tentar romper o domínio da imprensa conservadora em Portugal, o portal de notícias Esquerda.net, que pertence ao Bloco de Esquerda, mas inaugurou uma forma de tratar a notícia completamente diferentemente dos órgãos de informação partidária tradicionais. O Esquerda.net é uma publicação parceira da Carta Maior, que publica matérias produzidas pelo portal de notícias português.

Agora, o novo desafio de Leiria é realizar o antigo sonho de ingressar no mundo da literatura. Após anos a adiar projetos nesse sentido, começou finalmentea escrever há três anos e agora lança o seu primeiro livro. Composto por nove contos, com temas variados que passam pela Revolução dos Cravos (que ele viveu com 17 anos) e pela sua estadia no Brasil e se concentram em temas como o fantástico e as distopias, “O Inferno de Outro Mundo” já teve o seu lançamento em São Paulo no dia 10 de setembro e será lançado no Rio de Janeiro nesta quarta-feira (18), às 19h, na Livraria Antonio Gramsci (ao lado do Amarelinho da Cinelândia). Leia a seguir a íntegra da entrevista (ou da conversa entre dois amigos jornalistas que há muito não se viam) concedida com exclusividade à Carta Maior:

Quando decidiu finalmente escrever ficção?

Durante muito tempo, o que eu fiz foi jornalismo. Mas, há uns três anos eu comecei a não adiar mais o velho sonho de entrar no ramo da literatura, quer dizer, de começar a escrever todas aquelas coisas que eu tinha a intenção de fazer e ia sempre adiando, adiando, adiando. Houve um dia em que eu disse a mim próprio: tenho que começar agora, senão depois será tarde demais. E assim, pus-me a escrever. O conto é uma modalidade que eu admiro muito e do qual sou grande fã. É uma modalidade também que, infelizmente, em alguns países não é muito conceituada. Mas, eu desde adolescente adorava contos. No Liceu, eu cheguei a ter o apelido de “Luís Aleph” porque andava sempre com os contos do [Jorge Luís] Borges. E também é mais fácil escrever contos quando temos outras atividades e não podemos ter uma dedicação exclusiva à literatura. A atividade jornalística é sempre muito exigente.

Como surgiram os contos que formam o livro?

Eu fui escrevendo e, quando tinha já um volume grande de contos, fiquei a debater-me sobre como iria organizar o material para fazer um livro. Os contos que estão agora publicados são apenas uma pequena parte. No início, eu tinha pensado em publicar só contos fantásticos e distopias, ou seja, histórias que projetam realidades opostas a utopias. Ou utopias ruins, digamos assim. Era isso o que eu estava a pensar, mas então a editora no Brasil perguntou-me: “mas Luís, e sobre a Revolução dos Cravos, não vai publicar nada?”. E eu, de facto, tinha contos passados nesse período e comecei a achar que no Brasil realmente poderia haver alguma curiosidade sobre o assunto. Então, passei a ver o livro de outra forma, admitindo que iria publicar contos que tinham a ver com a Revolução dos Cravos, que foi a experiência mais impactante da minha vida quando eu tinha 17 anos. Depois, fui ver que havia pelo menos um conto que era passado aqui no Brasil, numa grande empresa onde trabalhei. Não fazia muito sentido não publicar esse conto. De forma que acabei por chegar a uma seleção de contos muito variada que tem em comum uma coisa, que é a combinação e recombinação de memórias. Eu gosto muito de uma citação que é atribuída ao Roberto Bolaños, a quem eu admiro muito, que diz, evidentemente com algum exagero, que para escrever literatura não é preciso imaginação, basta memória, e que todos os livros são combinações de memórias. Esse livro é um pouco isso, o seu fio condutor são as memórias.

Ainda muito jovem, viveu a Revolução dos Cravos, impregnada de belíssima utopia. Depois, militou no trotskismo e na IV Internacional, também um caldeirão de utopias. Como é agora escrever sobre distopias?

