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Carta aos mais jovens sobre essa coisa a que chamam política

A toxicidade político-governamental é tão elevada que os animais políticos que somos reagimos de forma irracional e espontânea, e assim começamos a sentir nojo de cada vez que ouvimos a palavra “política”.

Carx amigx, vou partir da hipótese, provavelmente errada, que pertences àquele grupo - ao que parece, cada vez maior - de pessoas para quem a política é uma grandessíssima bosta, onde a corrupção é uma coisa banal e onde os personagens designados como “políticos” são a pior escumalha ao cimo da terra.

Reconheço que ao usar expressões tão fortes estou a ser provocador, mas enfim, mais coisa menos coisa, a imagem que tens da política é que esta é uma espécie de nódoa de gordura a estragar a tua mais bela tshirt. É aquela coisa que está a mais nas nossas vidas que podia ser tão maravilhosa se não fosse a nódoa. Pois bem, com certeza que concordarás comigo se te disser que essa imagem de “vida maravilhosa” é uma alucinação produzida pelos “mass media”, pelas imagens e publicidade que consomes a cada instante. Mas isso tu já sabes, tal como sabes que ainda há pouco tempo morreram centenas de crianças atacadas com armas químicas pelo asqueroso governo da Síria e pelo seu presidente Bashar al-Assad.

Há um livro de Milan Kundera, de que gosto especialmente, com o título “A insustentável leveza do ser” (também existe filme), onde se percebe que o “ser” (esse mistério) ou a vida não podem ser vistos apenas enquanto coisas perfeitas e adoráveis como se fossem objetos religiosos, pois na vida em abstrato ou nas nossas vidas pessoais e sociais concretas, existem sempre dualidades em vários graus, de nascimento e morte, de paz e guerra, de colaboração e competição, de alegria e tristeza, de verão e outono, de justo e injusto, etc.

Isto tudo apenas para dizer que não é nenhum deus que nos vem dizer que quantidade de paz ou de guerra deve existir em determinado momento das nossas vidas, nem se agora devem morrer mais pessoas do que nascer e assim provocar o envelhecimento da população, ou quantos desempregados e trabalhadores precários deve haver para que uma minoria de pessoas ricas continue a acumular riqueza à custa da miséria de muitas outras. Mas isto calculo que também já soubesses, que não existem entidades divinas a controlar as nossas vidas quotidianas. Mesmo que sejas crente e praticante de uma religião, não pensas que o fecho de hospitais e serviços de saúde na tua cidade ou o cada vez pior atendimento de doentes seja uma ordem vinda do além. Pois não ?

O filósofo grego Aristóteles disse, e com muita razão, que o ser humano é um animal político, um “zoon politikon” (em grego), o que quer dizer que nós ao nascermos e vivermos em grupos sociais, sociedades ou comunidades, somos induzidos a conhecer e a construir o tipo de organização coletiva na qual desejamos viver. Por outras palavras, aquilo que nos é comum, como por exemplo o meio ambiente, ou as condições de vida da nossa existência local ou global (a qualidade de vida), deve ser considerado como o bem mais precioso, porque sem isso as opções e estilos de vida individuais não conseguem ser alcançados. Por ironia do destino, se vivêssemos num planeta à beira da catástrofe ambiental ou num país cheio de injustiças, de que valeriam as nossas aspirações e desejos individualistas? Ter o desejo simples de viver tranquilamente com os amigos e familiares no meio duma cidade com um ar irrespirável ou em constante guerra civil é, parece-me, contraditório e insuficiente.

Na realidade, quer queiras quer não queiras, serás sempre um “animal político”, animal és de certeza, agora, podes ser é um bom, mau, ou asssim-assim político. As opções que fazes relativamente ao que consomes, as ações que praticas no dia-a-dia, o que pensas e o que dizes acerca das mais variadas coisas, fazem de ti alguém com responsabilidade na interação que manténs com os outros e com o meio envolvente. Portanto, e desculpa se te ofendo, mas tu és um político! O que obviamente não quer dizer que sejas, como eu dizia no princípio da carta, “a pior escumalha ao cimo da terra”. Esses são, logicamente, os maus políticos ?! E tu, supostamente, fazes parte dos “bons políticos”, certo ?

O problema é que os maus políticos são os mais famosos, e pertencem ou pertenceram à “casta” dos governantes, os que governam o país ou as autarquias. Todos os dias a televisão repete as asneiras que eles fazem, a corrupção, as birras, os jogos e os abusos de poder, etc. Por um lado é bom que a televisão noticie essas nódoas, para que as pessoas estejam informadas do que fazem os seus eleitos, que elas próprias elegeram. Por outro lado, cria um efeito de saturação e de mal estar social, pois dias e anos consecutivos a ouvir e a ver o mesmo tipo de narrativa provoca danos colaterais, como se diz na gíria da guerra. Esses efeitos secundários tóxicos, tal como acontece com outras formas de intoxicação, provoca uma reação nas pessoas (animais políticos), e as pessoas como se sabe reagem de maneiras diferentes.

O que eu acho que acontece hoje em dia, é que a toxicidade político-governamental é tão elevada que os animais políticos que somos reagimos de forma irracional e espontânea, e assim começamos a sentir nojo de cada vez que ouvimos a palavra “política” - tal como acontece quando somos picados por melgas, basta o zumbido para nos irritarmos -, fazendo-nos esquecer que afinal a política é acima de tudo aquilo que fazemos para melhorar as condições de vida à nossa volta.

É por isso que a política é muito mais do que meter um voto dentro duma caixa. Ninguém imagina, acho eu, que a função de um animal político se resuma a meter papéis dobrados com uma cruz dentro de uma caixa, chamada urna, de x em x anos. Isso até um elefante faz. Mas também é isso que oiço cada vez mais nos jovens (e nos adultos mais ou menos maduros, também), que nem sequer pensam em votar. Talvez seja porque isso lhes traga à memória toda aquela quantidade de notícias nauseabundas, e acharem que a sua vida é feita apenas de flores divinas e perfeitas ? Seja como for não vou voltar atrás ao livro do Milan Kundera...

Para terminar queria só dizer-te que a sociedade em que vives não é fruto de um acaso ou uma oferta de um deus, é uma construção social e uma forma de organização pacífica de milhares de cidadãos em torno de um determinado território. E é por estares aí incluído que tens o direito e o dever de participares ativamente, e a isso chama-se fazer política, porque cidade em grego diz-se polis. E como a política não se exerce pelo uso da força (isso é a Polícia), ninguém te obriga a assumires-te como político, nem a votar, nem a participares na vida pública, nem a usares a tua palavra e o teu pensamento crítico. Mas tens de saber que a diferença entre assumires ou não assumires é importante para a sociedade onde te inseres. É que quantos mais seres humanos assumirem a política como uma tarefa sua, quantos mais cidadãos estiverem conscientes da sua ação política no quotidiano, melhor será a qualidade de vida para todxs.

Era isto que queria dizer-te, e agradeço teres lido com atenção. O meu email, caso queiras responder ou continuar o diálogo é: [email protected].

Até breve, cordialmente,

Rui Matoso

Sobre o/a autor(a)

Investigador e docente universitário
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