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Brasil (I): “O Gigante acordou”?

Ao contrário da tendência defensiva presente nas mobilizações europeias anti-austeridade, que aconteceram num contexto de ataque e de deterioração das condições económicas e salariais, os protestos no Brasil mostraram que é possível construir movimentos aguerridos num cenário de forte crescimento económico associado à distribuição de rendimento. Artigo de Adriano Campos, em São Paulo.
Foto Grmisiti/Flickr

Conta-nos a história que em 1880, na fase final do reinado de Dom Pedro II – filho do nosso Dom Pedro IV, que meio século antes rumara a Portugal para combater o irmão, Miguel, e as tropas absolutistas – o Rio de Janeiro foi palco de uma revolta popular que pôs a cidade a ferro e fogo. A Revolta do Vintém, como ficou conhecida, foi desencadeada pelo anúncio de um imposto de 20 réis (ou 1 vintém) na passagem do bonde, meio de transporte que ainda funcionava com tração de burros e mulas. A violência e as mortes provocadas pela revolta resultaram na retirada do imposto e no abalo do regime imperial brasileiro. Mais de um século depois, o Brasil não é mais o país pós-colonial que assistiu à revolta.  Transformou-se na sétima maior economia do mundo e na nação de maior relevo político do contexto latino-americano, mas o certo é que o aumento de vinte centavos (7 cêntimos) no preço da tarifa dos autocarros urbanos, em junho deste ano, desencadeou a maior vaga de protestos e mobilizações do seu período democrático.

 

“Não é pelos vinte centavos.”

Antes das grandes manifestações de junho, já algumas cidades tinham sido palco de protestos contra o aumento das tarifas. Em Natal, Porto Alegre e Goiânia registaram-se, ainda durante o mês de maio, confrontos entre a polícia e grupos de estudantes, resultando em alguns autocarros incendiados. Nesse mesmo mês, Fernando Haddad, Prefeito de São Paulo eleito pelo Partido dos Trabalhadores (PT), anunciou a subida da tarifa dos autocarros de 3,00 para 3,20 reais[1] (1,10 €). Estima-se que 4,5 milhões de pessoas utilizem diariamente os autocarros da cidade. As primeiras manifestações contra o aumento já em vigor começaram na primeira semana de junho, convocadas através da internet pelo Movimento Passe Livre (MPL)[2], e foram ganhando corpo à medida que se espalharam a outras cidades.  A forte repressão policial a estas manifestações (com uso indiscriminado de gás pimenta e balas de borracha), inicialmente apoiada pelo discurso conservador dos principais jornais e televisões, que classificava os manifestantes de “vândalos” e “arruaceiros”, serviu também como mote ao aumento dos protestos, que atingiram o seu pico na segunda quinzena do mês.

Segundo os dados oficiais, em média 32% do orçamento das famílias brasileiras é despendido em transporte. Outros estudos apontam que 25% da população urbana chega a ficar de 3 a 4 horas diárias dentro de um autocarro nas deslocações entre a casa e o trabalho. Esta realidade espelha o verdadeiro flagelo do transporte num cenário de expansão urbana descontrolada.  A força do Movimento Passe Livre, que rapidamente se multiplicou em comités por dezenas de cidades, reside, sobretudo, na sua direção estudantil e na forma ofensiva como defende a “tarifa zero” – acesso gratuito ao sistema de transporte financiado por uma tributação municipal progressiva. A sua capacidade de mobilização ficou comprovada no dia 17 de Junho, quando 300 mil manifestantes em 12 cidades exigiram a retirada do aumento das tarifas; as manifestações repetiram-se, com igual força, nos dias seguintes. Acuados, os prefeitos de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e de outras cidades importantes, em articulação com o Governo de Dilma Rousseff, anunciaram o recuo no aumento das tarifas. Mas, como dizia um sugestivo cartaz, “não é pelos vinte centavos” que este processo de mobilização alcançou a dimensão conhecida. 

 

“Queremos Saúde e Educação padrão FIFA”.

