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Egito: "A questão agora é saber se o Exército executa o programa que anunciou"

Jaisal Noor: Benvindo ao The Real News Network. Sou Jaisal Noor, em Baltimore.
No Egito, os militares expulsaram do poder Mohamed Morsi. Isto ocorreu 48 horas após o ultimato enviado pelo exército ao presidente Morsi para que se retirasse ou chegasse a um acordo de partilha do poder com os milhões de manifestantes na rua desde 30 de junho.
Gilbert Achcar está agora connosco para falar dos últimos desenvolvimentos. Ele cresceu no Líbano e hoje é professor na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. Entre as suas obras contam-se: O choque de barbáries. Terrorismos e desordem mundial (2002), que foi publicado em 13 idiomas; O Barril de Pólvora do Médio Oriente (2007), com Noam Chomsky; o livro aclamado pela crítica Os Árabes e o Holocausto (2009) e, mais recentemente, O Povo Quer (2013).
Muito obrigado por se juntar a nós.
Gilbert Achcar: Obrigado. É um prazer falar consigo.
Pode dar-nos a sua reação à notícia de que o presidente Morsi, o líder democraticamente eleito do Egito, foi retirado do poder pelo exército egípcio?
Sim. Isto é, em certo sentido, a repetição do mesmo cenário que ocorreu em fevereiro de 2011. O que realmente vemos em ambos os casos é um golpe, um golpe militar no contexto de um movimento de mobilização enorme, só que os atores ou aqueles que estão no poder são diferentes e a composição da multidão, a mobilização em massa, também é diferente.
Em janeiro de 2011, em janeiro-fevereiro de 2011, tínhamos, como sabe, esse enorme protesto, a grande revolta, em que estavam envolvidos todos os géneros de oposição ao regime de Mubarak. O que incluía os liberais, movimentos de esquerda, mas também a Irmandade Muçulmana. Eles representavam uma componente importante da mobilização naquele momento. Nessa grande mobilização em massa havia o mesmo tipo de expectativas face ao exército, a ideia de que o exército estava do lado do povo, que poderia representar os interesses do povo. Acontece aliás que no dia 8 de fevereiro de 2011, apenas três dias antes da queda de Mubarak, o The Real News Network tinha-me feito uma entrevista em que alertei contra tais ilusões sobre o exército, sobre os militares.
O que estamos a ver agora é apenas o resultado de uma espécie de jogo das cadeiras, se quiser. A Irmandade Muçulmana está no poder e os partidários do antigo regime, de Mubarak, na rua ao lado dos liberais, com a esquerda, com a oposição popular à Irmandade Muçulmana. É em certo sentido, uma repetição do cenário, é claro, com uma diferença fundamental: a natureza da força política que está no poder.
Em ambos os casos vemos uma grande mobilização. E esta revolta é absolutamente fascinante. Isso é algo que, na verdade, vai além das expectativas, inclusive de pessoas como eu, que rejeitam todos esses comentários tristes que se ouvem sempre que forças semelhantes à Irmandade Muçulmana chegam ao poder por eleições. Ouviam-se todos os tipos de comentários, que a primavera se transformou em outono [islamitas] ou em inverno [fundamentalistas]; muitos viram nesses acontecimentos uma razão, ou uma desculpa, simplesmente para denegrir qualquer revolta na região. Outros, como eu, insistiam em que estávamos apenas no início de um processo revolucionário de longo prazo. Eu até disse que, na verdade, estava muito feliz por ver a Irmandade Muçulmana ter acesso ao governo, porque seria a melhor maneira de se exporem e, assim, perderem a capacidade de mistificar as pessoas com slogans demagógicos como: "o Islão é a solução".
Pode falar-nos acerca dos vários interesses envolvidos na revolta no Egito e dos interesses políticos que servem?
Como acabei de mencionar, estamos diante de um público muito diverso, politicamente falando. Ouvi na TV algumas entrevistas com pessoas nas ruas. Muitas pessoas nos cafés ou em locais deste tipo, expressam a sua preferência por Mubarak em vez de Morsi. Portanto, há, naturalmente, um grande número de partidários do antigo regime, um grande número de pessoas que são, como direi, uma massa bastante conservadora, que é contra a Irmandade Muçulmana por causa da sua profunda falta de jeito no poder. Lamentavelmente eles saíram-se da forma mais inapta possível, e conseguiram ter toda a gente contra eles.