Os contos das distopias, evidentemente, têm muita influência da situação que se vive atualmente na Europa. Quando eu retornei a Portugal, o país estava num período de apogeu, de crescimento, de auto-estima elevada. Tivemos a Expo-98 e, logo a seguir, o Prémio Nobel do [José] Saramago. Portugal estava na moda e toda a gente afluía a Portugal. Não existia desemprego, pelo contrário, existiam os migrantes de outros países que procuravam emprego em Portugal. Estava tudo maravilhoso, mas, de repente, tudo mudou. A situação que se vive hoje no país é um contraste completo: Portugal é um dos países da Europa com maior perda de poder de compra e maior desemprego, com maior aumento de impostos e encerramento de empresas. Uma situação realmente terrível. Então, a distopia é andar na rua e começar a ver coisas que já não via há muito tempo em Portugal, como, por exemplo, mendigos, pessoas sem abrigo. A comparação com a crise de 1930 é evidente. Além disso, começaram a surgir – em Portugal, felizmente, ainda não – movimentos de extrema-direita a combater a imigração. Tudo isso levou-me à escrita destas distopias, que, evidentemente, são projeções de futuro como outras quaisquer, para as quais eu procurei inspiração nas grandes distopias. Por isso é que o conto que dá o título ao livro se chama “O Inferno de Outro Mundo”, que é inspirado numa citação do Aldous Huxley, que é um autor pelo qual eu tenho uma admiração enorme.

A esquerda na Europa dá sinais de ter respostas concretas para a crise? Para evitar o caminho das distopias?

Depende o que consideramos esquerda. O que eu posso dizer é que há esperança de que apareça uma alternativa às opções tradicionais de esquerda que ultimamente tiveram uma influência enorme na construção do estado de bem estar social europeu e que deitaram tudo isso fora e abraçaram o neoliberalismo. Acho que há um movimento neste sentido que é ainda incipiente, mas que já tem alguma força e em alguns países, como a Grécia, onde a coligação de esquerda esteve à beira de ganhar as eleições. O Syriza era uma formação que tinha 5% dos votos, mas, diante daquela crise enorme, tornou-se a maior formação de esquerda hoje no país e por pouco não ganhou as eleições. Isso evidentemente aponta no sentido de uma esperança, e é necessário que isso apareça, se consolide e se desenvolva, pois a alternativa da chamada velha esquerda está cada vez mais complicada. Muita gente teve esperança com a eleição do François Hollande na França, mas agora vemo-lo com uma retórica de falcão, belicista, o que é uma coisa absolutamente inacreditável.

No caso específico de Portugal, existe uma saída à esquerda?

Eu espero que sim. Eu acho que ela é muito necessária. Eu faço parte de uma organização, que é o Bloco de Esquerda, que tem vindo a propor a formação de um governo de esquerda como alternativa ao governo da direita que está hoje em dia a conduzir uma política de chamada austeridade, mas que, na verdade, é de destruição do estado de bem estar social e de imposição de uma política recessiva brutal. Se esse governo de esquerda se vai formar ou não, evidentemente não depende apenas do Bloco de Esquerda. Depende de alguns setores significativos – e, aliás, maioritários – do povo português abraçarem uma alternativa dessas.

O Brasil viveu recentemente manifestações com forte presença da juventude. A juventude portuguesa, mesmo com a crise, continua a sonhar com um mundo melhor?

Os sonhos continuam muito vivos, e isso deixa-me muito feliz. Ultimamente, Portugal viveu uma série de grandes mobilizações organizadas de uma forma que não passou pelas formações políticas tradicionais. Formaram-se plataformas. A primeira das quais tinha um termo que no Brasil talvez seja pouco compreensível, foi a manifestação da “juventude à rasca”, que eu poderia traduzir por “juventude aflita”. Foi uma mobilização organizada pela internet, pelo Facebook, em que todos, inclusive os seus organizadores, quando chegou o dia e a hora marcada, não sabiam se iria ter 20 pessoas ou 200 ou duas mil, e acabou por ter 200 mil. Depois disso, surgiram outras plataformas, como, por exemplo, uma que se mantém até hoje e que se chama “Que se lixe a Troika!”, em referência aos três credores da dívida portuguesa, isto é: Banco Central Europeu, União Europeia e FMI. Por causa da crise da dívida, nos últimos anos só se fala em Troika em Portugal. Houve mobilizações de muitas centenas de milhares de pessoas sob essa bandeira, onde a juventude tem um papel fundamental. No que diz respeito à busca de uma vida melhor, à busca de utopias pela juventude, eu estou bastante otimista.