Mesmo depois do anúncio da retirada do aumento das tarifas, as manifestações continuaram, atingindo mais de 1 milhão de participantes no dia 20 de Junho. O pano de fundo era a realização da Copa das Confederações, o torneio que servia de ensaio geral à Copa do Mundo da Fifa, que terá lugar no Brasil em 2014. A inauguração do torneio no Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, foi marcada por uma monumental vaia à Presidente Dilma no seu discurso de abertura. Todos os jogos realizados foram marcados por grandes protestos  nas imediações dos estádios, muitos terminando em mais cenas de repressão policial. As reivindicações chocavam de frente com o despesismo anunciado pela realização da Copa do Mundo – só o Governo prevê gastar 9 mil milhões de euros com o evento – e apontavam para as carências no sistema de educação e saúde do país. No Brasil, todas as semanas é possível tomar conhecimento de casos de pacientes que morrem na sala de espera dos hospitais públicos superlotados e de escolas sem professores ou condições materiais para o seu funcionamento.

A politização e multiplicação das manifestações foram acompanhadas pelo alargamento da participação a outros setores da sociedade. A existência de confrontos delimitados (sobretudo no dia 20 de Junho) causados pelo ataque de pequenos grupos intitulados de “antipartidários”, conotados com a direita política, a alas identificadas com bandeiras partidárias (do PSOL, PSTU, PCO e PT), representa apenas um pequeno, embora mediático, capítulo do processo das mobilizações. Já sem as convocações do MPL, que cessam precisamente no dia 20, os protestos alastram durante a semana: estradas nacionais são bloqueadas no norte do país; comunidades de duas das maiores favelas do Rio de Janeiro, Rocinha e Vidigal, marcham até o Leblon (bairro mais rico da cidade) clamando por saneamento e saúde; pequenas cidades do interior do Estado de São Paulo organizam assembleias populares em defesa do hospital público local; manifestantes atiram centenas de bolas de futebol para o lago que fica na entrada do Congresso Nacional em Brasília;  protestos contra a chamada PEC 37[3] tomam as ruas de Porto Alegre; integrantes do Movimento Sem Teto e outras plataformas de esquerda desfilam pelas ruas da nobre zona sul de São Paulo. Junho foi, em suma, o mês em que “o gigante acordou”, como dizia outro cartaz bastante popular nas ruas do Brasil.

Neste processo, sem dúvida complexo e por vezes contraditório, tornou-se pelo menos claro que, ao contrário da tendência defensiva presente nas mobilizações europeias anti-austeridade, que aconteceram num contexto de ataque e de deterioração das condições económicas e salariais, é possível construir movimentos aguerridos num cenário de forte crescimento económico associado à distribuição de rendimento – que são, inclusive, mais mobilizadores posto que dão lugar a vitórias do campo de quem estuda e trabalha. Mas antes de avançarmos na busca pela compreensão destes novos atores do protesto é preciso observar que as manifestações não se cingiram a estes temas nem ao limite temporal de junho. Há problemas que atravessam o centro nevrálgico da reprodução capitalista no Brasil, expondo as suas contradições e violentas opressões, entre os quais se destacam, com brutalidade, o problema do conservadorismo social e o da militarização da vida nas cidades. É o que nos propomos a tratar no segundo texto desta série.


Notas:

[1] No Brasil os transportes urbanos são, maioritariamente, geridos pelos municípios. Nos casos de São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais de Estado, o serviço é concessionado a empresas privadas, cabendo ao executivo municipal definir o preço da tarifa. 

[2] “O MPL foi batizado na Plenária Nacional pelo Passe Livre, em janeiro de 2005, em Porto Alegre. Mas antes disso, há seis anos, já existia a Campanha pelo Passe Livre em Florianópolis. Fatos históricos importantes na origem e na atuação do MPL são a Revolta do Buzu (Salvador, 2003) e as Revoltas da Catraca (Florianópolis, 2004 e 2005). Em 2006 o MPL realizou o seu 3º Encontro Nacional, com a participação de mais de 10 cidades brasileiras, na Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra].”

[3] Uma proposta de emenda constitucional que pretendia retirar ao Ministério Público a capacidade de investigação criminal, delegando-a na policia civil e federal. No Brasil, o Ministério Público protagonizou investigações importante em casos relacionados com a corrupção política, como o do badalado Mensalão. A proposta foi rejeitada ainda no decorrer dos protestos.  

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, dirigente do Bloco de Esquerda e ativista contra a precariedade.
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