Portanto, há partidários do antigo regime, mas também há nessa enorme mobilização de massas pessoas que agem pela sua posição de classe, se quiser, já que nada foi feito contra a deterioração das suas condições de vida, porque o governo só tem continuado as políticas sociais e económicas do regime anterior. Há também a oposição liberal, que se opõe à Irmandade Muçulmana, por razões políticas, mas não contra as suas políticas sociais e económicas, porque os liberais partilham, no fundo, as mesmas opções. Temos depois, a esquerda. Por isso, a multidão é muito heterogénea. Da mesma forma que em 2011 havia forças muito heterogéneas, forças de natureza muito deferente reunidas em torno do único ponto comum que era a sua oposição a Mubarak, hoje acontece a mesma coisa na oposição a Morsi.
Claro, isso não vai resolver o problema. Qualquer ilusão de que o exército e que só o exército colocará no poder (porque o exército entrou uma segunda vez na posição de kingmaker) vai levar a melhorias nas condições sociais e económicas, partindo das condições de existência dos trabalhadores no Egito é simplesmente infundada. Todas as ilusões deste tipo são apenas isso: ilusões.
Confrontamo-nos com um conflito entre os que apoiam o golpe dos militares porque querem a restauração da ordem, porque estão convencidos de que a Irmandade Muçulmana não a consegue, os que anseiam por um retorno à normalidade no país - o que na verdade significa o fim das greves, o fim de todos os movimentos sociais que ocorreram muito intensamente nos últimos dois anos. Há, pois, esse tipo de pessoas. Por outro lado, há os que se rebelam contra Morsi porque prosseguiu as políticas sociais de Mubarak.
Estamos, portanto, em plena contradição. O problema é que, com a exceção de grupos marginais, existe pouca consciência dela. A tragédia aqui reside na ausência de uma força de esquerda com uma credibilidade popular real e uma visão estratégica clara do que está a acontecer. Isso faz uma falta terrível.
Referiu a forma como este processo revolucionário, que começou em 25 de janeiro [2011], evoluiu. Então quer dizer que não vê emergir do movimento revolucionário nenhum líder à altura de ser candidato nas próximas eleições prometidas pelo exército?
Bom. Apareceu uma figura capaz de unificar aspirações, digamos, sociais e progressistas da população. Era o candidato nasserista [Hamdeen Sabahi] por referência a Nasser que governou o Egito até 1970. Esse candidato representava assim uma espécie de nacionalismo de esquerda. Ficou em terceiro lugar [em 2012 com 20,72% contra 23,66% para Ahmed Shafik - um oficial, representante do antigo regime - e 24,78% para Mohamed Morsi]. Foi a grande surpresa das eleições presidenciais. É a única figura verdadeiramente popular na ampla gama da esquerda egípcia.
O problema é que ele partilha completamente o discurso atualmente predominante de que o exército é nosso amigo, está com as pessoas, etc. Está também aliado aos liberais e a alguém do antigo regime, Amr Moussa [secretário-geral da Liga Árabe, entre 2001 e 2011, anteriormente chanceler entre 1991 e 2001]. Recentemente fez declarações em que afirmou ter sido um erro para o movimento popular antes de Morsi chegar ao poder, gritar "Abaixo o regime militar", enquanto o Comité dos Serviços Armados do Supremo (AFSC) governava o país de uma forma terrível. Estas declarações não são nada tranquilizadoras. No entanto, foi o único que surgiu como atraente para as aspirações populares de mudança à esquerda e não uma mudança à direita – quer seja numa direção islamita ou na direção do antigo regime.
A questão agora é saber se - e é, naturalmente, condicionante - o Exército implementa o programa anunciado que inclui a realização de eleições presidenciais num curto prazo; o que é que vai acontecer com essas eleições; e como é que este preciso candidato - porque é o único capaz de entrar à esquerda - ficará posicionado nas eleições: que tipo de discurso irá ele desenvolver e qual será o seu programa? Temos que estar atentos a isso se - mais uma vez se – as eleições se realizarem. É muito cedo para falar sobre isso, porque a Irmandade Muçulmana rejeita ainda o golpe de estado e denuncia-o pelo que ele é: um golpe de Estado. É um facto. E, mesmo não se tratando de um golpe contra um governo democraticamente eleito, mas um golpe contra um governo democraticamente eleito que conseguiu alienar a grande maioria do povo egípcio. As mobilizações contra Morsi atingiram níveis nunca vistos. Absolutamente sem precedentes.