E em relação ao Brasil? Passada uma década, após a alegria inicial com a vitória de Lula, alguns setores da esquerda acusam o PT de ter cedido demasiado espaço à direita por conta de alianças como, por exemplo, a firmada com o PMDB. Como vê o cenário brasileiro? Como pensa que a esquerda europeia vê a esquerda brasileira?

Eu não posso falar pela esquerda europeia, posso falar por mim. Evidentemente que a eleição do Lula e a subida ao poder de muitos governos que se reivindicam de esquerda na América Latina mostram uma viragem e trazem ao observador europeu uma esperança. Eu sou da geração que olhava para a América Latina e via ditaduras, tortura, prisões, etc. Portanto, a visão agora é diferente e tem que se reconhecer isso. Posto isso, há certo tipo de política que foi levada pelo governo Lula que a mim causa alguns problemas. Do ponto de vista da experiência europeia, as alianças amplas com interesses que são antagónicos ou que deveriam ser antagónicos, e particularmente a ilusão de que é possível promover uma política que agrade ao sistema financeiro e beneficie o conjunto da população e traga melhorias a todo o povo, mostrou-se, a meu ver, uma utopia irrealizável. Acho que mais tarde ou mais cedo isso se vai demonstrar, isto é, vai se transformar numa distopia.

Fale um pouco sobre a experiência jornalística de trabalhar como editor do portal de notícias Esquerda.net.

O Esquerda.net foi uma aposta de certa forma inovadora, creio eu, feita pelo Bloco de Esquerda. Em vez de se fazer um órgão que seria o porta-voz oficial do Bloco ou algo assim, a aposta foi fazer um portal de informação alternativa. Isso quer dizer que a informação é tratada como informação e rigorosamente separada da opinião. Isto é, o leitor pode encontrar lá informação 'não editorializada', diferente do que costumam ser os órgãos partidários, que têm todos os artigos 'editorializados'. Nós temos uma separação clara entre o que é informação e o que é opinião. E, mesmo na opinião, procuramos ter uma postura razoavelmente aberta. Nós organizamos, por exemplo, muitos dossiers, nos quais, na medida do possível, procuramos mostrar várias posições sobre um determinado tema para realmente fazer um portal de informação alternativa o mais aberto possível e que possa ser lido por toda gente. Toda a gente, bem entendido, que esteja a procurar informação de esquerda, afinal o portal chama-se Esquerda.net (risos).

A experiência tem sido extremamente gratificante, o nosso público tem crescido muito e nós começamos a disputar – na internet, evidentemente - com os portais de informação da imprensa mainstream, e isso tem sido muito gratificante. Eu estou no Esquerda.net desde o início, nós já temos mais de sete anos. Uma curiosidade é que começamos, particularmente a partir de julho, apesar de o Esquerda.net ser um portal marcadamente português, a ter muita procura, muitos acessos do Brasil. Isso talvez não tenha tanto a ver com a informação portuguesa, mas tenha a ver com a informação internacional, com as traduções que fazemos. E também, é claro, pelas parcerias. Acho que a parceria estabelecida no Brasil mais antiga que temos é com a Carta Maior, que para nós tem sido uma experiência excelente.

Quais os teus próximos passos no mundo da literatura?

Estou a trabalhar agora numa novela. A língua portuguesa costuma distinguir entre conto, novela e romance, sendo que a definição de novela é, digamos, complicada. Novela seria um romance pequeno. O nome provisório desta novela que estou a escrever é “Fotógrafa de Rua”, e ela nasceu de um episódio real passado em Lisboa, aparentemente sem importância, mas que começou a crescer e começaram a surgir personagens. Na verdade, começou a ser escrito como conto, e agora acho que se vai transformar na minha primeira novela. Espero bem que sim. Ainda não a terminei, mas, passada esta fase em que tenho que me concentrar no lançamento de “O Inferno de Outro Mundo”, pretendo terminá-la.

Rio de Janeiro

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22723

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