Qual é o papel dos Estados Unidos em tudo isso? Estavam perfeitamente felizes apoiando Mubarak durante décadas com os militares no poder. Mas que papel desempenharam nessa situação e que papel poderiam os EUA desempenhar nos próximos tempos?
O movimento de oposição no Egito, isto é, a oposição a Morsi, tem uma forte convicção de que Washington apoiou Morsi. Havia realmente muitos sinais do apoio de Washington a Morsi, advertências contra uma intervenção militar, a ênfase sobre a necessidade de seguir a via constitucional, de não se desviar, embora a Constituição que existe hoje, tenha legitimidade bastante questionável. Este grande movimento, de facto, não reconhece esta constituição como legítima, mas como imposta pela Irmandade Muçulmana. A embaixadora dos EUA no Cairo, fez uma declaração no início dos protestos contra Morsi, onde disse que eles são prejudiciais para a economia. Isso caiu como uma declaração de óbvio apoio a Morsi. Há, portanto, ampla evidência disso.
Washington está realmente numa complicação. Quem defende, e há muita gente, especialmente na Internet, todas essas teorias da conspiração segundo a qual Washington tem muito poder e puxa os cordelinhos de tudo que está a acontecer no mundo árabe está a ficar completamente de fora. Quero dizer que a influência de Washington, dos Estados Unidos, na região é em geral muito baixa. É esse o resultado da derrota no Iraque, porque se trata de uma grande derrota para o projeto imperial dos Estados Unidos. Houve a combinação desse desastre para a política imperial dos Estados Unidos e da derrubada de amigos importantes de Washington como Mubarak.
Washington tentou apostar na Irmandade Muçulmana. De facto, durante o último período, desde o início da revolta no mundo árabe ou imediatamente após, Washington preferiu apostar na Irmandade Muçulmana. Na verdade, renovaram a sua antiga aliança porque trabalharam em estreita colaboração com a Irmandade Muçulmana ao longo das décadas de 1950, 1960, 1970 até 1990 - 1991. Renovaram essa colaboração convencidos de que, nas condições atuais do mundo árabe, com todas essas mobilizações de massa - que constituem um novo e importante desenvolvimento desde dezembro de 2010, janeiro de 2011, precisam de aliados com uma verdadeira base popular. Quem claramente correspondia a essa definição e estava disposta a trabalhar e cooperar com Washington era a Irmandade Muçulmana. Foi isso que aconteceu e é isso que continua a fazer-se.
A situação chegou agora a um ponto em que Washington constata que a Irmandade Muçulmana falhou. Assim, mesmo a partir da perspetiva de Washington, apostar nela já não é possível. Não conseguiu restaurar a ordem no Egito. Não é capaz de controlar a situação. O principal aliado de Washington no Egito é, claro, o exército. O Exército tem laços muito estreitos com Washington. Ele é em parte financiado por Washington [desde o final da década de 1970, após a conclusão de um tratado de paz com Israel, o exército egípcio recebe financiamento anual, que agora está em cerca de 1.300 milhões de dólares]. O volume de pagamentos dos Estados Unidos ao Egito, que vem logo a seguir a Israel do ponto de vista dos valores arrecadados, vai para o exército. A atual geração de oficiais foi treinada nos Estados Unidos. Eles participaram em manobras militares, etc. O exército está intimamente ligado a Washington. E, claro, não é concebível que Washington tome uma posição contra os militares. Suponho que adote uma posição conciliadora. O que importa é que não liderem a situação. E quem pensa que os Estados Unidos são os mentores, como eu já disse, está completamente fora da realidade.
Pode agora dizer-nos o que vai acontecer no Egito? Mohamed ElBaradei é uma figura da oposição entre os líderes que se reuniram com o exército hoje. Parece que os dirigentes sindicais não reuniram com o exército. Pode-nos falar sobre as possíveis implicações disso? Finalmente, por causa da crise que surgiu com o governo da Irmandade Muçulmana, a serem necessárias novas eleições, acha que a Irmandade Muçulmana poderia ganhá-las?
Vou começar com o último ponto. Não, eu não vejo como a Irmandade Muçulmana iria agora ganhar as eleições. As próximas eleições serão as presidenciais de acordo com a declaração feita pelo comandante do exército [el-Sissi] durante o seu discurso. Se olharmos para o que aconteceu nas eleições anteriores, Morsi foi eleito na segunda volta, graças aos votos que não eram "pró-Morsi", mas sim contra Shafik, o outro candidato, um ex-soldado considerado representante da continuidade do regime de Mubarak. Morsi obteve, nessa altura, quase apenas 25% dos votos na primeira volta. E eu não creio que a Irmandade Muçulmana conseguisse os 25% novamente. Então, não, não acho que isso seja realmente possível, para não mencionar o facto de que mal posso imaginar que o Exército pudesse organizar eleições para que Morsi ou alguém equivalente retornasse ao poder. Isto é bastante improvável, para dizer o mínimo.
O que vai acontecer é exatamente aquilo a que eu me referia quando falei da questão do candidato nasserista. Esta frente heterogénea da oposição vai apresentar-se unida às eleições com um único candidato? Se for assim, o candidato não vai ser o nasserista, mas alguém como ElBaradei, um liberal.
De certa maneira, esse será outro passo, abrindo uma nova etapa no processo revolucionário que está longe do fim. Ele vai continuar, e por muitos anos, se não décadas, de instabilidade até chegar a uma situação em que as coisas vão mudar profundamente com diferentes políticas sociais e económicas. Para lá chegar, é necessária uma profunda mudança social e política. Algo que ainda não é visível. É muito cedo para fazer previsões a esse respeito.
O que podemos dizer, porém, é que é altamente improvável que o exército tente repetir o que fez depois do golpe anterior, em 11 de fevereiro de 2011, quando, da mesma forma, o exército demitiu Mubarak do poder. Agora faz o mesmo com Morsi. Da primeira vez os militares governaram demasiado tempo o país, antes da eleição de Morsi [entre Fevereiro de 2011 e no final de Junho de 2012]. Não me parece que façam a mesma coisa, porque entenderam que lhes era prejudicial e que, de facto, o poder no Egito era agora uma batata quente. É só que ... quem pode querer lidar com todos os problemas pela frente, um dos quais, não menos importante, agora é a própria Irmandade Muçulmana? Vamos ver o que acontece. Se forem reprimidos, se simplesmente capitularem, vão fazê-lo com um monte de ressentimento e haverá dos círculos islâmicos muita oposição a quem quer que se siga.
Há, por outro lado, a situação económica terrivelmente má, muito séria, com um país à beira da falência, à beira de um enorme desastre económico. A única política apresentada pela ampla gama de forças que vai de Morsi a Baradei passando pelos militares é a mesma agenda de medidas neoliberais que o FMI promove no Egito. Incrível como o FMI é, como o chamaram há muito tempo, o fundamentalismo monetarista internacional. Até que ponto é fundamentalista na perspetiva neoliberal, envolver o Egito, depois de tudo o que vimos em apenas mais das mesmas políticas económicas que foram implementadas sob Mubarak e que levaram a esta profunda crise económica : sem crescimento e, em qualquer caso, muito poucos postos de trabalho, um enorme desemprego, especialmente desemprego dos jovens. Continuam a defender as mesmas políticas. O FMI exerceu pressão sobre o governo Morsi para que implementasse medidas de austeridade adicionais, novas reduções nos subsídios, como nos preços dos combustíveis e de outros produtos de base. Continuam a defender tais políticas. Morsi não as implementou, porque não podia. Não era suficientemente forte politicamente para o fazer. Uma vez, quando tentou, foi confrontado com tal clamor que cancelou imediatamente na sua página no Facebook, as medidas que tinha anunciado. Foi realmente ridículo.
Portanto, esta é uma batata quente. É por isso que, mais uma vez, aquilo a que assistimos é nada mais do que um episódio de uma longa história, que está apenas em fase inicial. Veremos muitos outros desenvolvimentos nos próximos anos no Egito e no resto do mundo árabe.
Entrevista de Gilbert Achcarao canal de televisão The Real News Network (TRNN). Traduzida para francês e publicada em A l'encontre Tradução para português por Deolinda Peralta para esquerda.net
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